Os Aspectos Forense e Transformador da Justificação: Uma Resposta a N. T. Wright e John Piper1
Erwin R. Gane [In Memoriam], M.Div., M. Th., é bem conhecido entre os membros da IASD. Em seus últimos 9 anos antes da aposentadoria, o Pastor Gane serviu como editor da Lição da Escola Sabatina para Adultos na Conferência Geral. Anteriormente, ele havia lecionado no Avondale College na Australia, no Union College e no Pacific Union College nos Estados Unidos. Ele também pastoreou igrejas na Austrália e nos Estados Unidos.
Tradução: Hugo Martins
“Os Aspectos Forense e Transformador da Justificação: Uma Resposta a N. T. Wright e John Piper” (Original em Inglês: The Forensic and Transformational Aspects of Justification: A Response to N. T. Wright and John Piper) foi primeiramente publicado no Journal of the Adventist Theological Society da ATS (Adventist Theological Society [Sociedade Teológica Adventista]) em 2010. Usado com permissão.
Introdução: N. T. Wright Versus John Piper sobre Justificação
O renomado estudioso britânico do Novo Testamento, Bispo N. T. Wright, rejeita a ideia de que a justificação inclui a transformação espiritual do crente.2 Enfatizando a temática da aliança e do tribunal, Wright argumenta que a justificação é uma mudança de status, onde o crente é, então, declarado como um verdadeiro membro da família da aliança de Deus.3 A aliança foi e é o “plano único de Deus através de Israel para o mundo,”4 a aliança abraâmica que encontra seu cumprimento em Cristo, o judeu fiel que frutificou as esperanças da nação judaica. Wright rejeita como absurda a ideia de que o juiz de um tribunal possa transferir retidão moral a um réu. “Quando o juiz no tribunal justifica alguém, ele não dá a essa pessoa a sua própria ‘justiça’. Ele cria o status que o réu inocentado agora possui, por meio de um ato de declaração, um ‘ato de fala’ em nosso jargão contemporâneo.”5
Seguindo até certo ponto, a chamada Nova Perspectiva sobre Paulo, sem concordar com todos os seus defensores,6 Wright rejeita a visão de que Paulo estava reagindo à justiça pelas obras do judaísmo contemporâneo. Em vez disso, Paulo estava tentando corrigir as atitudes exclusivistas dos judeus, pelas quais eles negavam a inclusão dos gentios na família da aliança. “O propósito de Deus ao chamar Abraão era abençoar o mundo inteiro, convocar um povo formado tanto por gentios quanto por judeus. Este propósito foi então alcançado através da fidelidade do Messias, e todos os que nele creem constituem esta família cumprida de Abraão.”7
Wright escreve eloquentemente sobre a obra transformadora do Espírito Santo.8 Mas ele separa a justificação da obra do Espírito, que capacita os crentes a obedecer à lei de Deus. Na opinião dele, o Espírito Santo não tem nada a ver com justificação. Esta última é uma mudança de status para o crente; a obra do Espírito é uma obra transformadora separada.
Sem diminuir a enorme importância da experiência da aliança eterna para o crente, e sem depreciar a obra do Espírito conforme descrita por Wright, desejo demonstrar que a sua definição de justificação não traduz o que Paulo quis dizer. Apesar da rejeição de Wright da compreensão básica de Lutero e Calvino de que a justificação inclui tanto uma transação legal como também um aspecto de transformação espiritual no sentido da reorientação dada por Deus que torna a santificação possível, minha opinião é que a compreensão deles da justificação era completamente bíblica.
Antes de apresentar a minha própria interpretação, é útil considerar brevemente a crítica de John Piper a Wright. Em sua obra, The Future of Justification: A Response to N. T. Wright [O Futuro da Justificação: Uma Resposta a N. T. Wright], Piper debate com Wright ao apresentar a visão protestante tradicional da justiça imputada, que considera o crente como moralmente justo, embora, de fato, ele não o seja. Piper diz:
“O Juiz onisciente não mostra mera clemência ou perdão e nos atribui um status de ‘justos’; ele nos credita graça precisamente porque nos considera como tendo a retidão moral que não nos pertence por natureza. Quando a acusação contra nós é lida (‘Você não tem justiça moral’) e o veredicto do Juiz é proferido (‘Eu declaro que você não é culpado da acusação, mas de fato tem justiça moral’), a justiça em vista neste declaração é a verdadeira justiça moral. Argumentarei posteriormente que esta é a justiça de Cristo imputada ao culpado somente pela fé. A declaração de justificação no tribunal de Deus não é meramente perdão; não é apenas absolvição; é considerar o réu como moralmente justo, embora ele não seja por natureza.”9
A definição de justificação (imputação) de Piper não parece mais satisfatória do que a visão de Wright de que a justificação é apenas uma mudança no status jurídico. Em última análise, a visão de Piper também resume à justificação meramente como uma mudança legal de status, uma declaração forense sem qualquer transformação moral real. Os crentes são considerados aquilo que realmente não são. Em um esforço para evitar a doutrina católica romana da justiça infundida, os protestantes tradicionais como Piper negaram a realidade espiritualmente transformadora de “Cristo em vocês, a esperança da glória” (Cl 1:27).10
Nas seções seguintes deste artigo, identificarei quatro aspectos sobrepostos da transformação espiritual na descrição de Paulo da justificação como (1) perdão, (2) imputação de justiça, (3) o “novo nascimento” e (4) união com Cristo. Depois mostrarei brevemente como Lutero e Calvino se afastaram da teologia católica para concordar com Paulo.
Perdão
Paulo fala da justificação como perdão em Atos 13:38–39, cuja tradução literal diz: “Portanto, irmãos, saibam que por meio deste homem lhes é proclamado o perdão dos pecados; de todas as coisas das quais não puderam ser justificados pela lei de Moisés, por este homem todos os que creem são justificados.”11 Da mesma forma, em Romanos 4:1–8, Paulo equipara a justificação à imputação de justiça e a identifica como perdão, pela forma como cita o Salmo 32:1–2:
“Davi declara ser bem-aventurado aquele a quem Deus atribui justiça, independentemente de obras. . . . ‘Bem-aventurados aqueles cujas transgressões são perdoadas, e cujos pecados são cobertos’” (Rm 4:6–7).
Há um aspecto legal importante no perdão: os pecadores são absolvidos quando buscam o perdão de Deus em virtude do fato de que Cristo sofreu o castigo pelos seus pecados. Mas o perdão não é apenas uma questão forense. Paulo se refere especificamente ao perdão como transformação espiritual: “E quando vocês estavam mortos nos seus pecados e na incircuncisão da carne, ele lhes deu vida juntamente com Cristo, perdoando todos os nossos pecados” (Cl 2:13). Desta maneira, a NAA traduz o aoristo, particípio médio χαρισάμενος [charisámenos] como um particípio adverbial temporal. Com a mesma legitimidade, pode ser considerado como um particípio causal a ser traduzido: “porque (ou desde) ele nos perdoou todas as nossas ofensas.”12 De qualquer forma, a força da passagem é que o perdão de Deus vivificou os colossenses com Cristo da morte espiritual.13 Este perdão não apenas apagou forensicamente o registro do pecado com suas sentenças condenatórias (v. 14); também deu nova vida quando o crente foi circuncidado espiritualmente “pela remoção do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo” (v. 11), sepultado com ele no batismo e ressuscitado para uma nova vida com ele “por meio da fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos” (v. 12). Esta nova vida, inicialmente recebida de Cristo no momento da conversão, não é apenas nova no sentido de libertação forense da condenação, como mostra o contexto anterior. Nos versículos 6–7, Paulo exorta: “Portanto, assim como vocês receberam Cristo Jesus, o Senhor, continuem a viver nele, estando enraizados e edificados nele, e confirmados na fé, como foi ensinado a vocês, crescendo em ação de graças.” A transformação espiritual da vida estabelecida pelo recebimento inicial de Cristo, quando ocorreu a experiência do perdão (v. 13), é continuar na vida espiritual.
O uso de ἄφεσις [áfesis] no Novo Testamento enfatiza o conceito de que o perdão envolve transformação espiritual. Segundo Arndt e Gingrich, a palavra significa “libertação do cativeiro”, bem como “perdão, cancelamento de uma obrigação, punição ou culpa. . . . O Perdão dos Pecados. . . . Perdão e Reconciliação.” 14 Significativamente, a palavra ἄφεσις [áfesis] é usada duas vezes em Lucas 4:18: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação [ἄφεσιν {áfesin}]aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos” [. . . ἀποστεῖλαι τεθραυσμένους ἐν ἀφέσει [apostêiloi tethrauménos en afései]: literalmente, “para enviar os oprimidos em libertação”]. Jesus não saiu por aí libertando pessoas de prisões literais. Em vez disso, ele proporcionou libertação espiritual, isto é, perdão e liberdade às pessoas cativas e oprimidas pelo pecado e por Satanás (cp. At 10:38). Esta liberdade está associada à “recuperação da visão,” pois Cristo proporcionou não apenas liberdade legal da culpa, mas também uma mudança de perspectiva espiritual.
Paulo estava reiterando o ensino do Antigo Testamento. O salmista escreveu sobre o Deus “que perdoa todos os seus pecados e cura todas as suas doenças, que resgata a sua vida da sepultura” (Sl 103:3– 4; [NVI]). Que este perdão, cura e redenção envolvem transformação espiritual é sugerido pelas seguintes palavras: “. . . e a coroa de bondade e compaixão que enche de bens a sua existência, de modo que a sua juventude se renova como a águia” (vv. 4–5).
Quando Davi buscou perdão pelo seu pecado com Bate-Seba, ele pediu limpeza espiritual:
“. . . apaga as minhas transgressões. Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado. . . . Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve. . . . Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável” (Sl 51:1–2, 7, 10).15
O ato legal de Deus de abolir a culpa do pecador arrependido envolve o dom da limpeza espiritual que transforma a atitude humana e o relacionamento com ele. O perdão de Cristo nos leva a uma comunhão amorosa com ele que substitui a culpa e a condenação, tornando possível a renovação espiritual a longo prazo.16
Perdão é justificação, um ato divino forense e transformador; portanto, a justificação é tanto forense quanto transformadora.
Imputação de Justiça
John Piper afirma a visão tradicional pós-Reforma da imputação quando afirma que Deus “nos considera como tendo a justiça moral que de fato não temos em nós mesmos.”17 É minha opinião que esta conclusão é injustificada pelos fatos bíblicos. Pelo contrário, a evidência aponta para a conclusão de que a imputação de justiça de Deus aos crentes é uma declaração legal de uma mudança simultânea de estado e de orientação espiritual resultante da justiça concedida a eles pelo dom do Espírito Santo.
Para demonstrar que Abraão foi justificado pela fé, não pelas obras, Paulo cita Gênesis 15:6. “Pois o que diz a Escritura? Ela diz: ‘Abraão creu em Deus, e isso lhe foi atribuído para justiça’” (Rm 4:3). A crença de Abraão (hebraico Hif. de אמן [’aman]) foi contada/contada/imputada (Qal de השב [hashav]; LXX e NT λογίζομαι [logízomai]) a ele como justiça, significando que através da crença ele ganhou posse dela como um presente. Samson Raphael Hirsch explica o verbo אמן [’aman], “crer”: “Responder a uma frase falada com ‘aman não significa apenas declará-la verdadeira, mas entregar-se à verdade expressa na frase, torná-la sua e jurar se permitir ser guiado por isto.”18
No Antigo Testamento, a crença em Deus envolve não apenas a aceitação de ideias, doutrinas ou proposições, mas a aceitação de Deus na vida, resultando num compromisso prático com um estilo de vida estipulado por Yahweh como apropriado para o relacionamento de aliança eterna (cp. Sl 31:23; 78:7, 8; Is 1:21, 26). Falando de Abraão, Neemias escreveu: “Achaste o seu coração fiel diante de ti e com ele fizeste aliança, para dares à descendência dele a terra dos cananeus” (Ne 9:8). A fé está relacionada à retidão, obediência e bondade ética. Poderíamos dizer que a crença (fé) é a união com Deus que afeta todas as atitudes e ações de uma pessoa. Não é nenhuma surpresa que Deus tenha considerado (contado/considerado/imputado) Abraão justo (Gn 15:6). Ele considerou porque, em vista da fé de Abraão, o patriarca compartilhava da justiça de Deus. A sua justiça era a justiça de Deus, mas por causa da sua união de fé com Deus também era dele. Abraão experimentou a justificação pela fé e, na medida em que manteve a sua união de fé com Deus, a sua vida demonstrou uma fidelidade genuína.
Esta interpretação da experiência de Abraão é apoiada pelo exame do alcance semântico do verbo השב [hashav] no Antigo Testamento hebraico, reforçado por λογίζομαι [logízomai], seu equivalente grego na Septuaginta. Estas palavras cobrem uma ampla gama semântica, dependendo dos contextos em que ocorrem:
- Às vezes, referem-se a coisas ou pessoas que são consideradas o que não são. Raquel e Lia reclamaram que Labão as considerava (השב [hashav]/λογίζομαι [logízomai]) como estrangeiras (Gn 31:15), embora não o fossem. Judá pensava que (השב [hashav]) Tamar era uma prostituta, embora ela não fosse (Gn 38:15). Levítico 25:31 legisla: “Mas as casas das aldeias que não têm muralhas ao redor serão estimadas (השב [hashav]) como [isto é, consideradas como se fossem, embora realmente não sejam] os campos da terra; para elas haverá resgate, e sairão do poder do comprador no Jubileu.” Eli supôs (השב [hashav]) que Ana estava bêbada, mas ela estava sóbria (1 Sm 1:13). Jó pensou (השב [hashav]) que Deus o considerava seu inimigo, mas ele não era (Jó 13:24; 19:11).
- Por outro lado, o verbo השב [hashav] pode se referir a pessoas ou coisas sendo consideradas como de fato são. Os emins eram considerados (השב [hashav]/λογίζομαι [logízomai]) gigantes por causa de seu tamanho grande (Dt 2:11, 20). Jó considerou (השב [hashav]) seus consoladores estúpidos porque realmente eram (Jó 18:3). Finéias foi contado (השב [hashav]) como justo porque suas ações revelaram que ele era (Sl 106:30, 31; cp. Nm 25:10–13). Os tesoureiros de Neemias foram “considerados” (השב [hashav]) fiéis porque eram (Ne 13:13). Josué 13:3 menciona uma terra “considerada (השב [hashav]) como cananeia” porque os cananeus a possuíam na época.
- 2 Samuel 4:2 see refere ao fato de que a vila de Beerote foi “considerada (השב [hashav]) como pertencente a Benjamim,” isto é, propriedade de Benjamim, a tribo à qual foi doada na distribuição da Terra Prometida na época de Josué. (Js 9:17; 18:21–25). Portanto, neste contexto, השב [hashav] se refere ao resultado real de uma transferência presenteada por Deus. Esta propriedade real estava, aturalmente, sob a propriedade geral da terra por parte de Deus (Lv 25). Portanto, estava condicionada à manutenção da aliança. Se o povo quebrasse a aliança, perderia a terra e iria para o exílio (Lv 26). Assim, por analogia, o fato de termos o verdadeiro dom da justificação não elimina a sua condicionalidade. Não é salvo uma vez, sempre salvo.
- A legislação de Números 18:26–31 estabelece uma transferência real de dízimos agrícolas que deveriam ser “imputados” (השב [hashav]) aos levitas. Os dízimos constituíam uma dádiva tangível realmente possuída pelos levitas, demonstrado pelo fato de que eles e os membros de suas famílias deviam comer desse alimento (v. 31).
A compreensão tradicional pós-Reforma da imputação em Romanos 4 reconhece apenas uma das conotações de השב [hashav] e λογίζομαι [logízomai] do Antigo Testamento. Diz-se que a imputação da justiça é apenas Deus contando legalmente aquilo que não é realmente assim na vida dos crentes. Mas o uso de λογίζομαι [logízomai] por Paulo se baseia em outra parte de seu alcance semântico. Em Romanos 4:4, ele diz: “Ora, para quem trabalha, o salário não é considerado (λογίζομαι [logízomai]) como favor, mas como dívida.” Aqui, o salário de um trabalhador é considerado como o que realmente é: algo devido. Paulo continua dizendo: “Mas, para quem não trabalha, porém crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é atribuída (λογίζεται [logízertai]) como justiça” (v. 5). O contraste nesta passagem é entre quem trabalha e quem não trabalha. Em ambos os casos, uma transferência é contabilizada/imputada: salário para um trabalhador e justiça para um crente. Nada indica outro contraste aqui entre considerar algo que realmente pertence a uma pessoa (“salário”; v. 4; significado nº 2. de השב [hashav]/λογίζομαι [logízomai]) e aquilo que não pertence (“justiça”; v. .5; significado nº 1., acima). Tal como o pagamento de salários, o dom da justiça não é apenas uma prestação de contas legal; é uma transferência real. A diferença é que a justiça é um presente; não um ganho.
Abraão recebeu o dom da justiça antes de receber o “sinal da circuncisão” (Rm 4:11). A circuncisão era “selo da justiça da fé que teve quando ainda não havia sido circuncidado” (Rm 4:11).19 Paulo não diz que a justiça que Abraão teve pela fé era apenas uma declaração legal. Seguindo seu uso de λογίζομαι [logízomai] nos versos 4 e 5, concluímos com toda certeza que Deus declarou aquilo que ele concedeu simultaneamente a Abraão: o dom de sua justiça. Segundo Paulo, esta mesma dádiva pode pertencer a todos os crentes (Rm 4:22–25).20
Novo Nascimento
Tito 3:5-7 literalmente diz:
Não pelas obras de justiça que praticamos, mas, segundo a sua misericórdia, ele nos salvou, pela lavagem do renascimento (παλιγγενεσίας [palingenesías]) e da renovação do Espírito Santo, que ele derramou (ἐξέχεεν execheen]) ricamente sobre nós por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, para que tendo sido justificados (δικαιωθέντες [dikaiōthéntes]) por Sua graça, poderíamos ser herdeiros segundo a esperança da vida eterna.
Aqui Deus nos salvou através da experiência do novo nascimento, derramando seu Espírito sobre nós (cp. At 2:17–18, 33). Em Tito 3:5–7, somos herdeiros como resultado (ἳνα [hína]) do ato de salvação (ἔσωσεν [ésōsen]), lavagem (λουτροῦ [lutrú]), derramamento (ἐξέχεεν [execheen]), justificação (δικαιωθέντες [dikaiōthéntes]). Em outro lugar, Paulo enfatiza que é a justificação, o dom da justiça, que nos torna herdeiros (Rm 4:13–14; Gl 3:29; 4:1, 6–7). De acordo com Romanos 8:13–17, é o Espírito Santo quem nos transmite esta herança.
Em Tito 3:7, a ação do primeiro aoristo, particípio passivo, precede a ação do verbo principal na frase. O verbo principal é γενηθῶμεν [genētṓmen], “podemos nos tornar.” Fomos justificados antes de nos tornarmos herdeiros, para que possamos nos tornar herdeiros. O ato salvador de Deus nesta passagem é identificado com o seu ato justificador, tornando-nos herdeiros. Visto que ele nos salvou derramando o Espírito Santo sobre nós, foi assim que ele nos justificou. A redação da passagem apoia a conclusão de que a salvação é justificação, e que Deus opera em nós pela lavagem do renascimento e pela renovação pelo Espírito Santo.
Uma ênfase semelhante aparece em Gálatas 2. Os crentes são justificados pela “fé em Cristo Jesus,” “não pelas obras da lei” (v. 16). Paulo “morreu para a lei” a fim de “viver para Deus” (v. 19). Ele foi “crucificado com Cristo” para Cristo viver nele (v. 20). Paulo está falando sobre justificação. Ele também pergunta aos Gálatas: “vocês receberam o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Será que vocês são tão insensatos que, tendo começado no Espírito, agora querem se aperfeiçoar na carne?” Eles começaram com a justificação (Gl 3:2–3), e começaram pelo Espírito. Esta correlação indica que a obra do Espírito é um aspecto essencial da justificação. Paulo novamente cita Gênesis 15:6 (Gl 3:6) e fala dos gentios sendo justificados pela fé (vv. 7–9). Ele conclui anunciando que Cristo morreu “para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Cristo Jesus, a fim de que recebêssemos, pela fé, o Espírito prometido” (v. 14). A bênção de Abraão foi a justificação pela fé. É nosso quando “recebemos a promessa do Espírito pela fé.” Portanto, a justificação é uma obra transformadora do Espírito. Gálatas ensina a mesma mensagem de Tito 3:5–7: A justificação inclui a experiência do novo nascimento.
União com Cristo por meio do Espírito Santo
Justiça é revelada pelo Espírito Santo. Paulo ensina que o poder do evangelho para os crentes em Cristo resulta da “justiça de Deus” sendo “revelada” (ἀποκαλύπτεται [apokalýptetai]) a eles (Romanos 1:16–17). Em outra passagem, Paulo usa o verbo ἀποκαλύπτω (apokalýptō) para se referir à revelação dos dons de Deus aos crentes pelo Espírito Santo (1Co 2:9–16). Em Romanos 1:16–17, a revelação da justiça de Deus pelo Espírito resulta na justificação do crente. “O justo viverá pela fé” (v. 17).
A justificação pela graça é o dom do poder espiritual (justiça) ao crente. Em Romanos 3, “a justiça de Deus” é “mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que creem” (v. 22). A justificação é pela “graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (v. 24). Nos escritos de Paulo, a graça é o dom de poder espiritual imerecido (1 Co 1:4–9; 15:10; 2 Co 9:8, 14; 2 Tm 2:1). Assim como em Efésios 1:7–8, Paulo identifica o perdão com a redenção e a dom da graça; em Romanos 3:24, ele também identifica a justificação como a redenção e o dom da graça. Paulo, então, explica as implicações deste dom:
- o sacrifício expiatório de Cristo, “eficaz pela fé” (v. 25);
- “para manifestar a sua justiça, por ter ele, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos” (v. 25, i.e., perdão para o crente);
- “para mostrar a sua justiça (δικαιοσύνης [dikaiosýnēs]) no tempo presente, para que ele seja justo (δίκαιον [díkaion]) e aquele que “justifica” (δικαιοῦντα [dikaioúnta], declara e torna justo) aquele pela fé em Jesus” (v. 26, minha tradução).
A justificação pela “graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (v. 24). envolve estes três elementos: sacrifício, perdão o dom transformador de justiça de Deus ao crente.
A justificação envolve paz através de Cristo e do Espírito Santo. Romanos 5 diz que “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio do nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 1), porque “o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi dado” (v. 5).
A justificação é a morte para o pecado e a nova vida em Cristo. Romanos 6:7 traduzido literalmente diz: “Porque aquele que morreu foi justificado do pecado.” Pela justificação, o “velho homem” (v. 6), o velho modo de vida, a velha vida enraizada no pecado morreu (cp. Ef 4:22; Cl 3:3), e a nova vida em Cristo começou (cp. Rm 6:4; Ef 4:24; Cl 3:1). Paulo acrescenta: “Assim também vocês considerem-se (λογίζεσθε [logízeste]) mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.” (Rm 6:11). Novamente, Paulo usa λογίζομαι [logízomai]. Os crentes devem se considerar mortos para o pecado, mas vivos para Deus. Não são apenas destinatários de uma declaração legal; esta transformação é uma realidade.
A justificação resulta em santificação (santidade). Os crentes cristãos aos quais Paulo se dirigiu já foram “escravos do pecado” (Rm 6:17). Mas quando responderam à mensagem do evangelho, “uma vez libertados do pecado, foram feitos servos da justiça” (v. 18). Essa transformação ocorreu quando eles foram justificados. No livro de Romanos, Paulo fala da justificação como o dom da justiça de Deus (1:16, 17; 3:21–24; 4:22–25). Para estes crentes, a velha vida de pecado foi crucificada (6:6). Eles morreram para o pecado quando foram justificados. “Porque aquele que morreu foi justificado do pecado” (v. 7; tradução minha). Antes de serem justificados, eles apresentaram os seus membros “escravos da impureza e da maldade que leva à maldade” (v. 19). Paulo insiste, então, que, uma vez que eles se tornaram servos voluntários da justiça (na justificação), eles devem apresentar seus membros como “servos da justiça para a santificação” (εἰς ἁγιασμόν [eis hagiasmón], v. 19; ênfase acrescida). Paulo acrescenta: “Agora, porém, libertados do pecado, transformados em servos de Deus, o fruto que vocês colhem é para a santificação. E o fim, neste caso, é a vida eterna” (v. 22). Aqui, o dom da justiça de Cristo na justificação é o ato divino que torna o crente santo ou santificado. Portanto, a justificação resulta em santificação.
O termo grego para “santificação” (ἁγιασμός [hagiasmón]) usada em Romanos 6:19, 22 significa “santidade”. O ensino consistente das Escrituras é que o Espírito Santo nos torna santos (1 Pe 1:2; 2 Ts 2:13; Rm 15:16). A Bíblia nunca diz que nos santificamos ou que as nossas obras nos tornam santos. O dom da justiça na justificação nos santifica ou nos torna santos porque na justificação o Espírito Santo é derramado em nossos corações (Tt 3:5–7; Rm 5:1–2, 5; 8:9–10; Gl 3:3–14). Eis o porquê justificação e santificação são inseparáveis. O dom de Cristo nos concedido pelo Espírito Santo na justificação nos torna santos ou santificados. A justificação é concedida por Cristo; a santificação é possuída por Cristo. A justificação é Cristo entrando no coração dos crentes todos os dias à medida que nos entregamos ele; santificação é Cristo habitando em nossos corações todos os dias. Temos a posse porque recebemos a concessão.
A santificação é frequentemente mencionada nas Escrituras como a santidade presente em Cristo. Paulo foi enviado aos gentios “ . . . a fim de que eles recebam remissão de pecados (justificação) e herança entre os que são santificados (τοῖς ἡγιασμένοις [tois hēgiasménois]) pela fé em mim” (At 26:17–18).21 Paulo fala de si mesmo como “ ministro de Cristo Jesus entre os gentios . . . de modo que a oferta deles seja aceitável, uma vez santificada (ἡγιασμένη [hēgiasménē]) pelo Espírito Santo” (Rm 15:16).22 Aos crentes coríntios, Paulo escreveu: “. . . vocês foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1 Co 6:11). Eles receberam a purificação envolvida nas experiências inseparáveis de justificação e santificação, e Paulo queria que eles mantivessem a bênção.
Paulo também falou da santificação como crescimento progressivo em santidade. “E todos nós, com o rosto descoberto, contemplando a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, que é o Espírito” (2 Co 3:18). A experiência diária da justificação (receber Cristo no coração pelo dom do Espírito Santo) resulta num crescimento progressivo na santidade. Paulo enfatizou isso como uma experiência cada vez maior em sua primeira epístola aos Tessalonicenses. “E o Senhor faça com que cresça e aumente o amor de uns para com os outros e para com todos, como também o nosso amor por vocês. a fim de que o coração de vocês seja fortalecido em santidade, isento de culpa . . .” Ele os exortou a “viver e agradar a Deus . . . progredindo. . . . Pois a vontade de Deus é a santificação de vocês” (1 Ts. 3:12–4:3).
Observe que a evidência apresentada acima mostra que tanto a justificação como a santificação envolvem a obra de Deus tanto para como no crente. A distinção comumente citada de que “a justificação é o que Deus faz por você e a santificação é o que Deus faz em você” é uma falsa dicotomia que não reflete com precisão o ensino bíblico.
A justificação envolve a concessão do Espírito Santo ao coração do crente, proporcionando união com Cristo. Romanos 7 enfatiza que os crentes justificados desfrutam “da nova vida do Espírito” (v. 6 [ISV]). Romanos 8:9 enfatiza ainda mais: “Vocês, porém, não estão na carne,” isto é, vocês não estão injustificados: “mas no Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita em vocês.” Isto é, vocês são crentes justificados. “Quem não tem o Espírito de Cristo não lhe pertence.” Portanto, se a justificação não envolvesse a obra transformadora do Espírito, os chamados crentes justificados não pertenceriam a Cristo. “Mas se Cristo está em você, embora o corpo esteja morto por causa do pecado, o Espírito é vida por causa da justiça.” Portanto, a união com Cristo pela obra transformadora do Espírito Santo é o dom justificador da justiça.
Lutero e Calvino23
A visão padrão na Idade Média era que, quando Deus justifica um crente, o Espírito Santo injeta na alma um hábito ou qualidade que torna a alma intrinsecamente justa, tendo a capacidade de realizar obras capazes de ganhar mérito diante de Deus.24 Influenciado pela análise matéria-forma de Aristóteles, Tomás de Aquino (ca. 1225–74) definiu a justificação (salvação) como a infusão da graça que repara (reforma, refaz) a alma do homem para que ela tenha então o poder de fazer obras meritórias.25
A definição tridentina de justificação seguiu à risca Tomás de Aquino.26 Os padres do Concílio de Trento (1545–63) ensinaram que a vontade do pecador, cooperando com a graça, o projeta para a justificação.27 Como Tomás de Aquino, Trento definiu a justificação como uma renovação interior da alma.28 A pessoa justificada tem a capacidade de realizar obras que são meritórias aos olhos de Deus e que elevarão o seu nível de justificação.29
A posição católica romana sobre a justificação, conforme definida por Tomás de Aquino e Trento, envolve transformação, recriação e reforma da alma imortal dentro do homem. Não foi uma reiteração do ensino de Jesus sobre o novo nascimento. A justiça interior, para Tomás de Aquino e Trento, é um hábito ou qualidade injetada, ou infundida, nas almas dos crentes para que sejam intrínseca ou inerentemente justos. A justiça interior não é Cristo interior pela presença do Espírito Santo. A alma que agora é justa por natureza tem a capacidade de realizar obras que são meritórias aos olhos de Deus.
Martinho Lutero (1483–1546) e João Calvino (1509–1564), em contraste com Tomás de Aquino e Trento, entendem a justificação como envolvendo dois aspectos simultâneos e inseparáveis: (1) O aspecto legal/forense envolvendo o perdão de Deus dos pecados dos crentes e o fato de ele creditar a justiça de Cristo em sua conta, e (2) um aspecto transformador envolvendo o dom de Cristo da sua justiça aos crentes pelo Espírito Santo. A alma não é reformada ou recriada para se tornar inerentemente justa. A transformação é Cristo, pelo Espírito Santo, vindo habitar no coração humano, para que a sua justiça se torne a justiça do crente pela sua presença justa. Os crentes permanecem seres humanos caídos e pecadores, mas a sua natureza caída está agora sob o controle e direção do Espírito Santo que habita em si.
Paul Althaus estabelece que Lutero entendia a justificação nos dois sentidos descritos acima,30 e Alister E. McGrath destacou este ponto.31 O estudo das obras de Lutero apoia a interpretação deles. Lutero frequentemente enfatizou o aspecto legal da justificação.32 Por outro lado, ele frequentemente enfatizou o aspecto transformador da justificação.33 Ele considera a justificação como algo que envolve a obra transformadora do Espírito Santo na vida do crente. Por exemplo, ele escreveu: “Então o que justifica? Ouvir a voz do Noivo, ouvir a proclamação da fé; quando é ouvida, justifica. Por quê? Porque traz o Espírito Santo que justifica.”34 Em seus longos comentários sobre Gálatas 2:16, contidos em suas Palestras sobre Gálatas de 1535, Lutero apresenta repetidamente a justificação como Cristo concedido ao coração do crente.35
McGrath aponta que, embora João Calvino tenha dado mais ênfase ao aspecto legal (forense) na justificação do que Lutero,36 “no entanto, ele preserva um aspecto importante da compreensão de Lutero da justificação que Melanchthon abandonou: a união pessoal de Cristo e do crente na justificação. Calvino fala do crente sendo “enxertado em Cristo,” de modo que o conceito de incorporação se torna central para a sua compreensão da justificação. A iustitia Christi [a justiça de Cristo], com base na qual o homem é justificado, é tratada como se fosse do homem dentro do contexto do relacionamento íntimo e pessoal de Cristo e do crente.”37 Nas Institutas da Religião Cristã de Calvino, ele identifica tanto o elemento legal38 quanto o elemento transformador39 na justificação.
Calvino se opês devidamente à visão de Andreas Osiander (1498–1552) de que a justificação envolve a infusão de justiça essencial na alma do crente. Na sua resposta, Calvino enfatizou a importância da união pessoal com Cristo. Ele escreveu:
Ademais, para que com suas cavilações ele não engane os incautos, reconheço que estamos desprovidos deste dom incomparável [justiça] até que Cristo se torne nosso. Portanto, a essa união da cabeça e dos membros, a residência de Cristo em nossos corações, em suma, a união mística, atribuímos o grau mais elevado, Cristo quando se torna nosso, tornando-nos parceiros dele nos dons com os quais foi dotado. Portanto, não o vemos distante e sem nós, mas como o vestimos e fomos enxertados em seu corpo, ele pretende nos tornar um com ele, e, portanto, nos gloriamos em ter uma comunhão de justiça com ele.40
McGrath resume desenvolvimentos teológicos posteriores: “O conceito de justificação de Lutero, seu conceito da presença de Cristo dentro do crente . . . todos foram rejeitados ou radicalmente modificados por aqueles que o seguiram.”41 Nas suas últimas obras, Melanchthon promoveu a justificação apenas legal, algo que Lutero nunca fez.42 Os autores da Fórmula Luterana da Concórdia (1577), incluindo Martin Chemnitz, seguiram Melanchthon, não Lutero.43 A tendência dentro do luteranismo ortodoxo tem sido tratar a justificação como uma “ficção jurídica.”44
Conclusão
A evidência bíblica indica que a justificação como perdão e a imputação da justiça de Cristo é tanto forense como transformadora. Também estabelece que a justificação inclui a experiência do novo nascimento para o crente.
Apesar das afirmações de N. T. Wright e da contra-alegação de John Piper, Lutero e Calvino seguiram de perto e com precisão o entendimento de Paulo sobre a justificação (ou imputação de justiça) como envolvendo tanto um aspecto forense quanto um aspecto espiritualmente transformadora.
Nota
1 Salvo indicação em contrário, as passagens bíblicas citadas foram retiradas da Nova Almeida Atualizada.
2 “A questão é que a palavra ‘justificação’ não denota em si o processo pelo qual, ou o evento em que, uma pessoa é trazida pela graça da incredulidade, idolatria e pecado para a fé, a verdadeira adoração e a renovação da vida. Paulo, clara e inequivocamente, usa uma palavra diferente para isso: ‘chamado’. A palavra ‘justificação’, apesar de séculos de uso indevido cristão, é usada por Paulo para denotar aquilo que acontece imediatamente após o “chamado’: ‘aos que chamou, a esses também justificou’ (Rm 8:30). Em outras palavras, aqueles que ouvem o evangelho e respondem com fé, são então declarados por Deus como sendo o seu povo, os seus eleitos, ‘a circuncisão’, ‘os judeus’, ‘o Israel de Deus’. Eles recebem o status de dikaios: ‘justos’, ‘dentro da aliança’.
Mas a própria palavra ‘chamado’, e o fato de que ‘justificação’ não é sobre ‘como sou salvo’, mas ‘como sou declarado membro do povo de Deus’, devem sempre ter em vista os propósitos mais amplos da aliança” (N. T. Wright, Paul in Fresh Perspective [Minneapolis: Fortress, 2005], pp. 121–122).
“A doutrina da justificação pela fé, desde Gálatas, passando por Filipenses, até Romanos, nunca foi sobre como as pessoas devem ser convertidas, como alguém pode se tornar um cristão, mas sobre como alguém pode dizer, no presente, quem é o verdadeiro povo de Deus; e, então, quem é sua família, quem são as pessoas com quem se deve, por uma questão de amor e lealdade familiar, sentar-se e comer. Esta questão era central para grande parte do judaísmo da época, com diferentes grupos se definindo em diferentes formas, particularmente em virtude das diversas interpretações da Torá” (Ibid., p. 159).
“É irônico que alguns dentro da ‘velha perspectiva’ de Paulo, ao continuarem a promover a visão errada da justificação como conversão, como o momento de salvação pessoal e de chegada à fé, em vez da declaração de Deus sobre a fé, tenham reforçado também uma polarização entre Jesus e Paulo, onde uma leitura mais historicamente fundamentada e teologicamente inteligente pode e deve evitar” (Ibid, pp. 159–160).
3 N. T. Wright, Justification: God’s Plan and Paul’s Vision (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2009), pp. 90–91.
4 Ibid., pp. 95–99.
5 Ibid., p. 69.
6 Ibid., p. 28.
7 Ibid., p. 118.
8 Ibid., p. 107; cp. Paul in Fresh Perspective, pp. 97–101.
9 John Piper, The Future of Justification: A Response to N. T. Wright (Wheaton, IL: Crossway Books, 2007), p. 78; cp. Guy Prentiss Waters, Justification and the New Perspectives on Paul (Phillipsburg, New Jersey: P & R. Publishing, 2004), pp. 178–179. Na questão da imputação, Waters concorda com Piper.
10 Falando das posições distintivas da Ortodoxia Reformada e Luterana sobre a justificação, Alister McGrath escreve: “Ambas as confissões entendem que a justificação é o ato declaratório forense de Deus . . . posterior à vocação e anterior à santificação.” Ele fala de “uma fraqueza correspondente” em ambos os sistemas “com a justificação tendendo a ser tratada como uma ficção jurídica. . . . A justificação é assim concebida analogicamente, como a remissão dos pecados e a imputação da justiça por um decreto puramente verbal in foro divino, sem que tenha ocorrido qualquer mudança no pecador com referência à qual este veredicto pudesse ser apoiado” (Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification [Cambridge University Press, 1986]), 2:44–45. Sobre a visão tridentina da justificação, incluindo a doutrina da justiça infundida, ver McGrath, ibid., pp. 68–86.
11 Minha tradução.
12 HE Dana e Julius R. Mantey se referem a “O Particípio Causal. O particípio pode denotar aquilo que é a base da ação do verbo principal. Aqui funciona na mesma relação geral que uma cláusula causal introduzida por ‘porque’ ou ‘desde então’.” Eles citam como exemplos o grego de João 4:45, Mateus 3:6 e 1 Timóteo 4:8 (A Manual Grammar of the Greek New Testament [New York: Macmillan, 1927, 1960], p. 227).
13 O contexto de Colossenses 2:13 apoia esta conclusão. Os colossenses “foram circuncidados com uma circuncisão espiritual, despojando-se do corpo da carne na circuncisão de Cristo” (v. 11). Eles foram “sepultados com ele no batismo” e “ressuscitados com ele pela fé no poder de Deus” (v. 12). Esta ressurreição espiritual aconteceu “quando ou porque ele nos perdoou todas as nossas transgressões.” O verbo principal no versículo 13 é “fazer viver” (συνεζωοποίησεν [synezōopóiēsen]). O particípio χαρισάμενος [charisámenos], “quando ele perdoou,” fornece a base da ação do verbo principal. Cristo tornou possível esta transformação pelo perdão, “apagando o registro” da nossa culpa, “pregando-o na cruz” (v. 14). Não fomos perdoados na cruz, mas quando aceitamos Cristo como Salvador. Na cruz, Cristo tornou possível a transformação do perdão “apagando o registro que se fazia contra nós com as suas exigências legais” (v. 14).
14 William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (Cambridge: University Press, 1957, 1967), p. 124.
15 Ellen White expressou isso em harmonia com a evidência bíblica: “O perdão de Deus não é meramente um ato judicial pelo qual ele nos liberta da condenação. Não é apenas o perdão do pecado, mas a recuperação do pecado. É o fluxo do amor redentor que transforma o coração. Davi tinha a verdadeira concepção do perdão quando orou: ‘Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável’ (Sl 51:10)” (Thoughts From The Mount of Blessing (Mountain View, CA: Pacific Press, 1896, 1956), p. 114.
16 À luz desta discussão, o uso de και [kai] em 1 João 1:9 pode ser considerado como epexegético ou um exemplo de hendíade, de modo que o versículo pode ser traduzido: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.” Sobre os usos de και [kai] no Novo Testamento, ver F. Blass e A. Debrunner (trad. Robert W. Funk), A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature (Chicago: University of Chicago Press, 1961), pp. 227–229.
17 John Piper, The Future of Justification: A Response to N. T. Wright, p. 78.
18 Samson Raphael Hirsch, The Pentateuch (London: Isaac Levy, 1959, 1963), 1:273–274.
19 Todas as traduções preenchem a elipse com o verbo “ter.” Para uma discussão da elipse no NT grego, ver Blass e Debrunner, A Greek Grammar, pp. 253–255.
20 Ellen White enfatizou os dois conceitos bíblicos: “Se vos entregardes a Ele [Cristo] e O aceitardes como vosso Salvador, sereis então, por pecaminosa que tenha sido vossa vida, considerados justos por Sua causa. O caráter de Cristo substituirá o vosso caráter, e sereis aceitos diante de Deus exatamente como se não houvésseis pecado.
Mais do que isto, Cristo muda o coração. Ele habita em seu coração pela fé,” Caminho a Cristo, p. 62.
“Pela fé em Seu nome, Ele nos imputa Sua justiça, e ela se torna um princípio vivo em nossa vida,” That I May Know Him (Washington, D.C.: Review and Herald, 1964), p. 302.
“Tendo nos tornado justos por meio da justiça imputada de Cristo, Deus nos declara justos e nos trata como justos,” Mensagens Escolhidas, 1:394.
“Que a obediência perfeita seja prestada a Deus por meio da justiça imputada de Cristo, e revelaremos ao mundo o fato de que Deus nos ama como ama Jesus” (Signs of the Times, 28 de maio de 1896).
21 Minha tradução. Ἡγιασμένοις [hēgiasménois] é o particípio perfeito e passivo de ἁγιάζω [hagiázō] (o verbo “santificar”). Τοῖς ἡγιασμένοις [tois hēgiasménois] significa “aqueles que foram santificados. “A importância do tempo perfeito ao apresentar a ação como tendo chegado ao seu término e existindo em seus resultados finais está fundamentado em seus usos. A ênfase, conforme indicado pelo contexto ou pelo significado da raiz verbal, pode estar na conclusão da ação ou em seus resultados finais” (Dana and Mantey, A Manual Grammar, p. 201).
22 Minha tradução. O grego diz ἡγιασμένη ἐν πνεύματι ἁγίῳ [hēgiasménē en pnéumati hagíō], tendo sido santificado (ou “tornado santo”) pelo Espírito Santo.” Ἡγιασμένη [hēgiasménē] é o particípio passivo perfeito de ἁγιάζω hagiázō.
23 O que se segue é um breve resumo do meu artigo, “The Roman Catholic and Reformation Concepts of Justification [Os Conceitos de Justificação da Igrejas Reformadas e Católica Romana].” Uma versão resumida deste artigo intitulada “Justification: Historic Journey from the Middle Ages through Now [Justificação: Jornada Histórica da Idade Média até Hoje]” foi publicada na Ministry (dezembro de 2009), pp. 16–21.
24 Ver Alister E. McGrath, Iustitia Dei, 1:40–51.
25 Tomás de Aquino, Summa Theologica, vol. 20: Great Books of Our Western World (Chicago: Encyclopedia Britannica, Inc, 1952), parte I da segunda parte, questão 110, artigos 2 e 4. Ibid., parte I da segunda parte, questão 113, artigo 3. Cp. Alister E. McGrath, Iustitia Dei, 1:44–47, 63–65, 81–82, 85–87.
26 McGrath, Iustitia Dei, 2:64; Reinhold Seeburg, The History of Doctrines (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1977, 1998), 2:433.
27 Philip Schaff, The Creeds of Christendom (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1877, 1919), 2:93.
28 Ibid., pp. 94–99.
29 Ibid., pp. 99-101, 107–109.
30 Paul Althaus, The Theology of Martin Luther, trad. Robert C. Schultz (Philadelphia: Fortress, 1966), pp. 226, 234–235.
31 Alister E. McGrath, Iustitia Dei 2:14, 126.
32 Luther’s Works, e. Helmut T. Lehmann, 55 vols. (Philadelphia: Muhlenberg, 1960), 34:152–153.
33 Ibid., 34:177–178; 22:275; 25:104.
34 Ibid., 26:208.
35 Ibid., 26:130, 132, 137. Cp. Luther’s comments on Gal. 2:20; Ibid., 26:167, 168.
36 McGrath, 2:36-38.
37 Ibid., pp. 36–37; cp. Wilhelm Niesel, The Theology of Calvin (Philadelphia: Westminister, 1956), pp. 120–139.
38 João Calvino, Institutas da Religião Cristã, III.XI.2, 3.
39 Ibid., III.XI.10.
40 Ibid.
41 McGrath, 2:32.
42 Ibid., pp. 23–26.
43 Ibid., p. 29.
44 Ibid., pp. 44–45.
Os Aspectos Forense e Transformador da Justificação: Uma Resposta a N. T. Wright e John Piper1
Introdução: N. T. Wright Versus John Piper sobre Justificação
O renomado estudioso britânico do Novo Testamento, Bispo N. T. Wright, rejeita a ideia de que a justificação inclui a transformação espiritual do crente.2 Enfatizando a temática da aliança e do tribunal, Wright argumenta que a justificação é uma mudança de status, onde o crente é, então, declarado como um verdadeiro membro da família da aliança de Deus.3 A aliança foi e é o “plano único de Deus através de Israel para o mundo,”4 a aliança abraâmica que encontra seu cumprimento em Cristo, o judeu fiel que frutificou as esperanças da nação judaica. Wright rejeita como absurda a ideia de que o juiz de um tribunal possa transferir retidão moral a um réu. “Quando o juiz no tribunal justifica alguém, ele não dá a essa pessoa a sua própria ‘justiça’. Ele cria o status que o réu inocentado agora possui, por meio de um ato de declaração, um ‘ato de fala’ em nosso jargão contemporâneo.”5
Seguindo até certo ponto, a chamada Nova Perspectiva sobre Paulo, sem concordar com todos os seus defensores,6 Wright rejeita a visão de que Paulo estava reagindo à justiça pelas obras do judaísmo contemporâneo. Em vez disso, Paulo estava tentando corrigir as atitudes exclusivistas dos judeus, pelas quais eles negavam a inclusão dos gentios na família da aliança. “O propósito de Deus ao chamar Abraão era abençoar o mundo inteiro, convocar um povo formado tanto por gentios quanto por judeus. Este propósito foi então alcançado através da fidelidade do Messias, e todos os que nele creem constituem esta família cumprida de Abraão.”7
Wright escreve eloquentemente sobre a obra transformadora do Espírito Santo.8 Mas ele separa a justificação da obra do Espírito, que capacita os crentes a obedecer à lei de Deus. Na opinião dele, o Espírito Santo não tem nada a ver com justificação. Esta última é uma mudança de status para o crente; a obra do Espírito é uma obra transformadora separada.
Sem diminuir a enorme importância da experiência da aliança eterna para o crente, e sem depreciar a obra do Espírito conforme descrita por Wright, desejo demonstrar que a sua definição de justificação não traduz o que Paulo quis dizer. Apesar da rejeição de Wright da compreensão básica de Lutero e Calvino de que a justificação inclui tanto uma transação legal como também um aspecto de transformação espiritual no sentido da reorientação dada por Deus que torna a santificação possível, minha opinião é que a compreensão deles da justificação era completamente bíblica.
Antes de apresentar a minha própria interpretação, é útil considerar brevemente a crítica de John Piper a Wright. Em sua obra, The Future of Justification: A Response to N. T. Wright [O Futuro da Justificação: Uma Resposta a N. T. Wright], Piper debate com Wright ao apresentar a visão protestante tradicional da justiça imputada, que considera o crente como moralmente justo, embora, de fato, ele não o seja. Piper diz:
“O Juiz onisciente não mostra mera clemência ou perdão e nos atribui um status de ‘justos’; ele nos credita graça precisamente porque nos considera como tendo a retidão moral que não nos pertence por natureza. Quando a acusação contra nós é lida (‘Você não tem justiça moral’) e o veredicto do Juiz é proferido (‘Eu declaro que você não é culpado da acusação, mas de fato tem justiça moral’), a justiça em vista neste declaração é a verdadeira justiça moral. Argumentarei posteriormente que esta é a justiça de Cristo imputada ao culpado somente pela fé. A declaração de justificação no tribunal de Deus não é meramente perdão; não é apenas absolvição; é considerar o réu como moralmente justo, embora ele não seja por natureza.”9
A definição de justificação (imputação) de Piper não parece mais satisfatória do que a visão de Wright de que a justificação é apenas uma mudança no status jurídico. Em última análise, a visão de Piper também resume à justificação meramente como uma mudança legal de status, uma declaração forense sem qualquer transformação moral real. Os crentes são considerados aquilo que realmente não são. Em um esforço para evitar a doutrina católica romana da justiça infundida, os protestantes tradicionais como Piper negaram a realidade espiritualmente transformadora de “Cristo em vocês, a esperança da glória” (Cl 1:27).10
Nas seções seguintes deste artigo, identificarei quatro aspectos sobrepostos da transformação espiritual na descrição de Paulo da justificação como (1) perdão, (2) imputação de justiça, (3) o “novo nascimento” e (4) união com Cristo. Depois mostrarei brevemente como Lutero e Calvino se afastaram da teologia católica para concordar com Paulo.
Perdão
Paulo fala da justificação como perdão em Atos 13:38–39, cuja tradução literal diz: “Portanto, irmãos, saibam que por meio deste homem lhes é proclamado o perdão dos pecados; de todas as coisas das quais não puderam ser justificados pela lei de Moisés, por este homem todos os que creem são justificados.”11 Da mesma forma, em Romanos 4:1–8, Paulo equipara a justificação à imputação de justiça e a identifica como perdão, pela forma como cita o Salmo 32:1–2:
“Davi declara ser bem-aventurado aquele a quem Deus atribui justiça, independentemente de obras. . . . ‘Bem-aventurados aqueles cujas transgressões são perdoadas, e cujos pecados são cobertos’” (Rm 4:6–7).
Há um aspecto legal importante no perdão: os pecadores são absolvidos quando buscam o perdão de Deus em virtude do fato de que Cristo sofreu o castigo pelos seus pecados. Mas o perdão não é apenas uma questão forense. Paulo se refere especificamente ao perdão como transformação espiritual: “E quando vocês estavam mortos nos seus pecados e na incircuncisão da carne, ele lhes deu vida juntamente com Cristo, perdoando todos os nossos pecados” (Cl 2:13). Desta maneira, a NAA traduz o aoristo, particípio médio χαρισάμενος [charisámenos] como um particípio adverbial temporal. Com a mesma legitimidade, pode ser considerado como um particípio causal a ser traduzido: “porque (ou desde) ele nos perdoou todas as nossas ofensas.”12 De qualquer forma, a força da passagem é que o perdão de Deus vivificou os colossenses com Cristo da morte espiritual.13 Este perdão não apenas apagou forensicamente o registro do pecado com suas sentenças condenatórias (v. 14); também deu nova vida quando o crente foi circuncidado espiritualmente “pela remoção do corpo da carne, que é a circuncisão de Cristo” (v. 11), sepultado com ele no batismo e ressuscitado para uma nova vida com ele “por meio da fé no poder de Deus, que o ressuscitou dentre os mortos” (v. 12). Esta nova vida, inicialmente recebida de Cristo no momento da conversão, não é apenas nova no sentido de libertação forense da condenação, como mostra o contexto anterior. Nos versículos 6–7, Paulo exorta: “Portanto, assim como vocês receberam Cristo Jesus, o Senhor, continuem a viver nele, estando enraizados e edificados nele, e confirmados na fé, como foi ensinado a vocês, crescendo em ação de graças.” A transformação espiritual da vida estabelecida pelo recebimento inicial de Cristo, quando ocorreu a experiência do perdão (v. 13), é continuar na vida espiritual.
O uso de ἄφεσις [áfesis] no Novo Testamento enfatiza o conceito de que o perdão envolve transformação espiritual. Segundo Arndt e Gingrich, a palavra significa “libertação do cativeiro”, bem como “perdão, cancelamento de uma obrigação, punição ou culpa. . . . O Perdão dos Pecados. . . . Perdão e Reconciliação.” 14 Significativamente, a palavra ἄφεσις [áfesis] é usada duas vezes em Lucas 4:18: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; enviou-me para proclamar libertação [ἄφεσιν {áfesin}]aos cativos e restauração da vista aos cegos, para pôr em liberdade os oprimidos” [. . . ἀποστεῖλαι τεθραυσμένους ἐν ἀφέσει [apostêiloi tethrauménos en afései]: literalmente, “para enviar os oprimidos em libertação”]. Jesus não saiu por aí libertando pessoas de prisões literais. Em vez disso, ele proporcionou libertação espiritual, isto é, perdão e liberdade às pessoas cativas e oprimidas pelo pecado e por Satanás (cp. At 10:38). Esta liberdade está associada à “recuperação da visão,” pois Cristo proporcionou não apenas liberdade legal da culpa, mas também uma mudança de perspectiva espiritual.
Paulo estava reiterando o ensino do Antigo Testamento. O salmista escreveu sobre o Deus “que perdoa todos os seus pecados e cura todas as suas doenças, que resgata a sua vida da sepultura” (Sl 103:3– 4; [NVI]). Que este perdão, cura e redenção envolvem transformação espiritual é sugerido pelas seguintes palavras: “. . . e a coroa de bondade e compaixão que enche de bens a sua existência, de modo que a sua juventude se renova como a águia” (vv. 4–5).
Quando Davi buscou perdão pelo seu pecado com Bate-Seba, ele pediu limpeza espiritual:
“. . . apaga as minhas transgressões. Lava-me completamente da minha iniquidade e purifica-me do meu pecado. . . . Purifica-me com hissopo, e ficarei limpo; lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve. . . . Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável” (Sl 51:1–2, 7, 10).15
O ato legal de Deus de abolir a culpa do pecador arrependido envolve o dom da limpeza espiritual que transforma a atitude humana e o relacionamento com ele. O perdão de Cristo nos leva a uma comunhão amorosa com ele que substitui a culpa e a condenação, tornando possível a renovação espiritual a longo prazo.16
Perdão é justificação, um ato divino forense e transformador; portanto, a justificação é tanto forense quanto transformadora.
Imputação de Justiça
John Piper afirma a visão tradicional pós-Reforma da imputação quando afirma que Deus “nos considera como tendo a justiça moral que de fato não temos em nós mesmos.”17 É minha opinião que esta conclusão é injustificada pelos fatos bíblicos. Pelo contrário, a evidência aponta para a conclusão de que a imputação de justiça de Deus aos crentes é uma declaração legal de uma mudança simultânea de estado e de orientação espiritual resultante da justiça concedida a eles pelo dom do Espírito Santo.
Para demonstrar que Abraão foi justificado pela fé, não pelas obras, Paulo cita Gênesis 15:6. “Pois o que diz a Escritura? Ela diz: “Abraão creu em Deus, e isso lhe foi atribuído para justiça” (Rm 4:3). A crença de Abraão (hebraico Hif. de אמן [’aman]) foi contada/contada/imputada (Qal de השב [hashav]; LXX e NT λογίζομαι [logízomai]) a ele como justiça, significando que através da crença ele ganhou posse dela como um presente. Samson Raphael Hirsch explica o verbo אמן [’aman], “crer”: “Responder a uma frase falada com ‘aman não significa apenas declará-la verdadeira, mas entregar-se à verdade expressa na frase, torná-la sua e jurar se permitir ser guiado por isto.”18
No Antigo Testamento, a crença em Deus envolve não apenas a aceitação de ideias, doutrinas ou proposições, mas a aceitação de Deus na vida, resultando num compromisso prático com um estilo de vida estipulado por Yahweh como apropriado para o relacionamento de aliança eterna (cp. Sl 31:23; 78:7, 8; Is 1:21, 26). Falando de Abraão, Neemias escreveu: “Achaste o seu coração fiel diante de ti e com ele fizeste aliança, para dares à descendência dele a terra dos cananeus” (Ne 9:8). A fé está relacionada à retidão, obediência e bondade ética. Poderíamos dizer que a crença (fé) é a união com Deus que afeta todas as atitudes e ações de uma pessoa. Não é nenhuma surpresa que Deus tenha considerado (contado/considerado/imputado) Abraão justo (Gn 15:6). Ele considerou porque, em vista da fé de Abraão, o patriarca compartilhava da justiça de Deus. A sua justiça era a justiça de Deus, mas por causa da sua união de fé com Deus também era dele. Abraão experimentou a justificação pela fé e, na medida em que manteve a sua união de fé com Deus, a sua vida demonstrou uma fidelidade genuína.
Esta interpretação da experiência de Abraão é apoiada pelo exame do alcance semântico do verbo השב [hashav] no Antigo Testamento hebraico, reforçado por λογίζομαι [logízomai], seu equivalente grego na Septuaginta. Estas palavras cobrem uma ampla gama semântica, dependendo dos contextos em que ocorrem:
- Às vezes, referem-se a coisas ou pessoas que são consideradas o que não são. Raquel e Lia reclamaram que Labão as considerava (השב [hashav]/λογίζομαι [logízomai]) como estrangeiras (Gn 31:15), embora não o fossem. Judá pensava que (השב [hashav]) Tamar era uma prostituta, embora ela não fosse (Gn 38:15). Levítico 25:31 legisla: “Mas as casas das aldeias que não têm muralhas ao redor serão estimadas (השב [hashav]) como [isto é, consideradas como se fossem, embora realmente não sejam] os campos da terra; para elas haverá resgate, e sairão do poder do comprador no Jubileu.” Eli supôs (השב [hashav]) que Ana estava bêbada, mas ela estava sóbria (1 Sm 1:13). Jó pensou (השב [hashav]) que Deus o considerava seu inimigo, mas ele não era (Jó 13:24; 19:11).
- Por outro lado, o verbo השב [hashav] pode se referir a pessoas ou coisas sendo consideradas como de fato são. Os emins eram considerados (השב [hashav]/λογίζομαι [logízomai]) gigantes por causa de seu tamanho grande (Dt 2:11, 20). Jó considerou (השב [hashav]) seus consoladores estúpidos porque realmente eram (Jó 18:3). Finéias foi contado (השב [hashav]) como justo porque suas ações revelaram que ele era (Sl 106:30, 31; cp. Nm 25:10–13). Os tesoureiros de Neemias foram “considerados” (השב [hashav]) fiéis porque eram (Ne 13:13). Josué 13:3 menciona uma terra “considerada (השב [hashav]) como cananeia” porque os cananeus a possuíam na época.
- 2 Samuel 4:2 see refere ao fato de que a vila de Beerote foi “considerada (השב [hashav]) como pertencente a Benjamim,” isto é, propriedade de Benjamim, a tribo à qual foi doada na distribuição da Terra Prometida na época de Josué. (Js 9:17; 18:21–25). Portanto, neste contexto, השב [hashav] se refere ao resultado real de uma transferência presenteada por Deus. Esta propriedade real estava, aturalmente, sob a propriedade geral da terra por parte de Deus (Lv 25). Portanto, estava condicionada à manutenção da aliança. Se o povo quebrasse a aliança, perderia a terra e iria para o exílio (Lv 26). Assim, por analogia, o fato de termos o verdadeiro dom da justificação não elimina a sua condicionalidade. Não é salvo uma vez, sempre salvo.
- A legislação de Números 18:26–31 estabelece uma transferência real de dízimos agrícolas que deveriam ser “imputados” (השב [hashav]) aos levitas. Os dízimos constituíam uma dádiva tangível realmente possuída pelos levitas, demonstrado pelo fato de que eles e os membros de suas famílias deviam comer desse alimento (v. 31).
A compreensão tradicional pós-Reforma da imputação em Romanos 4 reconhece apenas uma das conotações de השב [hashav] e λογίζομαι [logízomai] do Antigo Testamento. Diz-se que a imputação da justiça é apenas Deus contando legalmente aquilo que não é realmente assim na vida dos crentes. Mas o uso de λογίζομαι [logízomai] por Paulo se baseia em outra parte de seu alcance semântico. Em Romanos 4:4, ele diz: “Ora, para quem trabalha, o salário não é considerado (λογίζομαι [logízomai]) como favor, mas como dívida.” Aqui, o salário de um trabalhador é considerado como o que realmente é: algo devido. Paulo continua dizendo: “Mas, para quem não trabalha, porém crê naquele que justifica o ímpio, a sua fé lhe é atribuída (λογίζεται [logízertai]) como justiça” (v. 5). O contraste nesta passagem é entre quem trabalha e quem não trabalha. Em ambos os casos, uma transferência é contabilizada/imputada: salário para um trabalhador e justiça para um crente. Nada indica outro contraste aqui entre considerar algo que realmente pertence a uma pessoa (“salário”; v. 4; significado nº 2. de השב [hashav]/λογίζομαι [logízomai]) e aquilo que não pertence (“justiça”; v. .5; significado nº 1., acima). Tal como o pagamento de salários, o dom da justiça não é apenas uma prestação de contas legal; é uma transferência real. A diferença é que a justiça é um presente; não um ganho.
Abraão recebeu o dom da justiça antes de receber o “sinal da circuncisão” (Rm 4:11). A circuncisão era “selo da justiça da fé que teve quando ainda não havia sido circuncidado” (Rm 4:11).19 Paulo não diz que a justiça que Abraão teve pela fé era apenas uma declaração legal. Seguindo seu uso de λογίζομαι [logízomai] nos versos 4 e 5, concluímos com toda certeza que Deus declarou aquilo que ele concedeu simultaneamente a Abraão: o dom de sua justiça. Segundo Paulo, esta mesma dádiva pode pertencer a todos os crentes (Rm 4:22–25).20
Novo Nascimento
Tito 3:5-7 literalmente diz:
Não pelas obras de justiça que praticamos, mas, segundo a sua misericórdia, ele nos salvou, pela lavagem do renascimento (παλιγγενεσίας [palingenesías]) e da renovação do Espírito Santo, que ele derramou (ἐξέχεεν execheen]) ricamente sobre nós por meio de Jesus Cristo, nosso Salvador, para que tendo sido justificados (δικαιωθέντες [dikaiōthéntes]) por Sua graça, poderíamos ser herdeiros segundo a esperança da vida eterna.
Aqui Deus nos salvou através da experiência do novo nascimento, derramando seu Espírito sobre nós (cp. At 2:17–18, 33). Em Tito 3:5–7, somos herdeiros como resultado (ἳνα [hína]) do ato de salvação (ἔσωσεν [ésōsen]), lavagem (λουτροῦ [lutrú]), derramamento (ἐξέχεεν [execheen]), justificação (δικαιωθέντες [dikaiōthéntes]). Em outro lugar, Paulo enfatiza que é a justificação, o dom da justiça, que nos torna herdeiros (Rm 4:13–14; Gl 3:29; 4:1, 6–7). De acordo com Romanos 8:13–17, é o Espírito Santo quem nos transmite esta herança.
Em Tito 3:7, a ação do primeiro aoristo, particípio passivo, precede a ação do verbo principal na frase. O verbo principal é γενηθῶμεν [genētṓmen], “podemos nos tornar.” Fomos justificados antes de nos tornarmos herdeiros, para que possamos nos tornar herdeiros. O ato salvador de Deus nesta passagem é identificado com o seu ato justificador, tornando-nos herdeiros. Visto que ele nos salvou derramando o Espírito Santo sobre nós, foi assim que ele nos justificou. A redação da passagem apoia a conclusão de que a salvação é justificação, e que Deus opera em nós pela lavagem do renascimento e pela renovação pelo Espírito Santo.
Uma ênfase semelhante aparece em Gálatas 2. Os crentes são justificados pela “fé em Cristo Jesus,” “não pelas obras da lei” (v. 16). Paulo “morreu para a lei” a fim de “viver para Deus” (v. 19). Ele foi “crucificado com Cristo” para Cristo viver nele (v. 20). Paulo está falando sobre justificação. Ele também pergunta aos Gálatas: “vocês receberam o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Será que vocês são tão insensatos que, tendo começado no Espírito, agora querem se aperfeiçoar na carne?” Eles começaram com a justificação (Gl 3:2–3), e começaram pelo Espírito. Esta correlação indica que a obra do Espírito é um aspecto essencial da justificação. Paulo novamente cita Gênesis 15:6 (Gl 3:6) e fala dos gentios sendo justificados pela fé (vv. 7–9). Ele conclui anunciando que Cristo morreu “para que a bênção de Abraão chegasse aos gentios, em Cristo Jesus, a fim de que recebêssemos, pela fé, o Espírito prometido” (v. 14). A bênção de Abraão foi a justificação pela fé. É nosso quando “recebemos a promessa do Espírito pela fé.” Portanto, a justificação é uma obra transformadora do Espírito. Gálatas ensina a mesma mensagem de Tito 3:5–7: A justificação inclui a experiência do novo nascimento.
União com Cristo por meio do Espírito Santo
Justiça é revelada pelo Espírito Santo. Paulo ensina que o poder do evangelho para os crentes em Cristo resulta da “justiça de Deus” sendo “revelada” (ἀποκαλύπτεται [apokalýptetai]) a eles (Romanos 1:16–17). Em outra passagem, Paulo usa o verbo ἀποκαλύπτω (apokalýptō) para se referir à revelação dos dons de Deus aos crentes pelo Espírito Santo (1Co 2:9–16). Em Romanos 1:16–17, a revelação da justiça de Deus pelo Espírito resulta na justificação do crente. “O justo viverá pela fé” (v. 17).
A justificação pela graça é o dom do poder espiritual (justiça) ao crente. Em Romanos 3, “a justiça de Deus” é “mediante a fé em Jesus Cristo, para todos e sobre todos os que creem” (v. 22). A justificação é pela “graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (v. 24). Nos escritos de Paulo, a graça é o dom de poder espiritual imerecido (1 Co 1:4–9; 15:10; 2 Co 9:8, 14; 2 Tm 2:1). Assim como em Efésios 1:7–8, Paulo identifica o perdão com a redenção e a dom da graça; em Romanos 3:24, ele também identifica a justificação como a redenção e o dom da graça. Paulo, então, explica as implicações deste dom:
- o sacrifício expiatório de Cristo, “eficaz pela fé” (v. 25);
- “para manifestar a sua justiça, por ter ele, na sua tolerância, deixado impunes os pecados anteriormente cometidos” (v. 25, i.e., perdão para o crente);
- “para mostrar a sua justiça (δικαιοσύνης [dikaiosýnēs]) no tempo presente, para que ele seja justo (δίκαιον [díkaion]) e aquele que “justifica” (δικαιοῦντα [dikaioúnta], declara e torna justo) aquele pela fé em Jesus” (v. 26, minha tradução).
A justificação pela “graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (v. 24). envolve estes três elementos: sacrifício, perdão o dom transformador de justiça de Deus ao crente.
A justificação envolve paz através de Cristo e do Espírito Santo. Romanos 5 diz que “Justificados, pois, mediante a fé, temos paz com Deus por meio do nosso Senhor Jesus Cristo” (v. 1), porque “o amor de Deus é derramado em nosso coração pelo Espírito Santo, que nos foi dado” (v. 5).
A justificação é a morte para o pecado e a nova vida em Cristo. Romanos 6:7 traduzido literalmente diz: “Porque aquele que morreu foi justificado do pecado.” Pela justificação, o “velho homem” (v. 6), o velho modo de vida, a velha vida enraizada no pecado morreu (cp. Ef 4:22; Cl 3:3), e a nova vida em Cristo começou (cp. Rm 6:4; Ef 4:24; Cl 3:1). Paulo acrescenta: “Assim também vocês considerem-se (λογίζεσθε [logízeste]) mortos para o pecado, mas vivos para Deus, em Cristo Jesus.” (Rm 6:11). Novamente, Paulo usa λογίζομαι [logízomai]. Os crentes devem se considerar mortos para o pecado, mas vivos para Deus. Não são apenas destinatários de uma declaração legal; esta transformação é uma realidade.
A justificação resulta em santificação (santidade). Os crentes cristãos aos quais Paulo se dirigiu já foram “escravos do pecado” (Rm 6:17). Mas quando responderam à mensagem do evangelho, “uma vez libertados do pecado, foram feitos servos da justiça” (v. 18). Essa transformação ocorreu quando eles foram justificados. No livro de Romanos, Paulo fala da justificação como o dom da justiça de Deus (1:16, 17; 3:21–24; 4:22–25). Para estes crentes, a velha vida de pecado foi crucificada (6:6). Eles morreram para o pecado quando foram justificados. “Porque aquele que morreu foi justificado do pecado” (v. 7; tradução minha). Antes de serem justificados, eles apresentaram os seus membros “escravos da impureza e da maldade que leva à maldade” (v. 19). Paulo insiste, então, que, uma vez que eles se tornaram servos voluntários da justiça (na justificação), eles devem apresentar seus membros como “servos da justiça para a santificação” (εἰς ἁγιασμόν [eis hagiasmón], v. 19; ênfase acrescida). Paulo acrescenta: “Agora, porém, libertados do pecado, transformados em servos de Deus, o fruto que vocês colhem é para a santificação. E o fim, neste caso, é a vida eterna” (v. 22). Aqui, o dom da justiça de Cristo na justificação é o ato divino que torna o crente santo ou santificado. Portanto, a justificação resulta em santificação.
O termo grego para “santificação” (ἁγιασμός [hagiasmón]) usada em Romanos 6:19, 22 significa “santidade”. O ensino consistente das Escrituras é que o Espírito Santo nos torna santos (1 Pe 1:2; 2 Ts 2:13; Rm 15:16). A Bíblia nunca diz que nos santificamos ou que as nossas obras nos tornam santos. O dom da justiça na justificação nos santifica ou nos torna santos porque na justificação o Espírito Santo é derramado em nossos corações (Tt 3:5–7; Rm 5:1–2, 5; 8:9–10; Gl 3:3–14). Eis o porquê justificação e santificação são inseparáveis. O dom de Cristo nos concedido pelo Espírito Santo na justificação nos torna santos ou santificados. A justificação é concedida por Cristo; a santificação é possuída por Cristo. A justificação é Cristo entrando no coração dos crentes todos os dias à medida que nos entregamos ele; santificação é Cristo habitando em nossos corações todos os dias. Temos a posse porque recebemos a concessão.
A santificação é frequentemente mencionada nas Escrituras como a santidade presente em Cristo. Paulo foi enviado aos gentios “ . . . a fim de que eles recebam remissão de pecados (justificação) e herança entre os que são santificados (τοῖς ἡγιασμένοις [tois hēgiasménois]) pela fé em mim” (At 26:17–18).21 Paulo fala de si mesmo como “ ministro de Cristo Jesus entre os gentios . . . de modo que a oferta deles seja aceitável, uma vez santificada (ἡγιασμένη [hēgiasménē]) pelo Espírito Santo” (Rm 15:16).22 Aos crentes coríntios, Paulo escreveu: “. . . vocês foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1 Co 6:11). Eles receberam a purificação envolvida nas experiências inseparáveis de justificação e santificação, e Paulo queria que eles mantivessem a bênção.
Paulo também falou da santificação como crescimento progressivo em santidade. “E todos nós, com o rosto descoberto, contemplando a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, que é o Espírito” (2 Co 3:18). A experiência diária da justificação (receber Cristo no coração pelo dom do Espírito Santo) resulta num crescimento progressivo na santidade. Paulo enfatizou isso como uma experiência cada vez maior em sua primeira epístola aos Tessalonicenses. “E o Senhor faça com que cresça e aumente o amor de uns para com os outros e para com todos, como também o nosso amor por vocês. a fim de que o coração de vocês seja fortalecido em santidade, isento de culpa . . .” Ele os exortou a “viver e agradar a Deus . . . progredindo. . . . Pois a vontade de Deus é a santificação de vocês” (1 Ts. 3:12–4:3).
Observe que a evidência apresentada acima mostra que tanto a justificação como a santificação envolvem a obra de Deus tanto para como no crente. A distinção comumente citada de que “a justificação é o que Deus faz por você e a santificação é o que Deus faz em você” é uma falsa dicotomia que não reflete com precisão o ensino bíblico.
A justificação envolve a concessão do Espírito Santo ao coração do crente, proporcionando união com Cristo. Romanos 7 enfatiza que os crentes justificados desfrutam “da nova vida do Espírito” (v. 6 [ISV]). Romanos 8:9 enfatiza ainda mais: “Vocês, porém, não estão na carne,” isto é, vocês não estão injustificados: “mas no Espírito, se de fato o Espírito de Deus habita em vocês.” Isto é, vocês são crentes justificados. “Quem não tem o Espírito de Cristo não lhe pertence.” Portanto, se a justificação não envolvesse a obra transformadora do Espírito, os chamados crentes justificados não pertenceriam a Cristo. “Mas se Cristo está em você, embora o corpo esteja morto por causa do pecado, o Espírito é vida por causa da justiça.” Portanto, a união com Cristo pela obra transformadora do Espírito Santo é o dom justificador da justiça.
Lutero e Calvino23
A visão padrão na Idade Média era que, quando Deus justifica um crente, o Espírito Santo injeta na alma um hábito ou qualidade que torna a alma intrinsecamente justa, tendo a capacidade de realizar obras capazes de ganhar mérito diante de Deus.24 Influenciado pela análise matéria-forma de Aristóteles, Tomás de Aquino (ca. 1225–74) definiu a justificação (salvação) como a infusão da graça que repara (reforma, refaz) a alma do homem para que ela tenha então o poder de fazer obras meritórias.25
A definição tridentina de justificação seguiu à risca Tomás de Aquino.26 Os padres do Concílio de Trento (1545–63) ensinaram que a vontade do pecador, cooperando com a graça, o projeta para a justificação.27 Como Tomás de Aquino, Trento definiu a justificação como uma renovação interior da alma.28 A pessoa justificada tem a capacidade de realizar obras que são meritórias aos olhos de Deus e que elevarão o seu nível de justificação.29
A posição católica romana sobre a justificação, conforme definida por Tomás de Aquino e Trento, envolve transformação, recriação e reforma da alma imortal dentro do homem. Não foi uma reiteração do ensino de Jesus sobre o novo nascimento. A justiça interior, para Tomás de Aquino e Trento, é um hábito ou qualidade injetada, ou infundida, nas almas dos crentes para que sejam intrínseca ou inerentemente justos. A justiça interior não é Cristo interior pela presença do Espírito Santo. A alma que agora é justa por natureza tem a capacidade de realizar obras que são meritórias aos olhos de Deus.
Martinho Lutero (1483–1546) e João Calvino (1509–1564), em contraste com Tomás de Aquino e Trento, entendem a justificação como envolvendo dois aspectos simultâneos e inseparáveis: (1) O aspecto legal/forense envolvendo o perdão de Deus dos pecados dos crentes e o fato de ele creditar a justiça de Cristo em sua conta, e (2) um aspecto transformador envolvendo o dom de Cristo da sua justiça aos crentes pelo Espírito Santo. A alma não é reformada ou recriada para se tornar inerentemente justa. A transformação é Cristo, pelo Espírito Santo, vindo habitar no coração humano, para que a sua justiça se torne a justiça do crente pela sua presença justa. Os crentes permanecem seres humanos caídos e pecadores, mas a sua natureza caída está agora sob o controle e direção do Espírito Santo que habita em si.
Paul Althaus estabelece que Lutero entendia a justificação nos dois sentidos descritos acima,30 e Alister E. McGrath destacou este ponto.31 O estudo das obras de Lutero apoia a interpretação deles. Lutero frequentemente enfatizou o aspecto legal da justificação.32 Por outro lado, ele frequentemente enfatizou o aspecto transformador da justificação.33 Ele considera a justificação como algo que envolve a obra transformadora do Espírito Santo na vida do crente. Por exemplo, ele escreveu: “Então o que justifica? Ouvir a voz do Noivo, ouvir a proclamação da fé; quando é ouvida, justifica. Por quê? Porque traz o Espírito Santo que justifica.”34 Em seus longos comentários sobre Gálatas 2:16, contidos em suas Palestras sobre Gálatas de 1535, Lutero apresenta repetidamente a justificação como Cristo concedido ao coração do crente.35
McGrath aponta que, embora João Calvino tenha dado mais ênfase ao aspecto legal (forense) na justificação do que Lutero,36 “no entanto, ele preserva um aspecto importante da compreensão de Lutero da justificação que Melanchthon abandonou: a união pessoal de Cristo e do crente na justificação. Calvino fala do crente sendo “enxertado em Cristo,” de modo que o conceito de incorporação se torna central para a sua compreensão da justificação. A iustitia Christi [a justiça de Cristo], com base na qual o homem é justificado, é tratada como se fosse do homem dentro do contexto do relacionamento íntimo e pessoal de Cristo e do crente.”37 Nas Institutas da Religião Cristã de Calvino, ele identifica tanto o elemento legal38 quanto o elemento transformador39 na justificação.
Calvino se opês devidamente à visão de Andreas Osiander (1498–1552) de que a justificação envolve a infusão de justiça essencial na alma do crente. Na sua resposta, Calvino enfatizou a importância da união pessoal com Cristo. Ele escreveu:
Ademais, para que com suas cavilações ele não engane os incautos, reconheço que estamos desprovidos deste dom incomparável [justiça] até que Cristo se torne nosso. Portanto, a essa união da cabeça e dos membros, a residência de Cristo em nossos corações, em suma, a união mística, atribuímos o grau mais elevado, Cristo quando se torna nosso, tornando-nos parceiros dele nos dons com os quais foi dotado. Portanto, não o vemos distante e sem nós, mas como o vestimos e fomos enxertados em seu corpo, ele pretende nos tornar um com ele, e, portanto, nos gloriamos em ter uma comunhão de justiça com ele.40
McGrath resume desenvolvimentos teológicos posteriores: “O conceito de justificação de Lutero, seu conceito da presença de Cristo dentro do crente . . . todos foram rejeitados ou radicalmente modificados por aqueles que o seguiram.”41 Nas suas últimas obras, Melanchthon promoveu a justificação apenas legal, algo que Lutero nunca fez.42 Os autores da Fórmula Luterana da Concórdia (1577), incluindo Martin Chemnitz, seguiram Melanchthon, não Lutero.43 A tendência dentro do luteranismo ortodoxo tem sido tratar a justificação como uma “ficção jurídica.”44
Conclusão
A evidência bíblica indica que a justificação como perdão e a imputação da justiça de Cristo é tanto forense como transformadora. Também estabelece que a justificação inclui a experiência do novo nascimento para o crente.
Apesar das afirmações de N. T. Wright e da contra-alegação de John Piper, Lutero e Calvino seguiram de perto e com precisão o entendimento de Paulo sobre a justificação (ou imputação de justiça) como envolvendo tanto um aspecto forense quanto um aspecto espiritualmente transformadora.
1 Salvo indicação em contrário, as passagens bíblicas citadas foram retiradas da Nova Almeida Atualizada.
2 “A questão é que a palavra ‘justificação’ não denota em si o processo pelo qual, ou o evento em que, uma pessoa é trazida pela graça da incredulidade, idolatria e pecado para a fé, a verdadeira adoração e a renovação da vida. Paulo, clara e inequivocamente, usa uma palavra diferente para isso: ‘chamado’. A palavra ‘justificação’, apesar de séculos de uso indevido cristão, é usada por Paulo para denotar aquilo que acontece imediatamente após o “chamado’: ‘aos que chamou, a esses também justificou’ (Rm 8:30). Em outras palavras, aqueles que ouvem o evangelho e respondem com fé, são então declarados por Deus como sendo o seu povo, os seus eleitos, ‘a circuncisão’, ‘os judeus’, ‘o Israel de Deus’. Eles recebem o status de dikaios: ‘justos’, ‘dentro da aliança’.
Mas a própria palavra ‘chamado’, e o fato de que ‘justificação’ não é sobre ‘como sou salvo’, mas ‘como sou declarado membro do povo de Deus’, devem sempre ter em vista os propósitos mais amplos da aliança” (N. T. Wright, Paul in Fresh Perspective [Minneapolis: Fortress, 2005], pp. 121–122).
“A doutrina da justificação pela fé, desde Gálatas, passando por Filipenses, até Romanos, nunca foi sobre como as pessoas devem ser convertidas, como alguém pode se tornar um cristão, mas sobre como alguém pode dizer, no presente, quem é o verdadeiro povo de Deus; e, então, quem é sua família, quem são as pessoas com quem se deve, por uma questão de amor e lealdade familiar, sentar-se e comer. Esta questão era central para grande parte do judaísmo da época, com diferentes grupos se definindo em diferentes formas, particularmente em virtude das diversas interpretações da Torá” (Ibid., p. 159).
“É irônico que alguns dentro da ‘velha perspectiva’ de Paulo, ao continuarem a promover a visão errada da justificação como conversão, como o momento de salvação pessoal e de chegada à fé, em vez da declaração de Deus sobre a fé, tenham reforçado também uma polarização entre Jesus e Paulo, onde uma leitura mais historicamente fundamentada e teologicamente inteligente pode e deve evitar” (Ibid, pp. 159–160).
3 N. T. Wright, Justification: God’s Plan and Paul’s Vision (Downers Grove, IL: InterVarsity, 2009), pp. 90–91.
4 Ibid., pp. 95–99.
5 Ibid., p. 69.
6 Ibid., p. 28.
7 Ibid., p. 118.
8 Ibid., p. 107; cp. Paul in Fresh Perspective, pp. 97–101.
9 John Piper, The Future of Justification: A Response to N. T. Wright (Wheaton, IL: Crossway Books, 2007), p. 78; cp. Guy Prentiss Waters, Justification and the New Perspectives on Paul (Phillipsburg, New Jersey: P & R. Publishing, 2004), pp. 178–179. Na questão da imputação, Waters concorda com Piper.
10 Falando das posições distintivas da Ortodoxia Reformada e Luterana sobre a justificação, Alister McGrath escreve: “Ambas as confissões entendem que a justificação é o ato declaratório forense de Deus . . . posterior à vocação e anterior à santificação.” Ele fala de “uma fraqueza correspondente” em ambos os sistemas “com a justificação tendendo a ser tratada como uma ficção jurídica. . . . A justificação é assim concebida analogicamente, como a remissão dos pecados e a imputação da justiça por um decreto puramente verbal in foro divino, sem que tenha ocorrido qualquer mudança no pecador com referência à qual este veredicto pudesse ser apoiado” (Iustitia Dei: A History of the Christian Doctrine of Justification [Cambridge University Press, 1986]), 2:44–45. Sobre a visão tridentina da justificação, incluindo a doutrina da justiça infundida, ver McGrath, ibid., pp. 68–86.
11 Minha tradução.
12 HE Dana e Julius R. Mantey se referem a “O Particípio Causal. O particípio pode denotar aquilo que é a base da ação do verbo principal. Aqui funciona na mesma relação geral que uma cláusula causal introduzida por ‘porque’ ou ‘desde então’.” Eles citam como exemplos o grego de João 4:45, Mateus 3:6 e 1 Timóteo 4:8 (A Manual Grammar of the Greek New Testament [New York: Macmillan, 1927, 1960], p. 227).
13 O contexto de Colossenses 2:13 apoia esta conclusão. Os colossenses “foram circuncidados com uma circuncisão espiritual, despojando-se do corpo da carne na circuncisão de Cristo” (v. 11). Eles foram “sepultados com ele no batismo” e “ressuscitados com ele pela fé no poder de Deus” (v. 12). Esta ressurreição espiritual aconteceu “quando ou porque ele nos perdoou todas as nossas transgressões.” O verbo principal no versículo 13 é “fazer viver” (συνεζωοποίησεν [synezōopóiēsen]). O particípio χαρισάμενος [charisámenos], “quando ele perdoou,” fornece a base da ação do verbo principal. Cristo tornou possível esta transformação pelo perdão, “apagando o registro” da nossa culpa, “pregando-o na cruz” (v. 14). Não fomos perdoados na cruz, mas quando aceitamos Cristo como Salvador. Na cruz, Cristo tornou possível a transformação do perdão “apagando o registro que se fazia contra nós com as suas exigências legais” (v. 14).
14 William F. Arndt e F. Wilbur Gingrich, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature (Cambridge: University Press, 1957, 1967), p. 124.
15 Ellen White expressou isso em harmonia com a evidência bíblica: “O perdão de Deus não é meramente um ato judicial pelo qual ele nos liberta da condenação. Não é apenas o perdão do pecado, mas a recuperação do pecado. É o fluxo do amor redentor que transforma o coração. Davi tinha a verdadeira concepção do perdão quando orou: ‘Cria em mim, ó Deus, um coração puro e renova dentro de mim um espírito inabalável’ (Sl 51:10)” (Thoughts From The Mount of Blessing (Mountain View, CA: Pacific Press, 1896, 1956), p. 114.
16 À luz desta discussão, o uso de και [kai] em 1 João 1:9 pode ser considerado como epexegético ou um exemplo de hendíade, de modo que o versículo pode ser traduzido: “Se confessarmos os nossos pecados, ele é fiel e justo para nos perdoar os pecados e nos purificar de toda injustiça.” Sobre os usos de και [kai] no Novo Testamento, ver F. Blass e A. Debrunner (trad. Robert W. Funk), A Greek Grammar of the New Testament and Other Early Christian Literature (Chicago: University of Chicago Press, 1961), pp. 227–229.
17 John Piper, The Future of Justification: A Response to N. T. Wright, p. 78.
18 Samson Raphael Hirsch, The Pentateuch (London: Isaac Levy, 1959, 1963), 1:273–274.
19 Todas as traduções preenchem a elipse com o verbo “ter.” Para uma discussão da elipse no NT grego, ver Blass e Debrunner, A Greek Grammar, pp. 253–255.
20 Ellen White enfatizou os dois conceitos bíblicos: “Se vos entregardes a Ele [Cristo] e O aceitardes como vosso Salvador, sereis então, por pecaminosa que tenha sido vossa vida, considerados justos por Sua causa. O caráter de Cristo substituirá o vosso caráter, e sereis aceitos diante de Deus exatamente como se não houvésseis pecado.
Mais do que isto, Cristo muda o coração. Ele habita em seu coração pela fé,” Caminho a Cristo, p. 62.
“Pela fé em Seu nome, Ele nos imputa Sua justiça, e ela se torna um princípio vivo em nossa vida,” That I May Know Him (Washington, D.C.: Review and Herald, 1964), p. 302.
“Tendo nos tornado justos por meio da justiça imputada de Cristo, Deus nos declara justos e nos trata como justos,” Mensagens Escolhidas, 1:394.
“Que a obediência perfeita seja prestada a Deus por meio da justiça imputada de Cristo, e revelaremos ao mundo o fato de que Deus nos ama como ama Jesus” (Signs of the Times, 28 de maio de 1896).
21 Minha tradução. Ἡγιασμένοις [hēgiasménois] é o particípio perfeito e passivo de ἁγιάζω [hagiázō] (o verbo “santificar”). Τοῖς ἡγιασμένοις [tois hēgiasménois] significa “aqueles que foram santificados. “A importância do tempo perfeito ao apresentar a ação como tendo chegado ao seu término e existindo em seus resultados finais está fundamentado em seus usos. A ênfase, conforme indicado pelo contexto ou pelo significado da raiz verbal, pode estar na conclusão da ação ou em seus resultados finais”(Dana and Mantey, A Manual Grammar, p. 201).
22 Minha tradução. O grego diz ἡγιασμένη ἐν πνεύματι ἁγίῳ [hēgiasménē en pnéumati hagíō], tendo sido santificado (ou “tornado santo”) pelo Espírito Santo.” Ἡγιασμένη [hēgiasménē] é o particípio passivo perfeito de ἁγιάζω hagiázō.
23 O que se segue é um breve resumo do meu artigo, “The Roman Catholic and Reformation Concepts of Justification [Os Conceitos de Justificação da Igrejas Reformadas e Católica Romana].” Uma versão resumida deste artigo intitulada “Justification: Historic Journey from the Middle Ages through Now [Justificação: Jornada Histórica da Idade Média até Hoje]” foi publicada na Ministry (dezembro de 2009), pp. 16–21.
24 Ver Alister E. McGrath, Iustitia Dei, 1:40–51.
25 Tomás de Aquino, Summa Theologica, vol. 20: Great Books of Our Western World (Chicago: Encyclopedia Britannica, Inc, 1952), parte I da segunda parte, questão 110, artigos 2 e 4. Ibid., parte I da segunda parte, questão 113, artigo 3. Cp. Alister E. McGrath, Iustitia Dei, 1:44–47, 63–65, 81–82, 85–87.
26 McGrath, Iustitia Dei, 2:64; Reinhold Seeburg, The History of Doctrines (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1977, 1998), 2:433.
27 Philip Schaff, The Creeds of Christendom (Grand Rapids, Michigan: Baker, 1877, 1919), 2:93.
28 Ibid., pp. 94–99.
29 Ibid., pp. 99-101, 107–109.
30 Paul Althaus, The Theology of Martin Luther, trad. Robert C. Schultz (Philadelphia: Fortress, 1966), pp. 226, 234–235.
31 Alister E. McGrath, Iustitia Dei 2:14, 126.
32 Luther’s Works, e. Helmut T. Lehmann, 55 vols. (Philadelphia: Muhlenberg, 1960), 34:152–153.
33 Ibid., 34:177–178; 22:275; 25:104.
34 Ibid., 26:208.
35 Ibid., 26:130, 132, 137. Cp. Luther’s comments on Gal. 2:20; Ibid., 26:167, 168.
36 McGrath, 2:36-38.
37 Ibid., pp. 36–37; cp. Wilhelm Niesel, The Theology of Calvin (Philadelphia: Westminister, 1956), pp. 120–139.
38 João Calvino, Institutas da Religião Cristã, III.XI.2, 3.
39 Ibid., III.XI.10.
40 Ibid.
41 McGrath, 2:32.
42 Ibid., pp. 23–26.
43 Ibid., p. 29.
44 Ibid., pp. 44–45.