A AQEDAH NA “ENCRUZILHADA”: SEU SIGNIFICADO NO DIÁLOGO JUDAICO-CRISTÃO-ISLÂMICO
Por Jacques Doukhan
Jacques Doukhan é Professor de Hebraico, Professor de Exegese do Antigo Testamento e Diretor do Instituto de Estudos Judaicos-Cristãos na Andrews University. Autor de diversos livros como “The Mystery of Israel,” “On the Way to Emmaus”, “Israel and the Church;” escreveu, também, a Lição da Escola Sabatina de Provérbios do 1º Trimestre de 2015.
Tradução: Hugo Martins.
Tradução do artigo publicada com autorização expressa do autor. O original, em inglês, pode ser acessado no site do repositório da Andrews University.
A memória da Aqedah está inserida no coração de três religiões: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Reflete-se na liturgia dos judeus no Rosh-Ha-Shanah, dos cristãos na Missa (Católicos) ou Santa Comunhão ( Ortodoxos e Protestantes) e dos muçulmanos na grande festa sacrificial ‘Īd al-Aḍḥā (‘Īd al-Kabīr).
A mesma estória sagrada é relembrada nessas três tradições como um importante elemento de sua identidade religiosa, mesmo que a comemoração seja celebrada em diferentes épocas e representem variantes significativas. De certo modo, a Aqedah pode ser vista como estando na encruzilhada dessas três tradições como um sinal significativo de sua origem comum e, também, de sua divergência teológica.
O presente estudo examina a gênese e a natureza desta “encruzilhada”. Eu, primeiro, examinarei o que gerou as controvérsias judaico-cristãs e judaico-islâmicas sobre a Aqedah e o caráter específico em que cada controvérsia se encontra. Então, eu me voltarei para a fonte comum dessas três tradições, a saber, a Bíblia e, também, o Qu’rān para a tradição islâmica. Pretende-se investigar e/ou extrair lições para que você possa aprender com as controvérsias.
O propósito deste estudo é modesto. Não entrarei em todas as ricas nuances dos textos, tradições e debates. Em vez disso, considerarei as questões significativas que estão relacionadas aos encontros judaico-cristãos e judaico-islâmicos, objetivando alcançar o tanto quanto possível os encontros islâmicos, desvendando o tanto quanto possível os mecanismos envolvidos e, também, servir como base para importantes lições que eu acredito que possamos aprender tanto do diálogo ao longo da história quanto no dia de hoje.
- O Diálogo na Controvérsia Judaico-Cristã
A controvérsia judaico-cristão, inicialmente, girou, principalmente, em torno do significado teológico da Aqedah. Em documentos prímevos (Jubileus, Filo, Josefo, Macabeus e a Mishnah[1]) a ênfase recai, principalmente, em Abraão como exemplo de fé. Então, conforme a controvérsia se intensificou, a ênfase mudou gradualmente de Abraão para Isaque.[2] Além disso, o elemento expiatório da Aqedah, que originalmente era apenas alusivo, ficou mais óbvio e tornou-se o foco do debate judaico-cristão sobre a Aqedah.[3]
É significante, de fato, que nas fontes judaicas, o termo Aqedah, que tecnicamente se refere a amarração do tāmîḏ (cordeiro),[4] aparece primeiramente relacionado a Isaque somente no final do segundo século E.C., talvez no fim do período tanaítico. Uma referência prímeva com a ênfase sobre Isaque é encontrada na Mekilta do Rabbi Ishmael. Sobre Ex 12:13, é feito este comentário: “E quando eu ver o sangue, eu passarei por você … Eu vejo o sangue da Aqedah de Isaque.” A oferta de Isaque não está exclusivamente, portanto, identificada com o tāmîḏ (cordeiro), “sugerindo que uma teologia cultual e sacrificial está implícita,”[5] mas está, também, ligada com a Páscoa. Esta conexão dá evidência de que o sacrifício expiatório da Páscoa era compreendido como um memorial do sacrifício de Isaque.[6] Do mesmo modo, no período Amoraíta, a expressão “cinzas de Isaque,” que se refere à oferta de Isaque, alude ao holocausto do tāmîḏ.[7] De acordo com Rabinos posteriores, Abraão chamou de “um holocausto.”[8] Mas são nos Targumim que a interpretação expiatória do sacrifício de Isaque ganham sua mais completa expressão. O Targum Palestino comenta sobre Gn 22:14, “E, agora, eu oro por misericórdia diante você, Oh Senhor Elohim, quando os filhos de Isaque vierem a sofrer, lembre-os da ligação [Aqedah (amarra)] de Isaque, seu pai, e libertai-os e perdoai-lhes os seus pecados.”
De modo muito interessante, encontramos uma descrição paralela nas fontes cristãs. No NT, a ênfase recai, também, em Abraão como um exemplo de fé (Hb 11:17-10; Tg 2:21-23); o elemento expiatório da estória está apenas implícito (Rm 8:32; Jo 3:16), mas, mesmo assim, é debatível.[9] Assim como no judaísmo, devemos nos voltar para o segundo século para vermos a ênfase mudada de Abraão para Isaque, cujo sacrifício, então, começou a ser visto como um tipo do sacrifício de Jesus. A primeira interpretação tipológica da Aqedah no cristianismo ocorre na Epístola de Barnabé, a qual está claro que Barnabé está, em parte, respondendo a interpretação judaica da Aqedah. Neste documento, a expiação de Isaque é substituída pela expiação de Jesus.
No entanto, é com Melito de Sardis que o uso da Aqedah ganha seu primeiro tratamento extensivo na literatura cristã. Indubitavelmente, em resposta a forte comunidade judaica de Sardis, Melito argumentou que o sacrifício de Jesus era superior ao sacrifício de Isaque, pois Jesus, de fato, sofreu e morreu, enquanto Isaque foi poupado. O bispo desenvolveu seu argumento no contexto de uma discussão dos sacrifícios levíticos e enxergava o de Isaque como um precursor incompleto do que viria a ser a única referência tipológica a Jesus, que corresponde muito mais precisamente ao cordeiro que foi morto.[10]
Essa tipologia fora mais amplamente desenvolvida pelos pais da Igreja, tais como Irineu, Tertuliano, Orígenes, etc., que chamaram atenção para o paralelo entre o sacrifício de Isaque na lenha e o sacrifício de Cristo na cruz.[11] Consequentemente, na arte e na literatura cristã, o sacrifício de Isaque foi tradicionalmente descrito em conexão com a crucifixão.[12]
O desenvolvimento paralelo das tradições judaicas e cristãs concernentes à Aqedah sugere que estas duas tradições exegéticas andaram em proximidade uma com a outra. Além disso, assim como os cristãos responderam aos judeus, textos judaicos evidenciam a reação judaica à apologética cristã. A fim de mostrar que a Aqedah de Isaque era, ao menos, tão efetiva como o sacrifício de Jesus, os antigos rabinos avocaram que a Aqedah descreve detalhes emprestados da estória da Páscoa. Isaque, também, desejosamente, ofereceu a si mesmo como expiação, chorando e sofrimento em agonia. Uma passagem de Gn Rab. (22:6) vai além ao descrever Isaque como suportando a sua própria cruz, assim como um condenado faria. “Este detalhe,” comenta E. R. Goodnough, “[tão] claramente traz em mente a crucifixão de Jesus que parece impossível que não haja qualquer relação.”[13]
A interpretação tipológica foi, também, adotada, com Isaque sendo visto como um tipo de Israel. Em Pirka Aboth 5, as dez provações de Abraão (a Aqedah sendo a décima primeira) antecipam os dez milagres do Êxodo. No Talmude Palestino (y. Ta’an. 2.4.65d), a salvação de Isaque é um tipo de salvação de Israel, o sacrifício de Isaque é um tipo dos sacrifícios[14] e a vítima Isaque é um tipo do Servo Sofredor e do Messias.[15] Em seu comentário sobre Gn 22:11, Ibn Ezra cita um opinião de que Abraão, de fato, matou Isaque, que posteriormente ressurgiu dos mortos.[16] A base desta interpretação é a observação de que Isaque não retornou para o seu pai. A ampla circulação desta estória mostra que a polêmica tentativa judaica “de negar que o sacrifício de Isaque” era de “inferior ao de Jesus.”[17] Os rabinos desse período estavam preocupados com a apologética Cristã e responderam com a sua própria apologética:
R Abin disse em nome do R Hilkiah: quão tolo é o coração dos enganadores que dizem que o Santo, Bendito Seja Ele, tem um filho. Se no caso do filho de Abraão, quando Ele viu que estava que ele estava pronto a matá-lo, Ele não podia suportar ver a cena, pois Ele estava em angústia, mas, pelo contrário, ordenou “Não estendas a mão sobre o rapaz;” tivesse Ele um filho, teria Ele o abandonado? Não teria Ele virado o mundo de cabeça para baixo, transformando-o em um caos? [18]
O fato, também, que a Aqedah está, às vezes, relacionada com a Páscoa, e, às vezes, com o Rosh-Ha-Shanah, pode refletir as hesitações litúrgicas geradas pela controvérsia. Ou a Páscoa configurava a [liturgia] original (referências da conexão com a Páscoa podem ser encontradas tão primevamente como em Jub 17:15, cp. 49:1) e foi, então, mudada para o Rosh-Ha-Shanah em reação as reivindicações cristãs, ou o Rosh-Ha-Shanah configurava a [liturgia] original (a conexão está atestada no musaf da liturgia do Ano Novo[19]) e foi mudado para a Páscoa sob a influência cristã. A mesma observação pode ser feita acerca da concepção da expiação, que, aparentemente, veio posteriormente no processo, mas que pode, também, ser detectada em documentos prímevos, tais como Pseudo-Filo (Bib. Ant. 18.5).
De fato, as dinâmicas da influência e da reação são difíceis de traçar e o debate, ainda, acalora se no caso a interpretação judaica confronta o cristianismo, ou é uma reação às reivindicações cristãos.[20] Entretanto, uma coisa é clara, a saber, que a controvérsia sobre a Aqedah testemunha a interação mútua entre o cristianismo e o judaísmo durante os primeiros séculos da era cristã. A teologia da Aqedah, tanto no judaísmo como no cristianismo, foi construída sob a influência das, e em reação às, tradições uma da outra. Em muitos aspectos, é um produto do diálogo judaico-cristão.
- O Diálogo na Controvérsia Judaico-Islâmica
A controvérsia judaico-islâmica gira, essencialmente, em torno da vítima histórica da Aqedah. Já no Qur’ān a ênfase sobre o filho é mais discutida do que nas Escrituras Hebraicas, pois é dito mais sobre o filho e que ele não é uma personagem passiva que aparenta ser na Bíblia. A Aqedah Qur’ānica está, então, mais próxima da tradição judaica do que na estória bíblica. O foco já tinha mudado de Abraão para seu filho, que na tradição islâmica, em contraste com a estória bíblica e a tradição judaica e cristã, não era Isaque, mas Ismael.
A tradição islâmica, no entanto, aparenta estar totalmente unânime nesse ponto.[21] No Qur’ān, o nome do filho que era intencionado ser sacrificado não é mencionado. E em todo caso, Isaque é, ainda, muito estimado, sendo referido pelo nome dezessete vezes, enquanto Ismael é chamado pelo nome apenas doze vezes. Ismael, por outro lado, não é o filho excluído que ele é nas Escrituras Hebraicas. Como Isaque, ele é identificado como um profeta,[22] mas ele é o único a estar associado ao ato prestigioso da construção da Ka’ba.[23] Em uma passagem, Ismael está situado entre Abraão e Isaque na hierarquia dos pais; possivelmente ele já era considerado como o pai de Isaque.[24] Tanto Isaque quanto Ismael estavam, então, igualmente, qualificados para servir como o sacrifício intencionado.
Parece que em um estágio prímevo da tradição islâmica, Isaque era o sacrifício intencionado; mas como Ismael começou a ganhar importância durante o segundo século do Islamismo (i.e., após o exegeta islâmico Ṭabarī [d. 923], a visão que Ismael era o sacrifício “al dhabiḥ” prevalecera e tornara-se quase universalmente aceita no fim do terceiro século do Islamismo.[25]
A explicação islâmica para esta mudança indica uma polêmica contra os judeus e pertence a um interesse étnico em vez de teológico. De acordo com apologetas islâmicos, fora tão somente uma preocupação étnica que levara os judeus a mudar a versão original para substituir Isaque por Ismael: “porque Isaque é o seu pai enquanto Ismael é o pai dos árabes.”[26] É, também, digo de nota que o mesmo argumento étnico fora usado na controvérsia persa-arábica (durante o período de Sh‘ūbiyya). Os persas, que clamavam ser descendentes de Isaque, defendiam a tese de Isaque, enquanto os árabes defendiam a tese de Ismael por causa de sua origem ismaelita.[27]
A visão islâmica baseou-se em dois argumentos principais. O primeiro é interpretacional. Isso envolve dois aspectos: (1) em relação ao valor do texto, a versão islâmica da Aqedah foi julgada superior a versão bíblica a qual a Escritura Judaica implicava a possibilidade de que Deus estivesse implementando um naskh (“revogação”).[28] Esta observação não apenas solapou o status inteiro do Judaísmo, mas foi, também, usada para mostrar que o Islã tinha, de fato, suplantado o Judaísmo. (2) No Qu’rān, por outro lado, o naskh não está implicado, na medida em que seu registro do sacrifício fora intencionado a ser tão somente simbólico.[29] Sendo que a mesma surata menciona o nascimento de Isaque alguns versos após descrever a tentativa de sacrificar o filho, o sacrifício em questão pode estar unicamente se referindo ao filho mais velho Ismael.
O segundo tipo de argumento é que a tradição como transmitida nas estórias sugere a conexão genealógica; em outras palavras, é um argumento étnico. Um exemplo é a interessante estória a qual Maomé apresenta a si mesmo como “o filho dos dois sacrifícios intencionados.” Não apenas Ismael, mas, também, Abdallah, o pai de Maomé experimentou a provação de [seu filho] ser a “vítima sacrificial intencionada.”[30]
Ambos os argumentos receberam atenção no campo judaico. Farei, aqui, referência a duas reações representativas. O argumento interpretacional é tradado por Saadia Gaon em seu comentário sobre Gn 22. Para Saadia, a ordem de Deus era apenas uma provação e o plano futuro de Deus não requereria sacrifício. “Isso, então, não é revogação porque a ordem não tinha a intenção de ser implementada em primeiro lugar.”[31] É, também, significante que Saadia, que era contemporâneo de Ṭabarī e estava frequentemente envolvido em polêmicas,[32] não aparenta ter estado a par da controvérsia Ismael-Isaque. O silêncio parece ser recíproco e confirma a real situação da tradição islâmica.
O argumento étnico pode, também, ser detectado no Targum PseudoJônatas, um documento que mostra diversos pontos alinhados ao Islã (a identificação, por exemplo, dos nomes das esposas de Maomé, assim como as esposas de Ismael).[33] O Targum de Gn 22:1 relata uma discussão entre Isaque e Ismael, cada um arguindo sobre o seu direito de receber a herança do seu pai, Abraão.
E após essas coisas, Isaque e Ismael discutiram, pois Ismael dissera: é direito meu ter a herança do meu Pai, sou o seu filho primogênito. Mas Isaque disse: é direito meu ter a herança do meu Pai porque eu sou o filho de sua esposa Sarah e você é o filho da serva de minha mãe. Ismael respondeu dizendo: eu sou mais merecedor do que você porque eu fui circuncidado aos 13 anos; se meu desejo de voltar atrás fosse atendido, eu não teria arriscado a minha vida para ser circuncidado. Mas você foi circuncidado quando tinha apenas oito dias de vida; se você soubesse o que estava acontecendo, você não teria arriscado a sua vida. Isaque responde: hoje eu tenho 36 anos de idade. Se o Santo, bendito seja Ele, fosse pedir por todo o meu corpo, eu não teria voltado atrás. Imediatamente essas palavras foram ouvidas diante do Senhor do universo e imediatamente a palavra do Senhor testou a Abraão e lhe disse: Abraão![34]
O Targum continua a enfatizar que o valor de Isaque era tanto, que, de fato, ele já tinha excedido a Abraão: “Os olhos de Abraão olhavam para os olhos de Isaque, mas os olhos de Isaque olhavam para os anjos no céu. Isaque os viu, mas Abraão não” (v. 10). Também, a benção às nações não está mais baseada na fé de Abraão como indicado no texto bíblico, mas nos méritos de Isaque (v. 18). É digno de nota, também, que o Targum sugere o mesmo tipo de interesse étnico como indicado na apologética islâmica. Isaque foi “tomado pelos anjos para a escola de Shem, o Grande” (v. 19). Esta última referência ao pai de todos os semitas constitui, de fato, um poderoso argumento na discussão étnica/genealógica.
- Diálogo nos Textos Sagrados
Uma análise estilística dos dois textos sagrados, a Bíblia e o Qur’ān, que estabelecem o fundamento das tradições e das controvérsias judaico-cristã-islâmicas, revela a importância do diálogo. Esta é uma verdade interessando a ambos os textos.
A estória bíblica da Aqedah (Gn 22:1-19) é tensa[35] e dinâmica. Das 306 palavras, 75 são verbos. É um verbo a cada três ou quatro palavras. Tanta frequência de verbos e, especialmente, do termo chave, ’mr, dá ao texto o seu caráter dinâmico e sugere, particularmente, um diálogo nervoso.
Ao lado, a estrutura literária do texto alcança seu ápice no centro (vv. 7 e 9), i.e., o diálogo pathos-filled [cheio de emoção] entre Abraão e Isaque. Consegui estabelecer este movimento literário em um estudo anterior[36] baseando-me em quatro observações: (1) a estrutura quiástica A1 B1 C B2 A2; (2) o cenário da passagem central pelo mesmo estilo fraseológico, wayyēleḵû šenêhem yaḥdāw; (3) a distribuição simétrica das palavras-chave ’mr e hlk em A1 B1 e em A2 B2; e (4) a concentração no centro da palavra-chave, ’mr (cinco ocorrências) Esta seção central (C) do quiasmo consiste, essencialmente, de questões e silêncios.
É interessante que a interpretação Qur’ānica da Aqedah (Surata 37, Saffat, vv. 100-112) parece transmitir uma ênfase similar. Como o texto hebreu, é digno de nota por seu estilo conciso[37] e pelo fato que consiste, essencialmente, de diálogos (Abraão com seus amigos; Abraão com Deus; Abraão com seu filho) e coloca uma ênfase especial no diálogo entre Abraão e o seu filho (este é verso mais longo da seção). Aqui também, na versão Qur’ānica, o diálogo pathos-filled está apresentado no centro do texto (v. 103) a está descrito pela mesma expressão estilística fa-lamma (“e quando”), pela primeira palavra tanto dos vv. 103-104 e pelo “nós” falado por Deus antes e depois do diálogo. Portanto, este texto, também, está em uma estrutura quiástica similar a estrutura bíblica de A1 B1 C B2 A2:
A1 “nós” (de Deus), v. 102
B1 “e quando,” v. 103
C diálogo: Abraão com o filho, v. 103
B2 “e quando,” v. 104
A2 “nós” (de Deus), vv. 105-112
A seção centra (C) consiste, novamente, de questões e silêncios, como no caso da Aqedah bíblica:
Uma questão de Abraão para seu filho. “O que você pensa?”
Uma questão do filho para Deus, implicada na shā ‘a-Llah (“vontade de Deus”).
Um silêncio de Abraão que não explica a sua visão.
Um silêncio do filho que sujeita a si mesmo e não argumenta com o seu pai.
Um silêncio de ambos na frase, “Ambos se sujeitaram (v. 103).
- Análise e Conclusão
A História tem mostrado a importância da Aqedah na controvérsia judaico-cristã-islâmica. Todas as dinâmicas e ingredientes do diálogo são encontrados nessa confrontação. As três tradições referem-se a mesma estória lidando com a origem comum das três religiões (em Abraão). Elas descrevem mais ou menos a mesma evolução história. Elas ecoam uma a outra e reagem uma a outra em pontos específicos. Em grande medida, elas estão interligadas e, até, dependentes uma da outra. As polêmicas judaico-islâmicas incluem referências às polêmicas judaico-cristãs[38] e as polêmicas islâmico-cristãs mostram dependência das polêmicas judaico-cristãs.[39] Apenas as polêmicas judaico-cristãs foram independentes, por razões históricas óbvias. De fato, as discussões judaico-cristã-islâmicas sobre a Aqedah permanecem uma encruzilhada para as três tradições.
Também, o interesse na Aqedah ocorre no nascimento das três religiões abraâmicas, servindo ao propósito de justificar as suas respectivas reinvidicações a uma verdade absoluta e exclusiva. Conversações entre as três religiões abraâmicas foram vitais porque, no estágio prímevo da sua história, a sua existência e a sua sobrevivência estavam em jogo nas discussões. O diálogo judaico-cristão a respeito da Aqedah focou-se no significado teológico; o diálogo judaico-islâmico focou-se na identidade étnica da vítima. Portanto, os diálogos judaico-cristão-islâmicos a respeito da Aqedah foram não apenas necessários por causa das diferenças entre as três partes, mas foram, também, possíveis por causa das ligações existentes entre elas.
De fato, a Aqedah é, em essência, um diálogo; pois este assunto, contém um eloquente apelo para o diálogo. Esta é uma das lições que nós podemos extrair de uma leitura cuidadosa dos dois textos sagrados. Ironicamente, parece que os textos-base em si apontam em uma direção completamente diferente das quais está indicada nas controvérsias. Nos textos, a ênfase não está no fim da passagem e não dizem respeito ao significado e a solução teológica. Nem está no início e nem diz respeito a identidade do filho (o Qur’ān nem mesmo menciona o seu nome). Em vez disso, está no centro do diálogo, que consiste das questões humanas e dos silêncios das vítimas.
Acredito que Martin Buber tinha o intuito desta lição em sua crítica ao tratamento que Kierkegaard deu a Aqedah.[40] Enquanto Kierkegaard via na Aqedah o princípio da “suspensão teleológica da ética,”[41] pelo qual o homem alcança o nível religioso sozinho, Buber encontrava na Aqedah o ímpeto existencial para o encontro “eu e você”.[42] É significante que o único tratamento dado a Aqedah que tem sobrevivido ao longo das controvérsias, até os dias de hoje, é a memória da vítima e suas questões e silêncios eternos que revelam uma ânsia pela comunicação.
Isso, talvez seja, porque a Aqedah ainda estabelece um importante papel no diálogo inter-religioso. Hoje, sob a sombra do Holocausto, referências à Aqedah têm sido renovadas no imaginário judaico, [43] assim como na teologia cristã. [44] E isto não apenas, intensamente, afetou o o diálogo judaico-cristão,[45] mas tem, também, de alguma influenciado o diálogo judaico-islâmico.[46] Não há a menor dúvida de que a Aqedah tem se tornado uma importante parte dos esforços judaico-cristãos em direção a reconciliação.[47] Podemos esperar que a lição da Aqedah, em algum momento, encontrará, também, seu caminho através das complicações do diálogo judaico-muçulmano, que, no momento, está confuso e prejudicado pelos conflitos árabe-israelitas.
[1] Jub., 17:15-18:19; Filo, On Abraham, 167-204; Josephus, Ant. l: 222-236; 4 Macc 16:18-20; m. Ta’anith 2:4.
[2] G. F. Moore tem apontado a diferença: “Em Gênesis, é a fé de Abraão e obediência a vontade de Deus mesmo com a oferta de seu único filho, o filho da promessa, que constitui a inteira significância da estória: Isaque é uma personagem puramente passiva. Na literatura rabínica, entretanto, a voluntariedade do sacrifício da parte de Isaque é intensamente emfatizada,” Judaism in the First Centuries of the Chrirtian Era, 3 vols. (Cambridge: Harvard University Press, 1927-1930), 1:539; cp. M. Givati, “Binder and Bound-Bibleand Midrash” (em hebraico), Beth Mikra 27 (1982): 144-154.
[3] Ver P. R. Davies e B. D. Chilton, “The Aqedah: A Revised Tradition History,” in The CBQ 40 (1978): 517-529
[4] Ver Shalom Spiegel, The Last Trial, trad. J. Goldin (New York: Pantheon, 1967), xix-xx.
[5] Davies, 515; cp. Filo, On Abrahme, 198.
[6] Ver G. Vermes, Scripture and Tradition in Judaism (Leiden: Brill, 1973), 215.
[7] ‘Ver b. Ta’an. 16a; cp. b. Ber. 62b, “Samuel [terceiro século] diz: ‘Ele vira as “cinzas de Isaque,’” como o verso diz “Deus proverá para si, meu filho, o cordeiro para o holocausto.”
[8] Gen. Rab. 56:4.
[9] Ver R. J. Daly, “The Soteriological Significance of the Sacrifice of Isaac,” CBQ 39 (1977): 45-75; Davies, 529-533.
[10] Melito em um fragmento de Catena on Genesis (ANF 8:759-760).
[11] Ireneus, Contra Heresias 4.5.4; Tertuliano, resposta aos Judeus 10; e Contra Marcião, 3.18; e Orígenes, Homilia sobre Gênesis. 8
[12] Ver Jo Milgrom, The Binding of lsaac: The Akedah, A Primary Symbol in Jewish Thought and Art (Berkeley, CA: BIBAL, 1988), pp. 208-20
[13] E. R. Goodenough, Jewish Symbols in the Greco-Roman Period, 13 vols. (New York: Pantheon, 1953-1968), 4:178.
[14] J. Bowker, The Targums and Rabbinic Literature (London: Cambridge Univ. Press, 1969), p. 232.
[15] Ver Targum Jônatas de Is 52 e 53; cp. Targum Jó de 3:18.
[16] A tradição da ressurreição está preservada tanto nos textos judaicos e cristãos antigos; ver Pirke R. El. 31:3; Orígenes, Homilia sobre Gênesis 8:l; e Agostinho, Exposição sobre o Salmo 51.5.
[17] Encyclopedia Judaica (Jerusalem: Encyclopedia Judaica, 1971-1972), s.v. “Akedah.”
[18] Spiegel, The Last Trial, 83, n. 26.
[19] Joseph H. Hertz, The Authorized Daily Prayer Book (New York: Bloch Publishing Company, 1948), pp. 880-883.
[20] Ver, e.g., C. T. R. Hayward, “The Sacrifice of Isaac and Jewish Polemic against Christianity,” CBQ 52 (1990): pp. 292-306.
[21] Abdullah Yusuf Ali, Qur’ān: Text, Translation and Commentary (New York: Hafner, 1938), 2:1204.
[22] Qur’ān 37:112 sobre Isaque e 19:54 sobre Ismael.
[23] Qur’ān 2:177
[24] Qur’ān 21:85
[25] “R. Firestone, “Abraham’s Son as the Intended Sacrifice (Al-Dhabīḥ, Qur’ān 37: 99-1 13): Issues in Qur’ānic Exegesis,” JSSt 34 (1989): 117.
[26] Ṭabarī, Tafsīr 4.14.
[27] Ver Ignaz Goldziher, Muslim Studies, 2 vols., trand. C. R. Barber e S. M. Stern (London: Allen & Unwin, 1967), 1:135.
[28] Ver John E. Wansbrough, The Sectarian Milieu: Content and Composition of Islamic Salvation History (New York: Oxford University Press, 1978), pp. 110-112.
[29] Ali, 2:1205.
[30] A tradição completa encontra-se em Ṭabarī, Tafsīr, 23, 85; cp. Zamakhshari, 3.350; e Al-Baidawi, 37.102.
[31] Andrews Rippin, “Sa’adya Gaon and Genesis 22: Aspects of Jewish-Muslim Interaction and Polemic,” em Studies in Islamic and Judaic Traditions, ed. William M. Brinner and Stephen D. Ricks (Atlanta: Scholars Press, 1989), p. 40.
[32] Ver A. S. Halkin, “Saadia’s Exegesis and Polemics,” in Rab Saadia Gaon: Studies in His Honor (New York: Arno Press, 1980), pp. 117-141.
[33] Ver Robert Hayward, “Targum Pseudo-Jonathan and Anti-Islamic Polemic,” JSSt 34 (1989): pp. 77-93; cp. A. Shapira, “Traces of an AntiMoslem Polemic in Tg. Ps. J. on the Binding of Isaac” [hebraico], Tarbiz 54 (1984/85): 293-296.
[34] Milgrom, 91.
[35] Auerbach, Mimemis: The Representation of Reality in Western Literature (New York: Doubleday Anchor Books, 1953), p. 19.
[36] Jacques Doukhan, “The Center of the Aqedah: A Study of the Literary Structure of Gen 22:l-19,” AUSS 31 (Spring 1993): pp. 17-28.
[37] Firestone, p. 98.
[38] Ver Moshe Perlmann, “The Medieval Polemics Between Islam and Judaism,” in Religion in a Religious Age, ed. S. D Goitein (Cambridge, MA: Assoc. for Jewish Studies,l974), 106.
[39] Há pouca evidência do diálogo islâmico-cristão sobre a Aqedah. Talvez alguém consiga perceber um referência a ele na controvérsia islâmico-cristã sobre a crucifixão de Jesus, que parece implicar a mesma conexão tipológica entre Isaque e Jesus como encontrada nas fontes cristãs (ver T. A. Naudb, “Isaac Typologyin the Koran,” in De fructu oris sui: Essays in Honour of Adrianus van Selms, ed. I. H. Eybers et al. [Leiden: Brill, 1971]: pp. 121-129). Desse ponto de vista, a apologia islâmica era direcionada tanto aos judeus quanto aos cristãos. Para os judeus significava que Jesus esra o Messias desde que ele não foi morto (ver Qur’ān, Surata 4: 152, 154-156). Para os cristãos, significava a negação de sua divindade e da trindade, assim como a negação da validade expiatória de sua morte (ver Qur’ān, Surata 4:169; cp. Mahmoud M. Ayoub, “Towards an Islamic Christology 11: The Death of Jesus, Reality or Delusion,” The Muslim World 52 [1980]: p. 94).
[40] Reações judaicas a Kierkegaar são dividadas sobre a questão do quanto a visão de Kierkegaard adequa-se a tradição judaica. Para Milton Steinberg, não é compatível com o judaísmo, enquanto para J. B. Soloveitchitz é compatível; Ernst Simon sustenta uma posição intermediária (ver “Aqedah” na Jewish Encyclopedia).
[41] Søren Kierkegaard, Fear and Trembling (Princeton: Princeton University Press, 1941), 131.
[42] Ver Martin Buber, I and Thou, trand. W. Kaufman (New York: Scribner, 1970), p. 123, e seu Eclipse of God (New York: Harper, 1952), p. 149; cp. Aimee Zeltzer, “An Existentid Investigation: Buber’s Critique of Kierkegaard ‘Teleological Suspension of the Ethical’,” em Church Divinity, ed. J. H. Morgan (Notre Dame, IN: 1987), p. 138-153.
[43] Ver, especialmente, Emil Fackenheim, God’s Presence in History: Jewish Afinnations and Philosophical Reflections (New York: New York University Press, 1970); cp. Michael Brown, “Biblical Myth and Contemporary Experience: The Akedah in Modern Jewish Literature,” Judaism 31 (1982): pp. 99-111; Steven T. Katz, Post-Hdocaust Dialogues: Critical Studies in Modern Jewish Thought (New York: New York University Press, 1983); Arthur A. Cohen, “Jewish Theology and the Holocaust,” in Theology (March 1983); André Neher, The Exile of the Word (Philadelphia: Jewish Publication Society, 1981), pp. 216-218; Harry James Cargas em Conversation with Elie Wiesel (New York: Paulist Press, 1976), pp. 55-57, 85; Alvin H. Rosenfeld, “Reflections on Isaac,” Holocaust and Genocide Studies 7 (1986): pp. 241-248. A moderna literatura israelita merece atenção especial aqui desde que testemunha a uma discussão interna a respeito da relevância da Aqedah em relação a realidade de Israel; ver Edna A. Coffin, “The Binding of Isaac in Modern Israeli Literature,” Michigan Quarterly Review (1983): pp. 429-444; Ilan Avisar, “Evolution of Israeli Attitude Toward the Holocaust,” Hebrew Annual Review 9 (1985): pp. 31-52.
[44] Ver F. Talmage, “Christian Theology and the Holocaust,” Commentary 60 (October 1975): 72-75; R. E. Willis, “Christian Theology after Auschwitz,” JES 12 (1975): pp. 493-519; resposte de P. Chare em JES 14 (1977): pp. 105-109; A. A. Cohen, “The Holocaust and Christian Theology: An Interpretation of the Problem,” em Judaism and Christianity under the Impact of National-Socialism (1919-1945), ed. Y. Mais (Jerusalem: Historical Society of Israel, 1982), pp. 415-439.
[45] J. Peck, ed., Jews and Christians after the Holocaust (Philadelphia: Fortress, 1982); cp. I. Eraenberg, “Cloud of Smoke, Pillar of Fire: Judaism, Christianity, and Modernity after the Holocaust,” em Auschwitz Beginning of a New Era, ed. Eva Fleischner (New York: KTAV), p. 77.
[46] Ver M. H. Ellis, Toward a Jewish Theology of Liberation (Mary Knoll, NY: Orbis,1989), especialmente seu posfácio, “The Palestinian Uprising and the Future of the Jewish People,” pp. 123-124.
[47] Ver Harry James Cargas, A Christian Response to the Holocaust (Denver: Stonehenge Books, 1981), especialmente pp. 167-168.