O Mandamento do Sábado em Deuteronômio 5:12–151
Ekkehardt Mueller é diretor associado do Instituto de Pesquisas Bíblicas da Associação Geral. Antes de se juntar ao instituto, o Pastor Mueller atuou como Pastor e Ministerial por mais de duas décadas. Atualmente, ele está muitíssimo envolvido em escrever artigos e lecionar classes ao redor do mundo. Ekkehardt adora jardinagem e pintura. Boa música é também um elemento importante no lar de Ekkehardt, sendo sua esposa Geri uma professora de música. Quando seus filhos, Eike e Eno, estão em casa, o “quarteto” está completo.
Tradução: Hugo Martins
O artigo “O Mandamento do Sábado em Deuteronômio 5:12–15” (Original em Inglês: “The Sabbath Commandment in Deuteronomy 5:12–15”), por Ekkehardt Mueller, fora publicado, inicialmente, pelo Adventist Biblical Research Institute. Usado com permissão.
O mandamento do sábado em Êxodo 20:8–11 é importante para o judaísmo e bastante conhecido no cristianismo, especialmente no adventismo. Além da Escritura, as pessoas o imprimiram em catecismos e diferentes tipos de literatura. Aparece em pinturas e é gravada em placas de pedra ou metal. O estudo do mandamento do sábado aparenta ter um interesse crescente mesmo entre estudiosos e teólogos não adventistas que podem não pretender guardar o sábado bíblico.2 No entanto, a maioria dos cristãos leigos não está familiarizada com a repetição do mandamento do sábado em Deuteronômio 5:12–15.
Uma comparação do mandamento do sábado em Êxodo 20:8–11 com o mesmo mandamento em Deuteronômio 5:12–15 é intrigante. Por um lado, as semelhanças entre o Decálogo de Êxodo 20 e o de Deuteronômio 5 são impressionantes. Por outro lado, há uma série de diferenças que podem confundir o leitor e levantar sérios questionamentos. Um estudioso cristão conservador argumenta que ocorreu uma mudança real entre o mandamento do sábado em Êxodo e o de Deuteronômio — “o sábado agora fala de redenção, não de criação,” dando assim “justificativa para a observância pelo cristão do domingo em vez do sábado.”3 Neste pequeno artigo, discutiremos semelhanças e diferenças entre Êxodo 20:8–11 e Deuteronômio 5:12–15, veremos brevemente as duas passagens e, em seguida, focaremos mais extensivamente no mandamento do sábado, conforme encontrado em Deuteronômio.
Semelhanças e Diferenças entre Êxodo 20:8–11 e Deuteronômio 5:12–15
A lista a seguir contém os mandamentos do sábado de Êxodo 20 e Deuteronômio 5 em uma tradução bastante literal. Essa exibição permite uma comparação fácil. As semelhanças que aparecem exatamente nos mesmos lugares estão sublinhadas. Aquelas encontradas em lugares diferentes dentro das duas passagens estão em negrito.
Êxodo 20 |
Deuteronômio 5 |
8 Lembre-se do dia de sábado, para o santificar. |
12 Guarde o dia de sábado, para o santificar, como o Senhor, seu Deus, lhe ordenou. |
9 Seis dias você trabalhará e fará toda a sua obra, |
13 Seis dias você trabalhará e fará toda a sua obra, |
10 mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor, seu Deus. Não faça nenhum trabalho nesse dia, nem você, nem o seu filho, nem a sua filha, nem o seu servo, nem a sua serva, [e] nem o seu animal, nem o estrangeiro das suas portas para dentro. |
14 mas o sétimo dia é o sábado dedicado ao Senhor , seu Deus; não faça nenhum trabalho nesse dia, nem você, nem o seu filho, nem a sua filha, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento e qualquer outro dos seus animais, nem o estrangeiro das suas portas para dentro, para que o seu servo e a sua serva descansem como você. |
11 Porque em seis dias Yahveh fez os céus e a terra, o mar e tudo o que neles há e, ao sétimo dia, descansou; por isso o Senhor abençoou o dia de sábado e o santificou. |
15 Lembre-se de que você foi escravo na terra do Egito e que o Yahveh, seu Deus, o tirou de lá com mão poderosa e braço estendido. Por isso Yahveh, seu Deus, ordenou que você guardasse o dia de sábado. |
Esta lista mostra que há um alto grau de correspondência nos três primeiros versículos de ambas as listas. No entanto, mesmo nesta seção, o mandamento do sábado em Deuteronômio é mais longo do que o de Êxodo.
Enquanto Êxodo 20:8 começa com “lembrar”, Deuteronômio 5:12 começa com “guardar”. A palavra “lembrar” também aparece em Deuteronômio, porém, apenas em 5:15. Embora dois verbos diferentes sejam usados — “lembrar” e “observar” — o conceito é o mesmo.4 Ambos os versículos — Êxodo 20:8 e Deuteronômio 5:12 — enfatizam que o sábado deve ser santificado. “O sábado pertence ao Senhor e deve ser usado para os propósitos de Deus, não para os nossos (Is 58:13). É o dia de Deus (Êx 16:12, 25; 31:15).”5 Deuteronômio 5:12 acrescenta uma frase que não aparece em Êxodo: “como o Senhor , seu Deus, lhe ordenou.” Assim, o primeiro versículo do mandamento do sábado em Deuteronômio possui uma expansão homilética. Lembra os ouvintes e leitores da fonte suprema de autoridade.
Êxodo 20:9 e Deuteronômio 5:13 são idênticos.
O terceiro verso em ambas as listas é novamente bastante semelhante. Deuteronômio insere “e” antes de “servo”, acrescenta “seu boi e seu jumento” e a palavra “qualquer” (literalmente “todos”) antes de “seu gado”, e elabora sobre o servo e a serva no final de este versículo. O termo “descansar”, encontrado aqui em Deuteronômio, também está no último versículo da passagem do Êxodo. Enquanto em Êxodo 20:11 Deus descansou, em Deuteronômio 5:14 os humanos descansam.
Até agora, encontramos principalmente expansões do texto de Êxodo em Deuteronômio. No entanto, há pouca semelhança entre os últimos versículos das duas passagens do sábado. Diversos termos são correspondentes, a saber, “Yahveh”, “o dia de sábado”, “portanto”, “terra” e “para/que.”6 Mas o tema é bem diferente. Enquanto Êxodo se concentra na criação, Deuteronômio enfatiza a libertação e, portanto, a redenção do Egito. Teologicamente, os dois conceitos são complementares7 e apontam para o rico significado teológico do sábado.8 O sábado nos lembra da criação. O sábado também está claramente ligado à salvação. Deuteronômio expande seu significado, tornando-o um memorial de redenção.
A partir de alguns termos e frases importantes, surge a seguinte imagem:
Termo ou Frase |
Ocorrências |
Ocorrências |
em Êxodo. |
em Deuteronômio |
|
Sábado |
3 |
3 |
Dia |
6 |
4 |
Santificar |
2 |
1 |
Yahveh |
3 |
4 |
Yahveh seu Deus |
1 |
4 |
Como Yahveh seu Deus lhe ordenou |
– |
2 |
Seis |
2 |
1 |
Sétimo |
2 |
1 |
Você deve/não deve fazer todo o seu trabalho |
2 |
2 |
Servir/servo |
1 |
4 |
servo/serva |
1 |
2 |
Fazer |
3 |
3 |
fazer (Deus) |
1 |
– |
fazer (humanidade) |
2 |
3 |
Os céus, a terra, o mar e tudo o que neles há |
1 |
– |
Esta lista aponta para algumas das diferenças importantes em ambas as passagens. A maioria deles se deve às expansões em Deuteronômio e às diferentes razões para a guarda do sábado fornecidas em ambas as versões. A ênfase na celebração da criação em Êxodo 20:8–11 produz uma linguagem relacionada à criação (“os céus, a terra, o mar e tudo o que neles há”), destaca os seis dias da criação e o sétimo dia de descanso mais frequentemente, e usa o verbo “fazer” não apenas para a humanidade, mas também para Deus em Sua atividade criativa, enquanto a ênfase na celebração da redenção9 em Deuteronômio 5:12–15 enfatiza a servidão e o serviço, bem como a libertação dela.10 Portanto, na passagem de Deuteronômio, a terminologia “servir” é empregada com mais frequência do que na passagem de Êxodo.
A frase “como o Senhor, seu Deus, lhe ordenou” aparece duas vezes em Deuteronômio 5:12–15, mas não em Êxodo 20:8–11. Isso explica o uso mais frequente dos nomes divinos na passagem de Deuteronômio. Enquanto Êxodo 20:8-11 usa com mais frequência um dos nomes de Deus, “Yahveh”, Deuteronômio emprega apenas a frase “Yahveh, seu Deus.” Assim, a passagem do Êxodo tem um tom mais pessoal; por outro lado, soa mais universal. A frase “como o Yahveh seu Deus, lhe ordenou” engloba o mandamento do sábado em Deuteronômio 5 e forma uma inclusão, apontando para Deus dando o Decálogo no Monte Sinai. Uma inclusão é uma estrutura involucra envolvendo outro material.
Enquanto Deuteronômio 5 menciona uma única vez o ato de santificar o sábado, Êxodo 20 usa o termo hebraico duas vezes. No entanto, em Êxodo 20 é a humanidade que uma vez é chamada para santificar o dia e Deus que o torna santo. A referência a Gênesis 2:2–3 requer uma repetição do termo em Êxodo 20. A santificação do sábado por Deus está ausente em Deuteronômio 5 porque a referência à criação é substituída pela referência à experiência do Êxodo.
No entanto, ambos os mandamentos compartilham um esboço comum:
Primeiro preceito: |
Lembrar-se/santificar sábado (Êx 20:8; Dt 5:12) |
Segundo preceito: |
Trabalhar seis dias (Êx 20:9; Dt 5:13) |
Terceiro preceito: |
Não trabalhar no sétimo dia (Êx 20:10; Dt 5:14) |
Razões: |
Criação/salvação (Êx 20:11; Dt 5:16) |
As principais diferenças entre as duas formas do mandamento do sábado não são o chamado para lembrar o sábado versus o chamado para observá-lo, mas as razões fornecidas para santificá-lo.. Embora as razões sejam diferentes, a obrigação de guardar o sábado permanece a mesma. No entanto, a origem do sábado não é declarada em Deuteronômio. O sábado não é instituído por causa do êxodo do Egito. O sábado é baseado na criação. Mas o povo é chamado a obedecer ao mandamento por causa da criação e salvação experimentada no êxodo.11
O Mandamento do Sábado de Êxodo 20
O mandamento do sábado em Êxodo 20 começa e termina com as mesmas três palavras hebraicas formando novamente uma inclusão.
Lembre-se |
do dia do sábado para santificá-lo (Êx 20:8) |
Porque Yahveh abençoou |
o dia do sábado e o santificou. (Êx 20:11) |
Êxodo 20 contém uma ênfase especial na santidade do sábado. Essa santidade e a bênção divina do dia estão associadas a um ato histórico, a criação em seis dias. O mandamento pode ser descrito da seguinte forma:
A santidade do sábado: mandamento (Êx 20:8)
Trabalhar em seis dias: mandamento (Êx 20:9)
Nenhum trabalho no sétimo dia: mandamento (Êx 20:10)
A santidade do sábado: o exemplo de Deus na criação e sua bênção (Êx 20:11)
Êxodo 20:11 é importante porque faz uma declaração sobre a origem do sábado e oferece uma razão para sua observância, a saber, a atividade criativa de Deus. Deus criou a terra e a vida nela e instituiu o sábado logo no início da história deste mundo. O verso 11 descreve o que o Senhor estava fazendo durante a semana da criação. Quatro áreas relacionadas à criação são mencionadas: céu, terra, mar e tudo o que há neles. No entanto, com relação ao sétimo dia, três atividades de Deus são enfatizadas: Ele descansou, abençoou o sábado e o santificou. Elas aparecem na mesma ordem em Gênesis 2:2-3.12
A justificativa do Êxodo para guardar o sábado é o chamado para imitar a prática de Deus, o Criador — interromper o trabalho, descansar, refletir e participar de sua santidade e bem-aventurança.13 Miller também sugere que o mandamento do sábado em Êxodo reflete uma teologia cosmológica e não é tão determinado pela experiência quanto o de Deuteronômio.14 Novak enfatiza a visão universalista do sábado na versão do Êxodo do Decálogo. Não é apenas para Israel ou os judeus. “Isso implica que a experiência de todas as pessoas da criatividade de Deus não apenas é, mas deve ser a mesma que a dos judeus.”15
O Mandamento do Sábado em Deuteronômio 5
O mandamento do sábado em Deuteronômio 5 também contém uma inclusão, mas é um pouco diferente. Em vez dos três termos presentes no início e no final da passagem do Êxodo, apenas dois correspondem diretamente em Deuteronômio: “o dia de sábado.”16 O infinitivo “santificar” é substituído pelo termo hebraico traduzido como “guardar.” No entanto, também encontramos no início e no final da passagem uma frase que não ocorre em Êxodo:
Guarde o dia de sábado, para o santificar,
como Yahveh, seu Deus, lhe ordenou (Dt 5:12)
. . . Por isso Yahveh, seu Deus, ordenou que você
guardasse o dia de sábado (Dt 5:15).
Deuteronômio 5 enfatiza que a guarda do sábado é ordenada pelo “Senhor seu Deus.” Além disso, há uma forte ênfase na atividade redentora de Deus, que, como a criação em Êxodo 20, é um ato histórico. O mandamento do sábado em Deuteronômio 5 pode ser delineado da seguinte maneira:
Observância do sábado: ordenado por Yahveh seu Deus (Dt 5:12)
Trabalhar em seis dias: mandamento (Dt 5:13)
Nenhum trabalho no sétimo dia: mandamento (Êx 5:14)
Observância do sábado: ordenado por Yahveh seu Deus, que lhe libertou da escravidão (Dt :15)
Enquanto em Êxodo a lembrança do sábado está associada à criação, em Deuteronômio o povo de Deus é chamado a guardar o sábado ao se lembrar de sua libertação. É mais orientado à experiência. Em ambos os casos, o elemento lembrar e olhar para as grandes coisas que o Senhor fez está presente. Deus age na história humana. Seus atos poderosos são lembrados ao guardar o sábado. Mas o ato de lembrar também tem uma perspectiva prospectiva, a saber, lembrar para obedecer.
O Mandamento do Sábado em Deuteronômio em Seu Contexto
Após observar as semelhanças básicas, mas também as diferenças entre os dois mandamentos do sábado, como explicamos essas diferenças?
Notamos que o mandamento do sábado em Deuteronômio 5 contém as frases “como Yahveh, seu Deus, lhe ordenou” e “Por isso Yahveh, seu Deus, ordenou você.” Deuteronômio 5:15”. Essas frases diferem apenas em relação à primeira palavra. No entanto, tais frases não se limitam ao mandamento do sábado. “Como Yahveh, seu Deus, lhe ordenou” se repete no mandamento seguinte: “Honre o seu pai e a sua mãe, como Yahveh, seu Deus, lhe ordenou” (Dt 5:16). Aparece novamente em Deuteronômio 5:33, fora do Decálogo, mas ainda no mesmo contexto. Considerando que o singular foi usado dentro dos Dez Mandamentos, agora aparece o plural: “como Yahveh seu [plural] Deus lhe [plural] ordenou.” Uma fórmula semelhante ocorre em Deuteronômio 5:33; 6:1, 17, 20 e 25. O plural pode indicar que em Deuteronômio temos um “sermão” dirigido ao povo.
Moisés está falando com Israel. Ele reitera os Dez Mandamentos, bem como outras leis e advertências. Ao recitar o Decálogo, ele insere as palavras “como/por isso como Yahveh, seu Deus, lhe ordenou,” enfatizando, assim, que os Dez Mandamentos tem origem divina e são autoritativos. Êxodo 20:1 declara: “Então Deus falou todas estas palavras. . . .” Deuteronômio é diferente:
Face a face o Senhor falou conosco, no monte, do meio do fogo. Naquela ocasião, eu me coloquei entre o Senhor e vocês, para lhes anunciar a palavra do Senhor, porque vocês ficaram com medo do fogo e não subiram o monte. Disse ele . . . (Dt 5:4–5).
Obviamente, em Êxodo encontramos os Dez Mandamentos proclamados pelo Senhor,17 enquanto em Deuteronômio o Decálogo é afirmado por Moisés.
Enquanto Moisés repete os Dez Mandamentos, ele aparentemente os comenta em diversas ocasiões. Esses comentários são menores e não alteram o significado ou a autoridade da lei de Deus. Nos mandamentos do sábado em Êxodo e Deuteronômio, apenas as razões para guardar o sétimo dia diferem. A ordem para guardar o sábado permanece intacta. Em Deuteronômio 18:15, que aponta para Jesus como o profeta, Deus chama Moisés de profeta. Assim como o povo de Israel foi obrigado a obedecer ao que Moisés lhes disse em nome do Senhor, as pessoas são chamadas a obedecer ao profeta semelhante a Moisés, Jesus,18 que proclamou a sua lei no Sermão da Montanha e que por meio de sua vida exemplificou como Ele se relacionava com a lei de Deus, apoiando plenamente o Decálogo. Em outras palavras, os comentários de Moisés sobre o Decálogo foram feitos sob inspiração, assim como Jesus séculos depois. Moisés agiu como profeta. Seus comentários fornecem luz adicional sobre a vontade e o caráter de Deus, embora em um nível literal eles não fizessem parte do Decálogo,19 proclamado por Deus no Sinai. Em Deuteronômio, Moisés pode ter expressado o significado especial dos Dez Mandamentos para Israel, enquanto através da referência à criação o Decálogo em Êxodo é mais universal.20
Deuteronômio 5:22 se refere à experiência do Sinai, declarando que ali ocorreu uma teofania, ali Deus falou a Israel, e ali o Decálogo foi escrito em tábuas de pedra. A frase “e não acrescentou mais” enfatiza que o Decálogo era limitado em conteúdo. Nenhum outro mandamento fazia parte dele. “Destaca a autoridade especial ‘canônica’ do Decálogo.”21 “Estas palavras” são os Dez Mandamentos encontrados em Êxodo 20, que foram repetidos de maneira ligeiramente modificada em Deuteronômio 5. Importante não irmos além do que o verso está tentando dizer. Obviamente, o Decálogo encontrado em Êxodo 20 foi escrito em tábuas de pedra, mas a repetição de Moisés em Deuteronômio 5 ainda está de acordo com a versão proclamada pelo próprio Senhor.22
Um olhar mais atento ao verso 22 revela que “a estrita ordem cronológica dos eventos não é a principal preocupação da narrativa.”23 As tábuas de pedra que existiam quando Moisés reiterou o Decálogo foram aquelas escritas por Deus após o incidente com o bezerro de ouro (Êx 34:1)—essas eram o segundo conjunto, criado depois que o primeiro foi quebrado por Moisés (Êx 32:19); não há o primeiro conjunto como Deuteronômio 5:22 parece indicar. No entanto, o texto nessas tábuas deve ter sido idêntico ao texto em Êxodo 20.
Ao omitir uma referência aos outros mandamentos, que não faziam parte do Decálogo, e adiá-los para mais tarde, bem como mencionar a inscrição do Decálogo em tábuas de pedra imediatamente após sua recitação, Moisés enfatiza a singularidade dos Dez Mandamentos e os destaca entre as outras leis. Mas isso significa que Deuteronômio 5:22 contém uma lacuna histórica, mas sem carecer de confiança. Em muitas partes das Escrituras são empregados resumos de eventos que não apontam para cada pequeno detalhe.24 No entanto, isso também significa que o texto não pode ser pressionado para denotar que o palavreado preciso de Deuteronômio 5:6–21 deve ter sido o texto contido nas tábuas de pedra ou que há uma contradição entre Deuteronômio 5:22 e Êxodo 24:12 e 31:18, baseados em Êxodo 20. Uma interpretação literal do texto o priva de sua intenção teológica.
Portanto, temos que nos voltar para a questão dos efeitos que as adições e ampliações de Moisés têm no Decálogo. Já notamos que a frase “como/por isso Yahveh, seu Deus, lhe ordenou” enfatiza a origem divina do Decálogo, bem como do sábado. Como essa frase é repetida no quinto mandamento, ela une os mandamentos de guardar o sábado e honrar os pais. Em ambos, o aspecto relacional é fortemente enfatizado. Além disso, a chamada primeira tábua da lei – mandamentos com foco no relacionamento da humanidade com Deus – e a chamada segunda tábua da lei – mandamentos que enfatizam as relações interpessoais – estão ligadas. Miller fala sobre um elo funcional do mandamento do sábado.25 Este conceito é reforçado pela ênfase específica em servos e servas, duas vezes presentes no verso 14 e elaborado no verso 15, quando a escravidão e a libertação de Israel são narradas.
“Como Yahveh ordenou” (vv. 12, 15, 16) comunica a consciência de que esta listagem do Decálogo é uma “segunda entrega” na encenação dramática de Deuteronômio, uma citação de algo já ouvido no passado. Como uma “citação primária” (cp. 4:23; 6:17; 13:6 [ET 5]; 20:17), ela sinaliza ao leitor que um texto anterior está sendo usado. Apropriadamente, esta frase aparece apenas nos mandamentos relativos ao sábado e aos pais, os dois que positivamente “ordenam” (em vez de proibir) comportamentos. Além disso, como esses dois mandamentos são os únicos cujas motivações diferem das de Êxodo 20, “como Yahveh ordenou” pode-se enfatizar que os próprios imperativos foram transmitidos inalterados, mesmo que as motivações tenham sido ampliadas.26
Em Deuteronômio 5:15 “a terra do Egito” aparece. A mesma expressão aparece em Deuteronômio 5:6, o primeiro mandamento.27 Além disso, o verbo “tirar,” nome divino “Yahveh, seu Deus” e o termo “escravo” ocorrem em ambos os versos. Portanto, em Deuteronômio, o mandamento do sábado está ligado de maneira especial ao primeiro mandamento. Ao guardar o sábado, aceitamos Yahveh Elohim como o único Deus e Senhor, e rejeitamos todos os outros deuses e ídolos. Ao mesmo tempo, desfrutamos de libertação e salvação.
Mas não há apenas conexões com o primeiro e o quinto mandamentos. Deuteronômio 5:14 contém a adição “seu boi e seu jumento.” Em vez de falar apenas de animais em geral, Moisés parece mencionar deliberadamente boi e jumento. Boi e jumento são encontrados na mesma ordem e com as mesmas palavras hebraicas em Deuteronômio 5:21, o décimo mandamento. Assim, o mandamento do sábado e o mandamento de não cobiçar estão associados. Quem encontra descanso no Senhor no dia de sábado, também descansa da cobiça e da ganância de bens materiais, especialmente os que pertencem ao próximo.
Deuteronômio também agrupa os mandamentos nos vv. 17–20 com “e.” Juntar esses últimos mandamentos com conjunções, forma-os em um bloco coeso e cria um padrão concêntrico de unidades textuais mais longas e mais curtas que colocam o mandamento do sábado no centro do padrão.28 Os versículos 6–11 descrevem os deveres de uma pessoa para com Yahveh e os vv. 16-21 lidam com relacionamentos entre humanos. Ao lidar com esses dois tópicos simultaneamente, o mandamento do sábado deuteronômico forma um ele entre essas duas seções.29
Conclusão
O mandamento do sábado em Deuteronômio concorda completamente com o de Êxodo 20 de que o sábado deve ser santificado e que após seis dias de trabalho a humanidade deve descansar no sétimo dia específico, o sábado. Existem algumas diferenças no que diz respeito às razões apresentadas. Moisés, ao repetir o mandamento do sábado, — sob inspiração — fez algumas expansões sem precedentes que ligaram o mandamento do sábado ao restante dos Dez Mandamentos, de modo que o Decálogo culmina no mandamento do sábado. Isso foi reconhecido pelos estudiosos: “Deuteronômio é mais explícito do que Êxodo em relação ao mandamento do sábado.”30 “A formulação distinta de Deuteronômio dos Dez Mandamentos aumenta a importância do sábado.” O mandamento do sábado “está no centro do padrão [estrutural]. O mandamento do sábado recebe uma posição central e mediadora.”31
O que tudo isso significa é que o sábado tem preeminência em Deuteronômio. . . . Os dois mandamentos principais – adoração única ao Senhor como Deus e santificação do sétimo dia – não surpreendentemente nos apontam para as duas características principais do livro de Deuteronômio: sua reivindicação radical de adoração exclusiva ao Senhor e suas sensibilidades humanitárias. . . . Junto com os profetas, a ordem de guardar o sábado é o principal impulso bíblico para a justiça social na comunidade humana.32
Embora o aspecto de justiça social do sábado deva ser enfatizado, Weinfeld aponta que o sábado ainda tem uma “natureza teocêntrica.”33 Portanto, não é de se admirar que no livro de Apocalipse a lei moral e especialmente o sábado apareçam no centro do palco durante o último conflito na terra. Os Dez Mandamentos são referidos indiretamente e mais diretamente em Apocalipse 11:19, 12:17 e 14:12. Em Apocalipse 14:7, guardar o sábado bíblico é parte da proclamação específica do fim dos tempos das três mensagens angélicas, o chamado final de Deus para a humanidade retornar a ele.34
Notas
1 Esta é uma versão revisada de um artigo publicado no Journal of the Adventist Theological Society 14/2 (2003), pp. 141–148.
2 Ver, por exemplo, Carl E. Braaten e Christopher R. Seitz, ee., I Am the Lord Your God: Christian Reflections on the Ten Commandments (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005); Walter Brueggemann, Sabbath as Resistance: Saying No to the Culture of Now (Louisville, KY: Westminster John Knox, 2014); Richard H. Lowery, Sabbath and Jubilee (St. Louis, MO: Chalice, 2000); Mark F. Rooker, “The Ten Commandments: Ethics for the Twenty-First Century,” NAC Studies in Bible & Theology (Nashville, TN: Broadman and Holman, 2010); Roger E. Van Harn, e., The Ten Commandments for Jews, Christians, and Others (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2007); Norman Wirzba, Living the Sabbath: Discovering the Rhythms of Rest and Delight (Grand Rapids, MI: Brazos, 2006).
3 Eugene H. Merrill, Deuteronomy, The New American Commentary (Nashville, TN: Broadman e Holman, 1994), p. 152. Se os argumentos de Merrill fossem verdadeiros, o sábado não deveria estar associado à criação no Novo Testamento. No entanto, está. Ver Ekkehardt Mueller, “Creation in the New Testament,” Journal of the Adventist Theological Society, 15/1 (2004): 47–62. Também nos perguntamos sobre a permanência de qualquer mandamento bíblico, se diferenças nas cláusulas motivacionais, não nos próprios mandamentos, supostamente significam uma mudança na prática (cp. Êx 20:12, Dt 5:26 e Mt 15:4; ou Êx. 20:13 e Mt 5:21–22). Tal abordagem pode levar ao relativismo puro.
4 Ver Rooker, pp. 76–78. Isso é contestado por Moshe Weinfeld, Deuteronômio 1–11, The Anchor Bible (New York: Doubleday, 1991), p. 303, que distingue entre “observância da lei” em Deuteronômio e “recordação histórica” em Êxodo. Merrill, p. 150, no entanto, opta pelos dois termos como sinônimos, mas sugere que “šãmar [Dt 5:12] implica mais uma participação ativa.”
5 Roker, p. 80.
6 Em Êxodo a terra inteira é abordada, enquanto em Deuteronômio o termo é limitado à terra do Egito. O termos em português “para” e “que” são traduções do mesmo termo hebraico.
7 Cp., P. C. Craigie, The Book of Deuteronomy, New International Commentary on the Old Testament (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1976), p. 157.
8 Cp., Duane L. Christensen, Deuteronomy 1–11, Word Biblical Commentary 6A (Dallas, TX: Word, 1991), p. 118.
9 Ver Craigie, p. 157. David Novak, “The Sabbath Day,” em The Ten Commandments for Jews, Christians, and Others, e. R. E. Van Harn (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2007), fala sobre o “significado histórico-político do sábado” de Deuteronômio e o “significado ontológico” do sábado em Êxodo.
10 S. R. Driver, A Critical and Exegetical Commentary on Deuteronomy, The International Critical Commentary (Edimburgo: T. & T. Clark, 1895), p. 85, fala sobre um “motivo filantrópico.”
11 Cp., Rooker, p. 84.
12 O termo “descansar” aparece em Gênesis 2:2 e em 2:3. O verbo “descansar” em Gênesis 2 é diferente do verbo “descansar” em Êxodo 20. Em Gênesis 2, o verbo shabbat aponta para o sábado, embora o substantivo “sábado” não seja mencionado diretamente. Êxodo 20 emprega o substantivo “sábado” e usa o verbo sinônimo nuach para “descansar.”
13 Ver Patrick D. Miller, The Ten Commandments, Interpretation: Resources for the Use of Scripture in the Church (Louisville, KY: Westminster John Knox, 2009), p. 125.
14 Miller, The Ten Commandments, p. 126.
15 Novak, p. 75. Miller, The Ten Commandments, p. 124, confirma esta observação afirmando: “Se a lógica deuteronômica . . . conecta o sábado à experiência particular de Israel, a lógica do Êxodo o conecta à experiência humana mais ampla.” Telford Work, Deuteronômio, Brazos Theological Commentary on the Bible (Grand Rapids, MI: Brazos, 2009), p. 80, declara: “Mas o mandamento do sábado não é menos cerimonial e não menos obrigatório do que os que vêm antes dele, e não menos político e moral do que os que se seguem.” Daniel I. Block, Deuteronomy, The NIV Application Commentary (Grand Rapids, MI: Zondervan, 2012), p. 165, aponta para o mandamento do sábado como “uma ordenança fundamentalmente ética.”
16 Cp., Christensen, p. 117.
17 Ver Êxodo 20:18–23; Deuteronômio 9:10
18 Ver João 6:14; Atos 3:17–26.
19 Markus Bockmuehl, “’Keeping It Holy’: Old Testament Commandment and New Testament Faith,” em I Am the Lord Your God: Christian Reflections on the Ten Commandments, ee. E. Braaten and Christopher R. Seitz (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2005), pp. 115–116, mostra que “além de um aparte notoriamente enigmático e talvez irônico em João (5:16-18), nenhum texto do Evangelho aceita que Jesus intencionalmente ou mesmo inadvertidamente quebra o sábado. De fato, em várias ocasiões nos Sinóticos ele cita visões estabelecidas sobre o sábado que parecem se encontrar com o acordo tácito de seus oponentes farisaicos. . .” Mas descansar para Jesus não significa apenas que uma pessoa descanse, mas também proporcionar descanso aos outros. Ver, também, Jack R. Lundbom, Deuteronomy: A Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2013), p. 281. Michael H. Burer, Divine Sabbath Work (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2012), pp. 112–135, discute duas passagens importantes nos Evangelhos, Lucas 13:10–17 e João 5:1–30. Ele conclui que “Lucas retrata Jesus como um profeta escatológico que entende o significado do sábado melhor do que seus contemporâneos. É o dia mais apropriado da semana para uma mulher israelita ser curada, porque é o dia em que se comemora o ato de libertação de Deus durante o êxodo de Israel do Egito” (p. 138). A passagem em Lucas 13, portanto, alude ao mandamento do sábado de Deuteronômio que ele já mencionou (p. 119). A passagem em João 5, com seu centro nos versículos 17 e 18, entende Jesus trabalhando no sábado como Deus Pai trabalha no sábado, abençoando seu povo e dando vida, bem como julgando (p. 138). Assim, seu ministério de cura no sábado enfatiza a divindade de Jesus (p. 135).
20 Veja, por exemplo, a nota de rodapé 4 e o uso do termo “terra” em ambas as passagens.
21 Richard D. Nelson, Deuteronomy: A Commentary, The Old Testament Library (Louisville, KY: Westminister John Knox, 2002), p. 84.
22 C. F. Keil e F. Delitzsch, Old Testament Commentaries: Genesis to Judges 6:32 (Grand Rapids, MI: Associated Publishers and Authors, n.d.), p. 471, ao comentar sobre Êxodo 20, afirma: “Mas em vez desta base objetiva para o festival sabático . . ., quando Moisés recapitulou o decálogo, ele aduziu apenas o aspecto subjetivo de descanso ou refrigério (Dt 5:14–15), lembrando o povo, assim como em Ex 23:12, de sua escravidão no Egito e sua libertação pelo braço forte de Jeová, e depois acrescentando: ‘Por isso (para que se lembre desta libertação da escravidão), o Senhor, seu Deus, ordenou que você guardasse o dia de sábado.” Isto não está em desacordo com a razão dada no presente versículo [Êx 20:11], mas simplesmente dá proeminência a um aspecto subjetivo. . .”
23 A. D. H. Mayes, Deuteronomy, The New Century Bible Commentary (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1979), p. 172.
24 Ver, por exemplo, João 20:30–31; 21:25.
25 Miller, The Ten Commandments, p. 127. “Aponta para frente e faz parte daquele conjunto de mandamentos que tem a ver com a maneira de tratar o próximo . . .”, p. 127.
26 Nelson, pp. 82–83.
27 Ver, também, Êxodo 20:2.
28 Em uma nota de rodapé Nelson, p. 82, afirma: “Longa (vv. 6–10), curta (v. 11), a unidade longa no sábado (vv. 12–15), curta (v.16), longa (vv. 17-21). . .”
29 Nelson, pp. 81–82. Ver, também, Miller, The Ten Commandments, pp. 128–129.
30 Earl S, Kalland, “Deuteronomy,” em Expositor’s Bible Commentary, vol. 3, e. F. E. Gaebelein (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1992), p. 55.
31 Nelson, pp. 81–82. ver, também, Miller, The Ten Commandments, p. 128 e Patrick D. Miller, Deuteronomy, Interpretation: A Bible Commentary for Teaching and Preaching (Louisville, KY: John Knox, 1990), p. 79. Neste comentário, pp. 81–83, ele elabora os seguintes pontos: (1) “o sábado é uma dádiva de Deus tanto quanto é uma ordem.” (2) “Como dom, o caráter primário do sábado é o descanso.” (3) “Como descanso, o sábado remonta à redenção do êxodo.” (4) “Como descanso, o sábado também aguarda o descanso prometido de Deus.” (5) “A santificação do sábado serve para guardar o primeiro e o segundo mandamento.” (6) “Separar um dia regularmente para o Senhor inibe a inclinação humana para se justificar por serviço ou trabalho.” (7) “O sábado é uma das marcas do povo de Deus.” (8) “As dádivas do sábado são para todos.”
32 Miller, p. 129. Mark E. Biddle, Deuteronomy, Smyth & Helwys Bible Commentary (Macon, GA: Smyth & Helwys, 2003), p. 111, aponta corretamente para a questão da escravidão contida indiretamente no mandamento do sábado e chega à seguinte conclusão: “Infelizmente, Israel falhou em reconhecer a ironia de uma nação de escravos libertos continuando a escravizar outros. Posteriormente, a igreja também falhou em perceber a cruel disparidade entre os laços da escravidão e a liberdade em Cristo (Gl 3:27–28). Porque Israel falhou em reconhecer as implicações do fato de que Deus os libertou da escravidão, o Decálogo deve declarar explicitamente que o sábado significa descanso também para os escravos.” Infelizmente, ele perde o ponto de que a igreja também falhou em guardar o sábado, o sétimo dia em vez do domingo, concentrando-se em Deus na adoração e reflexão e abstendo-se do trabalho como o Senhor ordenou.
33 Weinfeld, p. 306. Ver, também, p. 304: “. . . o sábado pertence à esfera divina e não é originalmente uma instituição social-humanista. . .”
34 Este verso contém as palavras do mandamento do sábado como aparece em Êxodo 20:11, e, portanto, inclui um chamado para observar o sábado e honrar a Deus como o Criador. Ellen G. White, Spiritual Gifts, Vol. I (Washington: Review and Herald Publishing Association, 1945), p. 164, em um parágrafo intitulado “A Mensagem do Terceiro Anjo,” escreveu: “. . . eles veem o quarto mandamento vivendo entre os dez santos preceitos, enquanto uma luz brilha mais sobre ele do que sobre os outros nove, e uma auréola de glória está ao redor dele.”