O Papel de Ellen G. White na Interpretação Bíblica: Um Exame sobre As Percepções dos Primeiros Adventistas do Sétimo Dia
Denis Kaiser é Professor Assistente de História da Igreja no Seminário Teológico Adventista do Sétimo Dia da Universidade Andrews e Editor do Projeto de Anotação do Patrimônio de Ellen G. White.
Tradução: Hugo Martins
O artigo “O Papel de Ellen G. White na Interpretação Bíblica: Um Exame sobre As Percepções dos Primeiros Adventistas do Sétimo Dia” (Original em Inglês: “Ellen G. White’s Role in Biblical Interpretation: A Survey of Early Seventh-day Adventist Perceptions”), por Denis Kaiser, foi publicado, inicialmente, pelo Adventist Biblical Research Institute. Usado com permissão.
Introdução
A aceitação do dom profético moderno de Ellen G. White levanta naturalmente questões sobre a relação entre os seus escritos e os escritos bíblicos. Se a mesma fonte divina gerou ambos, pode-se legitimamente questionar a autoridade e a finalidade dos comentários de Ellen White sobre as passagens bíblicas. Ao longo da sua história, os adventistas do sétimo dia responderam a essa pergunta de diversas maneiras e essas respostas são paradigmáticas para a divisão que continua a existir na Igreja até hoje. Alguns atribuem aos seus comentários uma autoridade normativa e final na interpretação bíblica, enquanto outros lhes negam qualquer privilégio a esse respeito. Outros ainda tentam encontrar um meio-termo. A questão crucial é qual abordagem é mais leal e verdadeira a Ellen White e à sua inspiração divina.
Este artigo examina a história das visões adventistas sobre o papel dos escritos de Ellen White na interpretação bíblica de 1845 a 1930. Embora ela evidentemente tenha desempenhado um papel importante no desenvolvimento da obra de publicações, na organização da igreja, nas instituições de saúde, nas instituições educacionais, no trabalho missionário, nos princípios de estilo de vida, na espiritualidade e muito mais; este artigo enfoca especificamente o papel e a autoridade que os adventistas atribuíram a ela na interpretação da Bíblia.1
Papel Espiritual e Não Normativo (1845–1885)
Os primeiros adventistas sabatistas acreditavam na origem divina e na autoridade das visões e escritos de Ellen White, mas sentiam que sua função e escopo diferiam da Bíblia. Eles acreditavam que as Escrituras, como “única regra de fé e prática”, têm autoridade para todos os cristãos durante toda a dispensação cristã. As revelações de Ellen White, no entanto, estão sujeitas ao escrutínio da Bíblia (1 Ts 5:19–20), e, portanto, sua autoridade deriva das Escrituras. Como uma manifestação genuína do dom moderno de profecia, as suas visões e escritos se dirigem apenas a um grupo específico de pessoas no tempo do fim (Ap 12:17; 19:10).2
No final da década de 1840, os adventistas sabatistas obtiveram novas perspectivas através do estudo da Bíblia sobre assuntos como santuário celestial, sábado do sétimo dia, mensagem do terceiro anjo, selamento, etc. Durante esse período, Ellen White geralmente era incapaz de compreender os argumentos sobre o assunto em discussão,3 mas suas visões ajudaram nesse processo de duas maneiras distintas. Primeiro, confirmaram ideias resultantes do estudo da Bíblia, fortalecendo a fé dos crentes na liderança de Deus. Em segundo lugar, quando os envolvidos no estudo discutiram pontos de vista conflitantes, chegando a um impasse porque ambos os lados aparentemente esgotaram seus argumentos das Escrituras, as visões apontaram para passagens bíblicas relevantes ainda não consideradas, e, assim, trouxeram unidade.4
Contudo, manter o apreço por essa orientação divina e pela crença no papel fundamental das Escrituras nem sempre foi fácil. A crença nas revelações divinas de Ellen White atraiu críticas, incorrendo na acusação de torná-las, em lugar das Escrituras, a regra de fé. Para evitar críticas e preconceitos, Tiago White e outros líderes optaram por se abster de publicar as suas visões nas colunas da Review and Herald no início da década de 1850. Porém, sentindo que inibiram o dom profético, afirmaram a sua crença nas visões dela numa conferência em novembro de 1855. Eles afirmaram ser inconsistente argumentar que essas mensagens eram irrelevantes e não vinculativas para aqueles que creem na sua origem divina.5 Embora posteriormente publicaram artigos sobre o dom profético e material de Ellen White na Review,6 eles não empregaram seus escritos para reforçar pontos de interpretação bíblica ou crença teológica.
Adventistas estavam ainda mais conscientes de que as revelações de Ellen White ofereciam compreensões parciais, em vez de abrangentes, sobre a verdade. A descoberta da hora de começar o sábado é um exemplo profundo. Quando, em 1847, várias pessoas debateram sobre a hora adequada de início do sábado, Ellen White recebeu uma visão que enfatizava que o sábado vai “de tarde a tarde” (Lv 23:32). Em vez de aceitar esta pista como ponto de partida para estudar o significado bíblico de “tarde”, José Bates interpretou “tarde” erroneamente para confirmar sua defesa pelas 18:00, e todos os outros aceitaram sua interpretação. Sete anos depois, Tiago White recomendou uma pesquisa bíblica sobre o tema, visto que foi resolvido pela “experiência”, não pelo estudo da Bíblia. Na conferência acima mencionada, em novembro de 1855, J. N. Andrews demonstrou que “tarde” se refere ao por do sol. Todos aceitaram as conclusões dele, exceto Bates e Ellen White, que lutaram contra. Alguns dias depois, ela teve uma visão. Aproveitando a oportunidade, ela perguntou ao anjo quando começa o sábado; ele respondeu: “Pegue a palavra de Deus, leia-a, entenda e não poderá errar. Leia com atenção e você descobrirá o que tarde é e quando é.” Como o estudo de Andrews foi suficientemente claro, este problema foi resolvido. Não obstante, surgiu uma outra questão. Ellen White se perguntou se a “reprovação” de Deus estava sobre eles, já que não guardaram o sábado corretamente por quase nove anos. O anjo explicou que Deus só fica descontente quando as pessoas rejeitam conscientemente a luz revelada. Eles aceitaram a mensagem tal como a compreenderam. Deus esperou por um momento mais oportuno para lhes dar uma compreensão melhor por meio da Bíblia.7 Assim, ele não usou as visões de Ellen White para substituir as Escrituras, mas as usou para direcionar os adventistas à Bíblia.
Do final da década de 1850 até a década de 1880, Ellen White escreveu várias coletâneas e vários artigos que comentavam a história bíblica e cristã.8 Quando, no início da década de 1880, a Escola Sabatina tratava trimestralmente da vida de Cristo e do Livro de Atos, recomendou-se aos membros da igreja que consultassem, entre outros, seus livros Spirit of Prophecy [Espírito de Profecia], volumes 2 e 3, e Sketches from the Life of Paul [Esboços da Vida de Paulo].9 Até então, as suas publicações se dirigiam principalmente aos membros da denominação. Não obstante, os escritores adventistas basearam consistentemente as suas interpretações bíblicas e pontos de vista doutrinários em textos bíblicos pertinentes. Eles, ocasionalmente, utilizavam outras fontes, como reportagens de jornais, historiadores e outros teólogos, caso confirmassem suas interpretações. Eles evitaram usar os escritos dela para apoiar os pontos de vista dele, um costume que não era tanto um sinal de falta de confiança no seu ministério profético —muito pelo contrário, era verdade — mas de profundo compromisso com a Bíblia como a única regra de fé e prática.
Juízo Normativo, Final (1885–1903)
Vários dos primeiros líderes da igreja, como Tiago White e J. N. Andrews, que participaram na descoberta das doutrinas adventistas, faleceram no início da década de 1880. Posteriormente, uma nova geração de ministros e líderes da igreja sentiu que os escritos de Ellen White poderiam, ou em alguns casos deveriam, ser utilizados para determinar a correção de uma dada interpretação. Este uso de seus escritos prevaleceu na América do Norte na segunda metade da década de 1890.
Em 1886, os leitores da Review and Herald puderam observar uma mudança única nos artigos de um autor. Ao contrário de outros escritores adventistas, D. M. Canright começou a citar frequentemente os escritos de Ellen White em apoio a questões de prática, implicando que os seus escritos dela eram iguais às Escrituras.10 Pouco depois, ele se separou da igreja e acusou os adventistas de empregarem os escritos dela exatamente dessa maneira, uma afirmação que Uriah Smith negou veementemente.11 Tanto Smith quanto George I. Butler continuaram a defender que as visões de Ellen White não estavam no mesmo nível ou acima das Escrituras.12 Ela mesma escreveu no prefácio do Grande Conflito que os dons do Espírito não substituem a Bíblia, mas estavam sujeitos à Bíblia: o padrão e teste para todo ensino e experiência.13 A discussão entre Butler e E. J. Waggoner sobre a natureza da lei em Gálatas 3 (a lei cerimonial versus a lei moral) tentou Butler, no entanto, a procurar uma declaração de Ellen White em apoio à sua posição, um pedido que ela lhe negou.14 Anos depois, ela sugeriu uma visão complementar que combinasse as posições aparentemente contraditórias, mostrando a profundidade do pensamento daquela passagem.15 Enquanto isso, quando ela deu seu apoio a Waggoner e A. T. Jones na sequência da Conferência de Minneapolis em 1888, tanto Smith quanto Butler a questionaram e destacaram declarações supostamente não confiáveis de seus escritos, pois pareciam entrar em conflito com a percepção deles da controvérsia.16 Eles caíram um pouco em desgraça quando se opuseram aos esforços de reforma daqueles ministros mais jovens que, por sua vez, passaram a ser vistos como leais a Ellen White.
Durante a estadia dela na Austrália (1891–1900) e o trabalho missionário de Waggoner na Inglaterra (1892–1903), Jones talvez tenha se tornado “o pregador mais influente do Adventismo” e porta-voz de Ellen White na América do Norte.17 Na Sessão da Conferência Geral de 1893, ele enfatizou a inspiração verbal e a clareza absoluta dos escritos inspirados, sugerindo que o significado das Escrituras é claro e está além da necessidade de interpretação. Tentar interpretar ou explicar um determinado texto bíblico é uma usurpação do lugar de Cristo, o autor das Escrituras, e somente ele, através do seu Espírito, pode explicar o seu significado. Jones argumentou que “o Espírito de Profecia,” o testemunho de Jesus, é “o meio o qual o próprio Cristo dá a verdadeira compreensão e interpretação correta da sua palavra.” Como Cristo é infalível, sua interpretação é “infalível” e “absolutamente certa.” Portanto, os escritos de Ellen White são o intérprete infalível final das Escrituras. Submetendo as Escrituras aos escritos dela, escreveu Jones: “o uso correto dos Testemunhos. . . [é] estudar a Bíblia por meio deles, para que com as coisas reveladas neles [os Testemunhos] possamos ver e saber por nós mesmos que estão na Bíblia.”18 Da mesma forma, W. W. Prescott afirmou que Jesus, através do Espírito de Profecia, deu uma interpretação infalível das Escrituras.19 Em 1896, a Escola Sabatina trimestral começou a conter declarações dos escritos de Ellen White como comentários sobre passagens bíblicas específicas. Curiosamente, foi Prescott quem escreveu isso trimestralmente.20 Em vista disso, outros escritores adventistas influentes adotaram a prática de usar os escritos de Ellen White na interpretação da Bíblia.
Posições Divididas (1903–1920)
O retorno de Ellen White aos Estados Unidos em 1900 colocou os líderes da igreja americana mais uma vez em contato direto com ela e com a dinâmica de sua inspiração. Essas dinâmicas entraram em conflito com as suposições que A. T. Jones e John Harvey Kellogg tinham a respeito da inspiração dela, e, como resultado, rejeitaram completamente a inspiração e o ministério dela. Logo depois, alguns transformaram a aceitação do papel de Ellen White como juíza final em questões de interpretação bíblica num teste de ortodoxia, para grande desgosto daqueles que trabalharam estreitamente com ela durante seus anos na Austrália, como seu filho W. C. White e A. G. Daniells.
As relações entre Kellogg e os líderes da igreja se tornaram cada vez mais tensas em 1903, uma circunstância que aproximou Jones de Kellogg, afastando-se de Ellen White, Daniells e outros. Jones manteve sua crença na inspiração verbal, mas acabou questionando a inspiração divina de Ellen White e afirmou que ele “nunca. . . os colocou [escritos dela] no lugar da Bíblia,”21 embora evidências da década de 1890 sugiram o contrário. A rejeição aberta de Jones a Ellen White e sua separação da igreja naturalmente geravam temores sempre que alguém expressava ideias semelhantes. Enquanto isso, W. W. Prescott, que anteriormente compartilhou a convicção de Jones de que os escritos de Ellen White eram um comentário infalível das Escrituras, chegou à conclusão de que os escritos dela não devem ser usados para resolver discussões exegéticas.22 Mais tarde, ele explicou que foi através de experiências específicas com os escritos dela —seu trabalho editorial com os artigos dela para a Review e sua assistência em questões históricas para o Grande Conflito (1911) e Profetas e Reis (1917)— que ele chegou ao conclusão de que poderiam servir como um guia ou indicador no estudo, mas que era necessário “desenvolver diretamente das Escrituras o significado completo” de uma passagem. A própria Escritura deve ser o estudo central.23 Ele ficou impressionado com a orientação de Ellen White no início da história da igreja adventista e com seus conselhos magistrais durante a crise Kellogg, circunstâncias que fortaleceram a convicção dele na “confiabilidade do Espírito de Profecia.”24 Entretanto, a recusa de Prescott em conceder a Ellen White o papel de juíza interpretativa final parecia se assemelhar à posição que Jones adotou. Qualquer pessoa que recusasse essa autoridade dela corria posteriormente o risco de ser associada à apostasia de Jones.
A disputa, iniciada por volta de 1908, sobre a interpretação de hatāmîd (o diário, contínuo, regular) em Daniel 8:11–13 revelou as preferências e pressuposições divergentes relativas ao uso dos escritos de Ellen White na interpretação bíblica. S. N. Haskell, J. N. Loughborough, J. S. Washburn e outros, que defenderam a visão tradicional de hatāmîd (Roma pagã), sentiram que suas observações nos Primeiros Escritos25 endossavam fortemente a definição particular deles do termo. Prescott, Daniells e outros que defenderam uma nova visão (o ministério celestial de Cristo) preferiram, no entanto, levar em consideração o uso do termo no Antigo Testamento e se recusaram a empregar os escritos dela como a palavra final.26 Aqueles que defenderam a visão tradicional interpretaram a recusa em utilizar os escritos de Ellen White como juiz final e infalível como uma clara rejeição da inspiração divina e da autoridade dos escritos dela.27 A própria Ellen White instou repetidamente as pessoas envolvidas na disputa a pararem de usar os escritos dela porque ela não viu nada sobre o ponto específico em discussão.28 W. C. White concluiu que Deus deseja que este assunto fosse resolvido através de “um estudo completo. . . da Bíblia e da história” em vez de “por uma revelação.”29 As discussões públicas sobre o tāmîd eventualmente cessaram, mas as diferenças, preconceitos e recriminações continuaram em privado.
Nas duas décadas seguintes, aqueles que estiveram envolvidos no conflito continuaram a expressar as suas convicções sobre o papel de Ellen White na interpretação bíblica. Haskell declarou: “Um profeta vivo é um comentário inspirado sobre o que Deus falou anteriormente. Ele desenvolve e aplica as palavras inspiradas anteriormente.”30 “O profeta vivo, portanto, torna-se um guia infalível para a conclusão correta do que o profeta morto disse.”31 Como Ellen White era uma “profeta viva,” esta autoridade interpretativa se aplicava particularmente a ela.32 Haskell pensava que a recusa dela em colocar seus escritos no mesmo nível das Escrituras resultava de seu medo de ser associada a falsos profetas. Para os adventistas do sétimo dia, seus escritos tinham a mesma autoridade que os escritos bíblicos, argumentou ele, mas ao compartilharem suas crenças com os não-adventistas, eles deveriam provar tudo a partir das Escrituras.33 Da mesma forma, J. S. Washburn viu os escritos dela como um intérprete final e infalível das Escrituras; interpretações que aparentemente contradiziam as declarações de Ellen White deveriam ser desconsideradas e rejeitadas. Dizer que os escritos dela não estavam em paridade com as Escrituras porque tinham de ser testados pelas Escrituras era, na opinião dele, “mera Alta Crítica.”34
Na Conferência Bíblica de 1919, Daniells fez diversos comentários significativos sobre o tema. Ele achava que as explicações de Ellen White sobre as passagens bíblicas eram “confiáveis,” embora em alguns casos “possa haver algumas dificuldades.”35 As Escrituras devem ser interpretadas “principalmente” pelas Escrituras.36 Argumentar, porém, que os escritos dela são “o único intérprete seguro da Bíblia” é “uma doutrina falsa, um conceito falso.”37 Ele rejeitou a premissa de que os escritos dela eram para os adventistas “o único oráculo infalível”, assim como Joseph Smith é para os mórmons.38 Prescott enfatizou que os escritos dela não devem substituir o estudo sério da Bíblia.39 Ele apreciava o valor espiritual e prático dos escritos dela, e, embora sentisse que ela estava enganada em alguns assuntos de interpretação bíblica, ele não gostava da prática de alguns contrastarem os escritos dela com as Escrituras em público.40
Na década de 1920, F. M. Wilcox, W. C. White e alguns outros procuraram preencher a lacuna delineando o propósito e o escopo dos escritos de Ellen White. Na opinião de W. C. White, a citação dos escritos de sua mãe em sermões não são necessariamente um problema. Todavia, quando algumas pessoas acham que é mais fácil esclarecer assuntos específicos por meio do uso dos Testemunhos em vez da Bíblia, ele achava que estavam colocando os escritos dela antes da Bíblia. Ele disse: “Essas coisas entristeciam minha mãe, e ela muitas vezes aconselhou nossos ministros a usarem a Bíblia primeiro para apresentar verdades que fossem de natureza a exigir reformas decididas, e depois a lerem os Testemunhos como outro atestado das mesmas verdades.”41 Wilcox enfatizou o papel das Escrituras como “a regra de fé e prática”42 e “o grande livro de teste, ou padrão, de cada afirmação na doutrina e na revelação.”43 Assim, os escritos de Ellen White tiveram que ser testados pelas Escrituras, e como estavam em harmonia com a Bíblia e a exaltavam “como a única regra de fé,” devem ser aceitos como vindos de Deus.44 Referindo-se à própria visão de Ellen White sobre o papel e a função de seus escritos, Wilcox enfatizou que eles “não são de forma alguma. . . para tomar o lugar da Bíblia”45 e não eram “um acréscimo ao cânone da Bíblia”46 ou “em paridade com a Bíblia.”47 Em vez de ver os escritos dela como a autoridade final em questões de interpretação, ele os retratou como “um comentário espiritual” sobre a Bíblia e o plano de redenção porque ajudam a compreender os “grandes princípios” da Bíblia. Eles fornecem orientação espiritual prática na vida do crente.48 Alguns estudiosos consideram Wilcox como “a personificação do adventismo” e o “grande mediador” na década de 1920 porque ele tentou formular posições que todos os partidos da igreja pudessem aceitar.49 Seu longo trabalho editorial para a Review (1909–1944) teve um enorme impacto na igreja, mas ele aparentemente foi incapaz de preencher a lacuna entre as diferentes posições sobre o papel dos escritos de Ellen White na interpretação da Bíblia, visto que as tensões nesse sentido continuaram.
Resumo
Desde o início, os adventistas do sétimo dia geralmente aderiram à posição de que a Escritura interpreta a si mesma, embora sustentassem que os escritos de Ellen White contêm conselhos espirituais benéficos e vislumbres inspirados. Na década de 1890, alguns ministros importantes introduziram a ideia de que Jesus deu as visões e escritos de Ellen White para funcionarem como um intérprete final e infalível das Escrituras. Ambas as premissas continuaram a coexistir e competir entre si. Alguns consideraram a exaltação dos escritos de Ellen White à posição de um comentário infalível como um abandono funcional do princípio da Sola Scriptura, enquanto outros sentiram que uma recusa em atribuir aos seus escritos esse papel era uma negação prática da sua inspiração e autoridade divinas. Controvérsias teológicas dentro das denominações deram origem à hipersensibilidade, vigiando para não dar a Ellen White muita ou pouca autoridade. Isto resultou em uma ruptura em questões de interpretação bíblica que continua dentro do adventismo até hoje.
Rumo a Uma Visão Holística
As diferentes percepções do papel dos escritos de Ellen White na interpretação bíblica revelam diversos pressupostos relativos à relação e às funções da revelação canônica e pós-canônica. Contudo, uma premissa subjacente predominante parece ser a ideia involuntária de que o significado final de um texto pode ser deduzido a partir de uma leitura superficial ou do comentário de um escritor inspirado. Essa premissa não parece levar em consideração as seguintes realidades. O texto bíblico contém pensamentos (divinos) de profundidade eterna e o significado deles é provavelmente mais profundo do que uma leitura superficial poderia sugerir. O texto pode conter diferentes nuances e aspectos que só aparecem através de um estudo aprofundado. Ellen White usou diferentes passagens bíblicas de diversas maneiras. Os estudiosos detectaram em nos escritos dela usos exegéticos, teológicos, tipológicos, parentéticos e outros das Escrituras.50 No seu esforço para instruir, admoestar e encorajar indivíduos, Ellen White ocasionalmente aplicava princípios bíblicos a circunstâncias particulares, sem a intenção de estabelecer uma regra universal para toda e qualquer situação. Às vezes, ela usou uma passagem específica de maneiras diferentes em momentos diferentes de sua vida. Em outros casos, ela viu a complementaridade de interpretações aparentemente contraditórias (e.g., sobre a lei em Gálatas). Existem ainda muitas passagens bíblicas que ela nunca usou, deixando-as inexplicáveis. Acreditamos que a revelação divina nos apresenta a verdade, mas a revelação é evidentemente também progressiva e parcial porque nunca apresenta tudo o que há para saber. Portanto, Ellen White pode ter comentado um aspecto particular em uma determinada passagem sem esgotar a profundidade do seu significado. Podemos valorizar os vislumbres benéficos e as verdades espirituais reveladas em seus comentários sobre as Escrituras, sem limitar o significado das Escrituras e a descoberta da verdade bíblica, tornando-as a palavra final, que na prática seria uma parte do cânone. Devermos ponderar em como usarmos os seus escritos nos nossos sermões e pesquisas sem dar a impressão de que lemos as Escrituras apenas através das lentes dos escritos dela ou fazemos pouco caso deles,ignorando-os completamente. Resolver o dilema do uso adequado dos escritos de Ellen White dessa forma permite que os estudantes da Bíblia apreciem os comentários dela, descubram por si próprios a riqueza das Escrituras e anseiem continuamente pelo crescimento na compreensão das coisas profundas de Deus.
Notas
1 Este artigo é baseado em informações relevantes sobre este assunto de Denis Kaiser, “Trust and Doubt: Perceptions of Divine Inspiration in Seventh-day Adventist History (1880–1930),” dissertação de doutorado, Andrews University, 2016.
2 Ver, e.g., Roy E. Graham, “Ellen G. White: Co-Founder of the Seventh-day Adventist Church, American University Series, Series 7,” Theology and Religion, vol. 12 (New York: Lang, 1985), pp. 45–46; Zoltán Szalos-Farkas, “The Rise and Development of Seventh-day Adventist Spirituality: The Impact of the Charismatic Guidance of Ellen G. White,” Doctoral Dissertation Series, vol. 1 (Cernica: Editura Institutului Teologic Adventist, 2005), pp. 64–68, 71–83.
3 Ellen G. White, “The Work for This Time,” Review and Herald, 18 de maio de 1905, p. 17.
4 Alberto R. Timm, “The Sanctuary and the Three Angels’ Messages: Integrating Factors in the Development of Seventh-day Adventist Doctrines,” Adventist Theological Society Doctoral Series, vol. 5 (Berrien Springs, MI: Adventist Theological Society, 1995), pp. 166–169, 390, 393–396.
5 José Bates, J. H. Waggoner, e M. E. Cornell, “Address of the Conference Assembled at Battle Creek, Mich., Nov. 16th, 1855,” Review and Herald, 4 de dezembro de 1855, p. 79.
6 Tiago White, “A Test,” Review and Herald, 16 de outubro de 1855, pp. 61–62; Tiago White, “The Testimony of Jesus,” Review and Herald, 18 de dezembro de 1855, pp. 92–93. Ellen G. White, “Communication from Sister White,” Review and Herald, 10 de janeiro de 1856, p. 118.
7 Ellen G. White, Testemunhos para A Igreja, 1:116; Tiago White, “Time to Commence the Sabbath,” Review and Herald, 25 de fevereiro de 1868, p. 168.
8 Veja, e.g., Spiritual Gifts, vols. 1 e 3; e Spirit of Prophecy, 4 vols.
9 Kaiser, “Trust and Doubt,” p. 461 nota de rodapé 486.
10 Ibid., p. 171 nota de rodapé 255.
11 Uriah Smith, “A Miracle Called for,” Review and Herald, 18 de outubro de 1887, p. 649.
12 George I. Butler, “The Visions: How They Are Held Among S. D. Adventists,” Review and Herald, 14 de agosto de 1883, p. 12; Urias Smith, “Sra. White and Her Work,” Review and Herald, Extra, 22 de novembro de 1887, pp. 10–11.
13 Ellen G. White, O Grande Conflito.
14 Denis Fortin, “Galatians, Law in,” em The Ellen G. White Encyclopedia, ee. Denis Fortin e Jerry Moon (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2013), p. 830.
15 Ellen G. White, “The Law in Galatians,” [1900], Ms 87, 1900, EGWE; “Ellen G. White to Uriah Smith,” 6 de junho de 1896, Lt 96, 1896, EGWE.
16 Gary Land, “Uriah Smith: Apologist and Biblical Commentator,” Adventist Pioneer Series (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2014), pp. 178–182; Timothy L. Poirier, Kenneth H. Wood e William A. Fagal, ee., The Ellen G. White Letters & Manuscripts with Annotations: 1845–1859, vol. 1 (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2014), pp. 801–802.
17 George R. Knight, “Jones, Alonzo Trevier (1850–1923),” em The Ellen G. White Encyclopedia, ee. Denis Fortin e Jerry Moon (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2013), p. 429.
18 A. T. Jones, “The Third Angel’s Message—No. 1,” General Conference Daily Bulletin, 27 de janeiro de 1893, pp. 9–11; A. T. Jones, “The Third Angel’s Message—No. 15,” General Conference Daily Bulletin, 23 de fevereiro de 1893, p. 361; A. T. Jones, “The Gifts: Their Presence and Object,” Home Missionary, Extra, dezembro de 1894, p. 12; A. T. Jones, “The Sure Interpreter,” Bible Echo, 11 de fevereiro de 1895, p. 44.
19 W. W. Prescott, “The Word of God—No. 4 [cont.],” General Conference Bulletin, 25 de fevereiro de 1895, pp. 326–327.
20 See [W. W. Prescott], International Sabbath School Quarterly 1, nº 5, 3º Trimestre (1896): passim. Agradeço a Melissa Cooke por apontar este detalhe.
21 “A. T. Jones to A. G. Daniells,” 26 de janeiro de 1906, EGWCF, EGWE.
22 “WW Prescott to R. A. Underwood,” 2 de agosto de 1908, PIC box 3090, GCA.
23 “WW Prescott to I. H Evans,” 15 de fevereiro de 1933, Richard Hammill Collection, bx 22, fld 8, CAR.
24 “WW Prescott to S. N. Haskell and E. W. Farnsworth,” 4 de setembro de 1904, Richard Hammill Collection, box 22, fld 9, CAR.
25 Ellen G. White, Primeiros Escritos, pp. 74–75.
26 Denis Kaiser, “The Word, the Spirit of Prophecy, and Mutual Love: Lessons from the ‘Daily’ Controversy for Conflict Resolution,” Ministry, dezembro de 2014, pp. 16–19.
27 “J. S. Washburn to Claude E. Holmes,” 18 de abril de 1920, WCWCF, EGWE.
28 Kaiser, “The Word, the Spirit of Prophecy, and Mutual Love,” p. 16.
29 “WC White to P T Magan,” 31 de julho de 1910, WCWCF, EGWE.
30 S. N. Haskell, “A Living Prophet,” Bible Training School, agosto de 1912, p. 42.
31 S. N. Haskell, “Resurrection Taught by Writings of Moses,” Bible Training School, julho de 1911, p. 13.
32 “S. N. Haskell to John N. Loughborough,” 19 de outubro de 1912, EGWCF, EGWE; “S. N. Haskell to W. W. Prescott,” 15 de novembro de 1907, William Warren Prescott Papers, Col. 143, bx 1, fld 1, CAR.
33 “S. N. Haskell to W. C. White,” 21 de novembro de 1912, EGWCF, EGWE.
34 “J. S. Washburn to A. G. Daniells,” 1 de maio de 1922, WCWCF, EGWE.
35 “Report of Bible Conference Held in Takoma Park, D.C., 1–19 de julho de 1919,” manuscrito não publicado, GCA, p. 1194.
36 Ibid., pp. 1194–1195.
37 Ibid., pp. 1195–1198.
38 “A. G. Daniells to F. E. Dufty,” [1920], WCWCF, EGWE.
39 “Report of Bible Conference,” GCA, 1919, pp. 1252, 1254.
40 “W. W. Prescott to WW Fletcher,” 28 de junho de 1929, WCWCF, EGWE; “Report of Bible Conference,” pp. 1198, 1252, 1254.
41 “W. C. White to D. D. Voth,” 22 de setembro de 1921, WCWCF, EGWE.
42 F. M. Wilcox, “The Spirit of Prophecy in the Remnant Church [No. 7]: Relation of Mrs. E. G. White’s Writings to the Bible,” Review and Herald, 27 de setembro de 1928, p. 17.
43 F. M. Wilcox, “The Holy Scriptures: Their Divine Origin,” Review and Herald, 9 de agosto de 1928, p. 3.
44 “F. M. Wilcox to L. E. Froom,” 5 de agosto de 1928, L. E. Froom Reference Files box 3874, fld “Tests of Fellowship,” GCA; F. M. Wilcox, “The Editor’s Mail Bag,” Review and Herald, 19 de janeiro de 1922, p. 5; F. M. Wilcox, “The Spirit of Prophecy in the Remnant Church [No. 2]: The Work and Writings of Mrs. E. G. White,” Review and Herald, 23 de agosto de 1928, p. 9.
45 F. M. Wilcox, “The Study of the Bible: Aided by the Writings of the Spirit of Prophecy,” Review and Herald, 3 de fevereiro de 1921, p. 2.
46 Wilcox, “The Spirit of Prophecy in the Remnant Church [No. 7],” p. 17; F. M. Wilcox, “The Testimony of Jesus [No. 9]: Not an Addition to the Bible,” Review and Herald, 7 de setembro de 1933, pp. 5–6.
47 “Wilcox to Froom,” 5 de agosto de 1928.
48 Wilcox, “The Study of the Bible,” pp. 2, 6.
49 LeRoy Edwin Froom, Movement of Destiny (Washington, DC: Review and Herald, 1971), pp. 417–418; Jeffrey A. Gang, “F. M. Wilcox and the Spirit of Prophecy: A Study of His Teaching Concerning the Authority and Role of Ellen White and the Spirit of Prophecy from 1915 to 1930,” artigo de pesquisa, Andrews University, 1994, p. 20.
50 Jon Paulien, “The Interpreter’s Use of the Writings of Ellen G. White,” em Daniel and Revelation Committee Series, vol. 7, Symposium on Revelation: Exegetical and General Studies, Vol. 2, e. Frank B. Holbrook (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, General Conference of Seventh-day Adventists, 1992), pp. 163–174. Ver, também, Gerhard Pfandl, “Ellen G. White and Hermeneutics,” em Biblical Research Institute Studies, vol. 1, Understanding Scripture: An Adventist Approach, e. George W. Reid (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 2006), pp. 309–328; Frank M. Hasel, “Ellen G. White’s Use of Scripture,” em The Gift of Prophecy in Scripture and History, ee. Alberto R. Timm e Dwain N. Esmond (Silver Spring, MD: Review and Herald, 2015), pp. 297–315.