“Filho do Homem” no Judaísmo Enóquico (Textos Apócrifos)
Rev. S. Manohar Pradeep é um ministro ordenado da Igreja Batista do Sul da Índia. Atualmente serve como pastor em Bengaluru. Ele conclui seu bacharelado no seminário da United Theological College, e obteve o mestrado em Teologia e Ética. Anteriormente, ele cursou Psicologia Forense.
Tradução: Hugo Martins
““Filho do Homem” no Judaísmo Enóquico (Textos Apócrifos)” [Original em Inglês: “Son of man in Enochic Judaism (Apocryphal Texts)”]. Usado com permissão.
Introdução:
O imaginário do Filho do Homem como juiz, salvador e divino no QE1 e na literatura enóquica me chamou atenção e me levou a escolher este tema. Eu preferi usar o Livro de João em lugar dos evangelhos sinóticos porque J. A. T Robinson afirmou em 1948 que o QE foi escrito primeiro. QE apresenta não só a pessoa e obra de Jesus, mas também coloca criativamente a identidade de Deus, ganhando mais importância. A identidade de Jesus no QE é muito bem apresentada através do imaginário e símbolos cristológicos ressaltados. Veremos a resposta dos pais da igreja que pertence à escola alexandrina nos próximos capítulos. Gostaria de chamar a atenção dos leitores para o livro de João2 no cânone hebraico e o Livro de 1 Enoque (apócrifo) que contêm o título “filho do homem.”
Título Filho do Homem:
O título “Filho do homem” é encontrado tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Encontramos este título mais nas narrativas do Antigo do que no Novo Testamento, especialmente no Livro de Ezequiel. Este imaginário engloba várias conotações e significados no cânone protestante e nos escritos apócrifos. No cânone protestante, encontramos este título nos livros de Números, Jó, Salmos, Isaías, Jeremias, Ezequiel, Daniel, Mateus, Marcos, Lucas, João, Atos e Hebreus e no Apocalipse. No AT, “Filho do homem” é uma expressão idiomática de falar com um ser humano. (Salmos: 8:4, 80:17, Ezequiel: 2:1, 6).3 Nas narrativas do Antigo Testamento, especialmente nos Profetas Maiores, Deus se dirige às pessoas como mortais comparando a fraqueza dos seres humanos com a majestade divina. Alguns estudiosos argumentam que esse título foi usado para identificar pessoas fiéis a Deus, outros argumentam se tratar de um ser angelical, relacionado ao povo de Deus.4 No entendimento judaico (escritos apócrifos), esta imagem foi desenvolvida em uma personagem messiânica apocalíptica (1 Enoque 37-91, 4 Esdras, 2 Esdras, 13). Esta personagem é identificada como agente do juízo e salvação divinos.5 No entanto, isso é contestado entre os estudiosos da Bíblia. O título “Filho do homem” ocorre 13 vezes6 no Livro de João e 13 vezes em 1 Enoque.
Filho do Homem no corpus joanino:
Os evangelhos sinóticos7 e o QE aplicam “Filho do homem” a Jesus Cristo que era, que é e que há de vir. Os sinóticos apresentam diversas referências ao ministério de Jesus e o retratam variadamente. No QE, a primeira ocorrência é simplória. O título está em um padrão de descida ou ascensão (3:14; 8:28) e para a vida eterna (3:15). No QE, porém, Jesus já desceu do céu (como a personagem messiânica em Enoque), capaz de revelar as coisas do alto. QE enfatiza a existência pré-terrena de Jesus e o enxerga como fundamental para o plano da salvação do Evangelho. A linguagem do Filho do Homem estabeleceu um padrão de descida e ascensão que confirma combina o papel de Jesus como revelador e juiz.8 Jesus se autoafirmou discretamente como o filho de Deus que cria o novo povo de Deus (os filhos de Deus) no eschaton, para que eles possam chamar o Deus Criador de “nosso pai” e viverem em seu amor e riqueza.9 Na literatura joanina, o termo lógos é usado com uma compreensão definida do processo de encarnação. Olhando para a natureza e o conteúdo do prólogo joanino, supõe-se que termo lógos concebeu nuances e influências do Targum e Midrash, gnosticismo, especulação de sabedoria judaica e outras variantes religiosas contemporâneas. Fílon de Alexandria definiu lógos enfaticamente.10 Para o corpus joanino, o Lógos não é de forma alguma um ser intermediário e Deus era o Lógos, “o que Deus era o Lógos era.” É evidente a influência do helenismo no pensamento judaico nos séculos posteriores a Alexandre. Algumas das declarações sobre Jesus Cristo soam como Niceia no século IV.11 O uso de “Filho do homem” por João vem das tradições judaicas. Está associado ao juízo (5:25–29, aludindo a Dn 7:14 e Jo 9:35–39), a humanidade de Jesus e sua morte. O uso da tradição judaica por João é atestado no Livro das Parábolas e 4 Esdras, do qual ele emprega o termo enóquico “filho do homem.”12
“Filho do homem” no pensamento judaico pré-cristão:
No pensamento judaico pré-cristão, um conceito geralmente bem definido de uma personagem redentora transcendente, chamada de Filho do Homem, cuja vinda à terra como Juiz caracteriza o cenário do Tempo do Fim. O título Filho do Homem não era uma autodesignação de Jesus, mas foi aplicado a ele pela igreja primitiva através de uma série de equívocos e se tornou a temática fundamental nas várias cristologias primitivas; os poucos ditos autenticamente dominicais de filho do homem nos Evangelhos não se referem a Jesus, mas a uma personagem apocalíptica futura. Apesar da ampla propagação desses pontos de vista, no entanto, há controvérsias e pontos que precisam ser esclarecidos.13 No pensamento judaico pré-cristão, ao lidar com o Filho do Homem, a primeira questão importante tem a ver com a identificação de fontes pré-cristãs, particularmente Daniel 7, 1 Enoque 37–71, e 4 Esdras 13. Primeiro a premissa de que 1 Enoque 37–71 (as ‘Similitudes’ ou ‘Parábolas’) e 4 Esdras 13, juntamente com Daniel 7, representam as expectativas judaicas pré-cristãs em relação ao Filho do Homem como o agente escatológico da redenção. Para tal argumento, não há evidência de data na natureza pré-cristã do Livro II (37–71) do Enoque Etíope, e é incerto deduzir a existência de um conceito sólido de filho do homem no período Intertestamentário de Daniel 7 e 4 Esdras 13 apenas. Há evidências demonstrando que no judaísmo pré-cristão o termo “Filho do Homem” era usado como título messiânico. Em Daniel 7:13 a personagem “como um ser humano” é expressamente identificada com o povo dos santos do Altíssimo, ou seja, com o verdadeiro e final povo de Deus a quem o domínio final é prometido.14 Por esta razão que C. H. Dodd e alguns estudiosos britânicos influenciados por ele neste momento se recusaram a argumentar sobre evidências extraídas das Similitudes, embora pareça haver pouca discrição em aceitar uma origem judaica primitiva para esses capítulos. Além disso, as cavernas de Qumran, embora produzissem porções correspondentes a todos os outros capítulos do Enoque Etíope, não produziram fragmentos da própria Similitude (1 Enoque 37–71).15
Livro de Enoque
Enoque é o nome de quatro pessoas bíblicas. O primeiro é o filho mais velho de Caim (Gn 4:17); o segundo, filho de Jerede (Gn 5:18), o terceiro filho de Midiã (Gn 24:4) e o quarto é o filho mais velho de Ruben (Gn 26:9, Êx 6:14). Destes, apenas o primeiro nos interessa e importa, não apenas por causa do destaque misterioso que lhe foi conferido em Gênesis 5, mas também pelo fato de que um escritor inspirado do Novo Testamento, Judas, em sua carta (V.14), menciona-o como profeta e cita um trecho de um livro atribuído ao patriarca.16
O Livro de Enoque, ou 1 Enoque, é uma coletânea apocalíptica composta aproximadamente entre 350 A.E.C e 50 E.C em nome do patriarca mencionado em Gênesis 5:18–24. A coleção como um todo existe apenas em uma tradução etíope de uma tradução grega de origem aramaica, sendo que onze manuscritos fragmentários foram encontrados dentre os Manuscritos do Mar Morto (Nickelsburg, 1 Enoque 1, 9–20). A forma literária de revelações apocalípticas é geralmente um relato em primeira pessoa de uma visão ou audição que alguém recebeu em um sonho ou em uma ascensão ao céu que poderia ter ocorrido em um sonho. As próprias revelações dizem respeito às coisas ocultas do cosmos e/ou ao julgamento de Deus dos males e injustiças experimentados pelos autores e suas comunidades. Outros exemplos incluem Daniel 7–12, 2 e 3 Baruque, 4 Esdras e o Apocalipse de Abraão.17 Enoque não é apenas uma obra, mas uma grande coleção de escritos apocalípticos. Há cinco composições distintas: O Livro dos Vigilantes (caps. 1–36), Similitudes (caps. 37–71), O Livro Astronômico (caps. 72–82), O Livro dos Sonhos (caps. 83–90), e A Epístola de Enoque (caps. 91–108). Dentro da Epístola, o Apocalipse das Semanas (93:1–10; 91:11–17) se destaca como uma unidade distinta.18
Lugar no Cânone:
Os Livros de Enoque, Jubileus e Jasher não estão incluídos no cânone de 66 livros. No entanto, há referências na Bíblia a esses livros, que levaram os antigos estudiosos judeus a incluir Enoque e Jubileus na Septuaginta sob o título “para leitura proveitosa.” Esses livros sempre foram marcados como “deuterocanônicos”, ou parte de um “cânone secundário”, e nunca como parte das escrituras. Esses três livros foram mencionados na Bíblia; os estudiosos sempre os listavam como livros interessantes para ler. Isso levou os ensinamentos contidos nesses livros a influenciar as doutrinas das pessoas, especialmente em relação aos calendários. Segue-se uma breve discussão de cada um desses livros em discussão, com foco no conteúdo e proveniência (contexto original e origem/natureza dos manuscritos mais antigos) de cada um.19
A aceitação de Judas de 1 Enoque como Escritura:
O livro bíblico Judas cita o livro de Enoque nos versículos 14–15,
“Foi a respeito deles que também profetizou Enoque, o sétimo depois de Adão, dizendo: ‘Eis que o Senhor vem com milhares de seus santos, para exercer juízo contra todos e para convencer todos os ímpios a respeito de todas as obras ímpias que praticaram e a respeito de todas as palavras insolentes que ímpios pecadores proferiram contra ele’.”
O uso de tais pseudoepígrafos por Judas indica que ele aceitava esses livros como inspirados e/ou autoritários? Ele aceitou 1 Enoque como escritura? Michael Green afirma que, embora a igreja primitiva estimasse muito 1 Enoque, “não temos como saber se Judas considerava esses livros canônicos.” Paulo não se importa em usar um poeta pagão (At 17:28; 1 Co 15:32–33; Tt 1:12). 1 Enoque é citado uma vez e aludido em várias ocasiões no livro de Judas e outros escritos do Novo Testamento. Dois pontos adicionais precisam ser mencionados em apoio à possível crença de Judas de que 1 Enoque é inspirado e autoritativo. Primeiro, a evidência sugere que Judas não faz distinção entre o uso do Antigo Testamento e o uso de 1 Enoque. Em segundo lugar, a literatura enóquica foi aceita por alguns judeus e cristãos durante o período inter testamentário e na igreja primitiva. Os Pais da Igreja Primitiva, que os viam como figuras tipológicas, identificaram as duas testemunhas como Elias e Enoque, que subiram ao céu.20
Como Judas foi contemporâneo de alguns que aceitavam 1 Enoque como autoritativo e inspirado, é possível sugerir que Judas, os hereges que ele confrontou em sua epístola e os destinatários de sua carta tivessem a mesma crença. Em vez de ver o uso de 1 Enoque por Judas como material ilustrativo, J. Daryl Charles afirma que Judas está “explorando ou a devoção dos leitores à literatura enóquica ou a de seus oponentes.” Judas está apenas dando atenção a 1 Enoque porque os destinatários ou seus oponentes eram devotados à literatura enóquica, embora ele não o seja? Ele está simplesmente usando 1 Enoque como uma estratégia literária? Robert C. Newman diz: “Poder-se-ia tender a descartar a referência de Judas como um argumento ad hominem contra seus oponentes que aceitavam os pseudoepígrafos veterotestamentários, já que ele aparentemente cita 1 Enoque 1:9 no verso 4 e uma porção não mais existente da Assunção de Moisés no verso 9.”21 A razão de Judas para usar o livro pode ser sua devoção ao que ele considerava um texto inspirado e a mensagem escatológica e cristológica que ele encontrou contida no livro de 1 Enoque. A aceitação de Judas de 1 Enoque como escritura é significativa por causa do efeito que teve sobre sua leitura deste livro pseudoepígrafo. Atribuir inspiração a um texto afeta a maneira como esse texto é lido. Se Judas vê 1 Enoque como escritura, então talvez sua leitura de 1 Enoque seja mais semelhante à maneira pela qual outros autores do Novo Testamento leem o texto inspirado do Antigo Testamento e depois o citam e o evitam.22 O autor do livro de Enoque 1 prediz eventos do fim dos tempos e a intervenção de Deus na história. O autor fala de Justiça para os oprimidos e punição para os opressores. O autor deste livro busca e afirma que a justiça deve prevalecer em sua geração e nas gerações vindouras. Este livro é uma das fontes apócrifas para dar esperança aos aflitos e necessitados. A cosmovisão expressa por este autor é típica da literatura apocalíptica judaica do mundo greco-romano. As comunidades acreditavam que na morte e ressurreição de Jesus, Deus interveio na história para trazer o seu reino à Terra. A ressurreição de Jesus é a esperança para as pessoas das comunidades atuais e passadas. De acordo com Paulo (1 Co 15:42–54; Fl 3:20–21), esta ressurreição resultaria na glorificação dos cristãos à semelhança do Cristo exaltado ao invés de um status angelical como em 1 Enoque. A personagem principal neste episódio é um ser celestial transcendente chamado variadamente de “o Filho do Homem”, “o Escolhido”, “o Justo” e “o Ungido”. Ele é o agente do grande juízo de Deus que vindica “os justos e escolhidos” e condena “os reis e os poderosos” que os perseguem e governam a terra. Os títulos usados pelo autor são para indicar que este ser celestial é a encarnação de quatro personagens na literatura bíblica: “um como filho do homem” em Daniel 7:13-14; o Servo do Senhor em Segundo Isaías (Isaías 42:1–4; 49:1–6; 51:4–8; e 52:13–53:12); o Ungido do Senhor (geralmente chamado de “o Messias”) nos oráculos reais dos Salmos e dos Profetas.23
O Filho do Homem em Enoque
Difere de seu protótipo em Daniel 7, entronizado somente após o juízo. A temática da oração humana e da intercessão angélica (47:1–2), também ausentes em Daniel 7, são extraídas de uma parte anterior de 1 Enoque (cap. 9). Os capítulos 48 e 49, que relatam a nomeação do Filho do Homem, refletem outras fontes do autor. A primeira delas é o relato do comissionamento do Servo do Senhor em Isaías 49:1–6 (48:2/Isaías 49:1; 48:4/Isaías 49:6; 48:6/Isaías 49:2). O título “O Escolhido,” que abrange grande parte dos capítulos 48 e 49, corresponde ao mesmo título em Segundo Isaías. O Filho do Homem nomeado antes da criação do universo e da presente era (48:3, 6) é paralelo à característica atribuída à Sabedoria celestial em Provérbios 8:22–31 (Siraque 24:3), uma conexão fortalecida pela atribuição de “sabedoria” ao Filho do Homem (1 Enoque 48:1; 49:1–2). A fonte final do autor é evidente em 48:8, 10 e 49:3, que parafraseiam versículos dos oráculos reais do Salmo 2 (v. 2) e Isaías 11:1–5 (v. 2), respectivamente. O título “o Ungido” (48:10) aparece também em 1 Enoque 52:4. A fraseologia de 49:4 corresponde ao primeiro poema do Servo do Segundo Isaías (Is 42:1). As tradições sobre o Escolhido/Filho do Homem em 1 Enoque são cruciais para a compreensão da especulação cristã primitiva sobre Jesus. O título “Filho do homem” é atribuído a ele em todos os estratos da tradição do Evangelho (Marcos, Q, material especial de Mateus e Lucas, e João; para as passagens, “Filho do Homem”, 142–147).24
Cristologia Joanina:
No Evangelho de João, o retrato da história de Jesus difere significativamente dos outros três Evangelhos. Enquanto os Evangelhos Sinóticos registram apenas um ano de ministério galileu, João, em seu Evangelho, registra um ministério de 3 anos com três festas diferentes da Páscoa mencionadas em um estilo literário. Parece que os eventos da vida de Jesus e seu ministério têm um significado teológico em relação ao que eles revelam sobre Deus, conferindo mais valor. Em relação ao mundo teológico de João, é necessário começar e reconhecer a “encarnação” do Evangelho com seu impulso. Pode ser visto em duas frases importantes do prólogo como “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus. (João 1:1) E o Verbo se fez carne e habitou entre nós . . . (João 1:14).” Observa-se que o fundamento do restante do Evangelho é construído desta maneira.25 Jesus é retratado como a Palavra Encarnada de Deus, o papel fundamental ou crucial da Encarnação de Jesus permite que João esclareça a relação entre Teologia e Cristologia dentro do evangelho, onde vemos que sua preocupação final é com Deus e as boas novas sendo Deus revelado em Jesus Cristo. “O que Jesus revela sobre Deus vem através do que Jesus revela sobre si mesmo. A cristologia redefine a teologia, ou seja, Jesus desafia decisivamente como se fala e conhece a Deus, mas a cristologia não substitui a teologia.”26 Percebe-se claramente o inter-relacionamento entre teologia e cristologia no evangelho de João quando nos referimos a Deus e à forma como isso é feito. Deus é visto como “aquele que me enviou (Jesus)” (4:34; 5:38; 8:29) e como “o pai” (5:17; 6:45; 14:16). Quando olhamos para estas duas maneiras de falar de Deus, compreendemos melhor o relacionamento de Deus com Jesus. “Aquele que enviou Jesus” identifica Deus como aquele de quem se origina a missão de Jesus no mundo (3:17). A identificação de Deus desta maneira aponta para a união de Deus, bem como para a obra de Jesus no mundo. O corpus joanino chama a atenção para o amor e a intimidade familiar quando fala de Deus como pai e de Jesus como filho.27 A teologia joanina considerava o “filho do homem” como primeira e principal expressão na seção cristológica. Seria simplista dizer que o Lógos Jesus Cristo e o filho do homem são um e o mesmo. Para F. J. Moloney, “filho do homem joanino está certo em dizer que filho do homem é o mesmo que o Lógos, referindo-se a um homem ideal judeu ou helenístico (o mesmo que Enoque “Filho do homem” da tradição judaica).28
Igreja Primitiva:
Filho do Homem não era uma designação cristológica comum na igreja primitiva, pois é quase ausente nas cartas do Novo Testamento. O título não poderia ser entendido no mundo grego a não ser simplesmente à humanidade de Jesus. Enquanto o Evangelho judaico-cristão dos Hebreus, os materiais de Nag Hammadi29 e o historiador Hegésipo,30 como citado por Eusébio, mantêm em vários graus algo de seus predecessores, os pais gentios Inácio e Justino consonantemente, embora diversificadamente, viram neste título uma referência ao lado humano na encarnação de Jesus. Assim, dos Pais Apostólicos até o presente, o título, com poucas exceções, passou a ser considerado na teologia dogmática da Igreja apenas como o inverso do título Filho de Deus, um falando da humanidade de Jesus e o outro de sua divindade. Mas não era assim na igreja primitiva.31 Então surge a pergunta: como a convicção da igreja sobre o messianismo de Jesus deu origem a mais pensamentos sobre ele e lançou as bases para a cristologia mais antiga? Em primeiro lugar, negou a adequação de sua própria designação favorita de si mesmo durante seu ministério, substituindo uma atribuição de filho do homem em favor da de Messias. Para os cristãos primitivos, Jesus era o Filho do Homem sofredor de acordo com a representação de Daniel e seria o Filho do Homem glorificado que retornaria para cumprir as profecias.32 C. F. D. Moule observa com razão: “Metade de seu conteúdo já era coisa do passado, e metade era, pelo menos, aos olhos da Igreja primitiva, pertencente ao futuro. Supunha-se naturalmente que a Igreja estava em um tempo intermediário entre a ida e a volta, mas qual a relevância do termo Filho do Homem?” Os primeiros cristãos se lembravam de que Jesus preferia falar de si como o Filho do Homem, repetindo este título diversas vezes. Mas eles tomaram o título de Messias como a designação apropriada para ele neste período intermediário da história redentora, e assim se abstiveram de falar dele como o Filho do Homem.33
Escola Alexandrina: Atanásio e Cristologia:
Atanásio é um dos grandes líderes da igreja que contribuiu muito para a cristologia. Ele cooperou na articulação do entendimento da Igreja sobre a identidade pessoal de Jesus.34 Atanásio não inventou a cristologia. Antes dele havia a meditação semítica dos judaico-cristãos, com sua representação de um Cristo ora apocalíptico, ora angelical, e muitas vezes confundido com o Espírito Santo. Entre os contemporâneos mais antigos de Atanásio, cita-se Eusébio de Cesaréia, que resumiu a tradição cristológica dos apologistas ao rigorizar sua subordinação com a engenhosidade de Orígenes. Atanásio escreveu “Pois o Filho de Deus se fez homem para que nos tornássemos Deus” em sua refutação a Ário durante o Primeiro Concílio Ecumênico.35 Atanásio se tornou muito proeminente quando o conflito ariano se aqueceu em Alexandria. Diácono e conselheiro de Alexandre, Atanásio parece ter ficado ainda mais indignado com o ensino de Ário, de que Cristo não era eterno e não existia até a encarnação de Adão. Então ele começou a elaborar uma cristologia com a própria resposta de Ário, mas afirmou a eternidade de Cristo.36
Atanásio enquadrou a cristologia tradicional e canônica em três níveis:
-
Atanásio introduz o mistério da fé sobre a pessoa de Cristo como um conceito original do homem, totalmente em consonância com a antropologia espontânea de seus contemporâneos, mas repensada por ele com referência à cristologia.
-
Atanásio desenvolve sua originalidade cristológica em termos de uma nova maneira de interpretar a Escritura.
-
Atanásio tentou organizar toda a doutrina cristã sobre a encarnação de Deus.
Todos os três pontos são contra os arianos. A antropologia de Atanásio remonta a Adão como a imagem do pai. Esse Adão idealizado em termos platônicos não era desconhecido da tradição alexandrina. Isso é muito importante para Atanásio descobrir que esse Adão ideal se encontra logo no início do desenvolvimento teológico tanto em Contra Os Pagãos37 e Encarnação do Verbo.38 A tradição do Adão platonizado deu lugar a um Adão cristianizado. O Adão de Atanásio não possui alma enquanto permanece imerso na contemplação do Lógos divino. Para Atanásio, a salvação dos homens ocorre não pela purificação e espiritualização segundo o modelo de Orígenes,39 mas pelo encontro pessoal com o eikon de Deus que se fez homem. Este homem usa seu corpo como instrumento para mostrar que também é o templo do Lógos de Deus. (Teologia Joanina)40
A opinião dos Pais da Igreja Primitiva:
Os pais da igreja não eram unitaristas porque cada um ensinava claramente que o Filho preexistia à encarnação. Alega-se que esses pais inventaram a pré-existência de Cristo devido à influência do neoplatonismo ou gnosticismo. Ressalta-se que tal visão está se tornando cada vez menos convincente para os estudiosos patrísticos modernos. Quanto mais se aprende sobre o Judaísmo e o Cristianismo do Segundo Templo em seus primeiros anos, menos provável parece que as velhas teorias da “história das religiões” possam explicar as doutrinas cristãs primárias.41 A doutrina do Lógos ilustra claramente que os primeiros mestres alexandrinos defenderiam o conceito cristão de Deus. Pois se o fundamento cristão de que em Jesus Cristo o próprio Deus desceu como homem entre os homens deve ser mantido, por conseguinte o Lógos que se tornou homem é coeterno com o Pai, como eles afirmam. O princípio da subordinação do filho ao Pai se encontra lado a lado com o da sua coeternidade com o Pai em Clemente e Orígenes.42 Para Atanásio, o Filho é idêntico ao do Pai. Ele pressupõe que tudo o que o Pai é, o Filho também é, “a plenitude da divindade do Pai é o ser do Filho e o Filho é totalmente Deus,” pois a divindade do Pai e do Filho são uma.43 Os primeiros pais da Igreja usaram expressões para denotar Jesus com vários títulos para olhar para a humildade que foi mostrada por Cristo. O título diria respeito à natureza humana, muito provável considerando o início do docetismo, seria a opinião de Cornélio a Lapide. Outros, como Knabenbauer, pensam que ele adotou um título que não ofenderia seus inimigos e que, com o passar do tempo, poderia ser aplicado de modo a cobrir suas reivindicações messiânicas para incluir tudo o que foi predito do representante homem e do segundo Adão.44 Exceto por Ósio45 e alguns outros, os bispos que se reuniram em Nicéia eram todos de origem helenística. Embora o credo, a declaração de fé, emitida ao final de suas reuniões, fale de Jesus Cristo, sua real preocupação é com o “Lógos da Palavra de Deus.” Eles são bastante claros que o Logos se tornou filho do homem.46
James H Charlesworth opina: “Não tenho dúvidas de que os grupos enóquicos consideravam o Livro de Enoque tão inspirado como qualquer livro bíblico.Também estou convencido de que o grupo de judeus por trás do Rolo do Templo, certamente pré-qumrânico, teria julgado que era a Torá por excelência, isto é, igual e talvez melhor que Deuteronômio. Então devemos perceber as pseudoepígrafas como elas foram aparentemente julgadas como sendo a revelação de Deus aos humanos.
Conclusão
Este parágrafo é o cerne do meu argumento. Talvez o argumento mais revelador para a “inspiração” de 1 Enoque seja que o entendimento judaico do termo “Filho do homem” como um título messiânico não vem verdadeiramente de nosso cânon do Antigo Testamento, mas do Livro de Enoque. Você já se perguntou por que Jesus se refere a si mesmo nos evangelhos como o “Filho do homem” em vez de Filho de Deus? Dos mais de 100 usos da frase “Filho do homem” no AT, ela se refere quase sempre a homens “normais” (93 vezes especificamente de Ezequiel, e certamente não como Messias), mas é usada apenas uma vez em todo o AT, em uma das visões celestiais de Daniel, para se referir à divindade. Apesar da frequente falta de aplicação divina da frase no Antigo Testamento, 1 Enoque registra várias viagens ao céu, usando o título “Filho do homem” incessantemente para se referir ao Cristo pré-encarnado. A “Epístola de Barnabé” do início do segundo século faz muito uso do livro de Enoque. Os Padres da Igreja do segundo e terceiro século pertencem à escola alexandrina, como Orígenes, Atanásio e Clemente, todos fazem uso do livro de Enoque. Tertuliano (160–230) chegou a chamar o livro de Enoque de “Escritura Sagrada”. A Igreja Etíope até adicionou o livro de Enoque ao seu cânone oficial. Era amplamente conhecido e lido nos primeiros três séculos após Cristo. Este e muitos outros livros ficaram desacreditados após o concílio de Laodiceia.47 O filho do homem era a designação perfeita porque Jesus entendia seu messianismo em termos da personagem celestial “como filho do homem.” O livro de Enoque existia séculos antes do nascimento de Cristo e ainda é considerado por muitos mais cristão do que judeu em sua teologia. Muitos cristãos primitivos o consideravam como escritura. A literatura mais antiga dos primeiros pais da Igreja estava repleta de referências a este livro misterioso. Acredito que a cristologia pode ser construída com a ajuda de títulos, símbolos e expressões também. O cristianismo primitivo entendia Cristo como a intervenção de Deus na história como Juiz. O judaísmo enóquico fala do filho do homem na forma de esperança e juiz para o povo. A cristologia joanina enfatiza o conceito e a encarnação do Lógos. Eu creio que Deus através de seus “eleitos” transmitiu a mensagem da personagem messiânica para as pessoas que trariam paz na terra. Finalmente, na forma de Jesus, o Cristo, a Palavra (Lógos) se fez carne e habitou entre nós. Embora haja opiniões divergentes entre os estudiosos sobre a fonte, a imagem “Filho do homem” é derivada de origem judaica em ambos os casos (i.e., literatura enóquica e pensamento joanino). Atanásio, o pioneiro na controvérsia ariana, estava certo em mencionar e discutir sobre Adão. Nos escritos do Novo Testamento, o segundo Adão é Jesus, o Cristo. O imaginário e expressões baseadas na compreensão da fé judaica e cristã primitiva fornecem fontes suficientes para construir a cristologia. Eu diria e concordo com os estudiosos que é impossível localizar e reconstruir o Jesus histórico, mas é possível construir o Jesus da fé. O documento de Damasco fala sobre o Justo na comunidade essênica. Todavia, é muito improvável reconstruir a personagem. 1 Enoque fala do filho do homem como salvador e juiz. Nos escritos do Novo Testamento, Judas cita a literatura enóquica sobre o filho do homem vindo com milhares. Creio que Deus profetizou através de seus profetas e transmitiu a mensagem de salvação. Acredito que estudiosos e comunidades teológicas deveriam se aprofundar em estudos apócrifos para reconstruir o Jesus histórico como salvador e messias. O corpus joanino bebeu da tradição judaica para se referir a Deus em vários títulos e construiu teologia, assim também a rica literatura enóquica também pode ter bebido da tradição judaica para construir este título testificando Jesus de Nazaré. Por fim, eu diria que, mesmo após muitas pesquisas, reconstruir o Jesus histórico é impossível, mas a literatura enóquica e o livro de Daniel definitivamente atuariam como pilares para sustentar e reconstruir o Jesus histórico em estudos futuros próximos. Além dos Evangelho e do Quarto Evangelho, os livros apócrifos também podem construir cristologias.
Notas
1 Quarto Evangelho
2 A razão para escolher João é por causa da compreensão joanina. João entende Jesus como um auto-referente de Jesus que está tendo a mesma expressão idiomática mencionada na literatura enóquica, ou seja, “o agente do juízo e salvação divinos e uma personagem messiânica apocalíptica.
3 Paul J. Achtemeier, e., Bible Dictionary, e. Rev., Harper Collins (Bangalore: TPI, 2009), p. 1053.
4 Ibidem.
5 Michael A. Knibb, Essays on the book of Enoch and Other Early Jewish Texts and Traditions (Boston: Brill Publications, 2009), p. 340.
6 C.H. Dodd, The Interpretation of the Fourth Gospel (New York: Cambridge University Press, 1978), p. 241.
7 Fourth Gospel
8 Luke Timothy Johnson, The Writings of the New Testament, An Interpretation (Bangalore: TPI, 2009), pp. 541–542.
9 Seeyoon Kim, The Son of Man as the Son of God (Michigan: William Erdmanns Publishing Company, 1985), p. 99.
10 C.I. David Joy, Christology Re-Visited, Profiles and Prospects (Bangalore: ATC, 2007), p. 111.
11 John C. Dwyer, Son of Man & Son of God, A New Language for Faith ( New York: Paulist Press, 1983), pp. 48–50.
12 Klaus Baltzer, e., 1 Enoch 1, A Commentary on the Book of 1 Enoch (Minneapolis: Fortress Press, 2001), p. 83.
13 Richard N Longenecker, The Christology of Early Jewish Christianity (Naperville: Allenson Inc., 1970), p. 82.
14 C.H. Dodd, The Interpretation of the Fourth Gospel, p. 241
15 Richard N Longenecker, The Christology of Early Jewish Christianity, pp. 83–84.
16 George H. Schodde, The Book Of Enoch With Introduction And Notes (Washington: Office Of The Librarian Of Congress), 1982), p. 4.
17 Amy Jill Levine e John Dominic Crossan, ee., The Historical Jesus in Context (New Jersey: Princeton University Press, 2006), p. 87.
18 Gabriel Boccaccini e John J. Collins, ee., The Early Enoch Literature: Supplements To The Journal For The Study of Judaism (Boston: Brill, 2007), p. 58.
19 Andrei A Orlov, The Enoch-Metatron Tradition, Texts and Traditions in Ancient Judaism (Germany: Artibus Ingen, 2005), p. 18.
20 Isreal Knohl, The Messiah Before Jesus. The Suffering Servant of the Dead Sea Scrolls (London: University Of California Press, 2000), p. 383.
21 Isreal Knohl, The Messiah Before Jesus The Suffering Servant Of The Dead Sea Scrolls, pp. 384–385.
22 Cory D. Anderson, Jude’s Use Of The Pseudepigraphal Book Of 1 Enoch (London: University Of California Press, 2000), pp. 301–303.
23 C.H. Dodd, The Interpretation of the Fourth Gospel (New York: Cambridge University Press, 1978), pp. 243–245.
24 Amy Jill Levine e John Dominic Crossan, ee., The Historical Jesus in Context, pp. 88–92.
25 The Gospel of John in The New Interpreter’s Bible, Vol. IX, (Nashville: Abingdon Press, 1995), pp. 493–495.
26 Ibid., p. 495.
27 Ibid., pp. 495–496.
28 Elizabeth Harris, Prologue and Gospel, The Theology of the Fourth Evangelist ( London: T &T Clark, 2004), pp. 117–118.
29 A Biblioteca Nag Hammadi é uma coleção de textos gnósticos descobertos perto da cidade de Nag Hammadi no Alto Egito em 1945. Doze códices em papiro encadernado em couro em um jarro selado foram encontrados por um fazendeiro local chamado Muhammed al-Samman.
30 Santo Hegésipo foi um cronista da igreja primitiva que pode ter sido um judeu convertido e certamente escreveu contra as heresias gnósticas e marcionitas.
31 Richard N Longenecker, The Christology of Early Jewish Christianity, pp. 89–91.
32 Gabriele Boccaccini, e., Enoch and Qumran Origins, New Light on a Forgotten Connection (Grand rapids: William Erdmann’s Publishing Company, 2005), p. 46.
33 Richard N Longenecker, The Christology of Early Jewish Christianity, p. 92.
34 Harvey Susan Ashbrook e David G. Hunter, ee., The Oxford Handbook of Early Christian Studies (New York:Oxford University Press, 2010), p. 883.
35 Charles Kannengiesser, Arius and Athanasius, Two Alexandrian Theologians (Great Britain: Variorum, 1991), p.103.
36 Ibid., p. 104.
37 Esta é a primeira de duas obras publicadas por Atanásio de Alexandria antes do surgimento da controvérsia ariana (319). Concentra-se nas crenças e adorações pagãs, concluindo com uma defesa da visão cristã de Deus e da criação. Criação especialmente pela palavra eterna.
38 Atanásio sobre encarnação.
39 Fílon como modelo declarado de Orígenes: exegese alegórica e histórica da escritura.
40 Charles Kannengiesser, Arius and Athanasius, Two Alexandrian Theologians, pp. 106–108.
41 Charles Kannengiesser, Arius and Athanasius, Two Alexandrian Theologians, pp. 108–110.
42 John C. Dwyer, Son of Man & Son of God, A New Language for Faith, p. 53.
43 R.V. Sellers, Two Ancient Christologies, A Study in the Christological Thought of the Schools of Alexandria and Antioch in the Early History of Christian Doctrine (London: SPCK, 1954), p. 5–7.
44 Ibid., p. 243.
45 Hosius de Corduba, também conhecido como Osius ou Ossius, foi um bispo de Córdoba e um proeminente defensor do cristianismo católico na controvérsia ariana que dividiu a igreja cristã primitiva do século IV.
46 John C. Dwyer, Son of Man & Son of God, A New Language for Faith, p. 57.
47 C.H. Dodd, The Interpretation of the Fourth Gospel, pp. 243–244.