Exílio e Retorno nos Manuscritos do Mar Morto

Exílio e Retorno nos Manuscritos do Mar Morto


Por Lawrence H. Schiffman

Lawrence Schiffman

Lawrence H. Schiffman é Professor de Hebraico e de Estudos Judaicos na New York University e Diretor do Global Institute for Advanced Research in Jewish Studies. O Professor Schiffman é especialista em Manuscritos do Mar Morto e fez parte do grupo internacional de estudiosos que prepararam uma ampla publicação dos Manuscritos em 1991. Autor de diversos artigos e livros com destaque para “From Text to Tradition, A History of Judaism in Second Temple and Rabbinic Times”.


Tradução: Hugo Martins.

Tradução do artigo publicada com autorização expressa do autor. O original, em inglês, encontra-se em duas partes que podem ser acessadas no site oficial do autor .


O tema do exílio e do retorno tem sido muito discutido no campo dos estudos bíblicos. De modo geral, duas abordagens básicas têm sido discutidas. Um grupo procurou investigar a real natureza do exílio, ou melhor dizendo: dos exílios – assírio e babilônico, que o antigo Israel experimentou. Tais estudos tentam reconstruir a realidade histórica experimentada pelos indivíduos, e a nação como um todo, quando os inimigos devastaram a terra de Israel, levando alguns dos seus habitantes ao cativeiro e quando, eventualmente, alguns daqueles habitantes, realmente, retornaram. Uma abordagem completamente diferente tem procurado entender o impacto do(s) exilado(s) e a esperança pelo retorno na história da religião israelita. De fato, este tema tem tocado um papel central no cenário profético e foi tão fundamental no desenrolar da história do judaísmo que, eventualmente, culminou com o retorno literal do povo judeu – agora metade deles – para a terra de Israel e a criação de um estado moderno. Esta segunda abordagem não procura a reconstrução literal dos eventos e desenvolvimentos, mas, em vez disso, o traçado de uma gama de ideias – uma concepção da história – e o papel dessas ideias em criar a identidade nacional e religiosa do antigo Israel, o povo judeu.

O presente estudo, que lida especialmente com o papel dessas concepções nos Manuscritos do Mar Morto, cai na segunda categoria. Nós não entraremos no âmbito das discussões as quais o exílio e o retorno nos manuscritos são historicamente precisos e, certamente, não a usaremos para melhor estabelecer a natureza dos eventos que, realmente, permearam a Idade do Ferro. Em vez disso, procuraremos entender o papel que esses conceitos tiveram entre os judeus do Segundo Templo cuja literatura nos foi deixada nas cavernas de Qumran.

Note que nós temos nos resguardado de levar em consideração a identidade daqueles cujos as visões estremos discutindo. Claramente, algumas dessas visões estão expressas nos textos que representam o que podemos descrever como o cerne da ideologia daqueles que construíram a biblioteca em Qumran e que viveram nas imediações encontradas no lugar. Outros, entretanto, refletem grupos predecessores, tais como aqueles que criaram o livro de Enoque e o livro dos Jubileus. Mas o nosso alvo principal será elucidar as visões que os sectários qumranitas e a maneira específica que essas visões desempenharam um papel em sua ideologia sectária singular.

Talvez, um dos aspectos mais interessantes do nosso estudo será a observação do ponto de vista dos sectários qumranitas e em algumas outras fontes do Segundo Templo também, o retorno que se sucedeu durante o período persa e a criação de uma comunidade judaica nessa época que, até a reconstrução do Templo, não era considerada ser o cumprimento das profecias bíblicas de retorno. De fato, veremos que nossos autores escreveram como se o exílio continuasse em seu tempo, apesar do fato de estarem vivendo na terra de Israel.[1] É porque para eles, como para muitos judeus ao longo da história, exílio e retorno não são uma mera descrição de uma posição geográfica no globo terrestre, mas, em vez disso, se referem a um estado de desunião judaica, abandono da Torah e impotência nacional. Tal situação foi possível até mesmo dentro da terra de Israel. De fato, aqueles que leem os debates atuais acerca do status religioso da criação do Estado de Israel na moderna literatura religiosa judaica detectarão que essa visão continua dominante entre um segmento considerável da população judaica religiosa de hoje, embora seja um segmento cujo a própria auto percepção é frequentemente de um grupo sectário. Isso acontece porque nos últimos tempos os conceitos de exílio e retorno tornaram-se o cerne teológico, um modelo observável nos textos do Segundo Templo e, certamente nos Manuscritos do Mar Morto.

Entre aqueles textos colecionados em sua biblioteca pelos sectários de Qumran encontravam-se quatro de cinco partes de 1 Enoque e o livro dos Jubileus. Embora esses livros não se encontrem inteiramente preservados nos manuscritos, é certo que os membros da seita teriam tido as cópias completas desses textos (a exceção das Similitudes [Parábolas] de Enoque que faziam parte do acervo).  Portanto, consideraremos esses textos, mesmo onde os manuscritos de Qumran não preservam passagens específicas.  Veremos que essas passagens, rotineiramente, assumem que o estado de exílio continuou durante ao período Persa, sem interrupções, alcançando o período Helenístico.

Dentro do corpo enóquico, dentre os mais antigos materiais encontra-se, está o Apocalipse das Semanas, datado como imediatamente ao período pré-Macabeu.  Este texto divide a história bíblica em “semanas” e coloca o exílio na sexta semana. Aqui o texto declara:[2]

E em seguida, na sexta semana, todos aqueles que vivem nela (ficarão) cegos e coração de todos os desprovidos de sabedoria afogar-se-ão na impiedade  … e, em seu fim, a casa da soberania será queimada com fogo, e, nela a raça inteira dos escolhidos será dissipada.

Este texto se refere a um processo de desvio espiritual que culmina com a destruição do Templo e o exílio do povo judeu. O mais importante a se enfatizar é que esse texto nunca, de fato, trata acerca do retorno. Em vez disso, o texto vai mais além ao descrever uma apostasia generalizada, provavelmente a do próprio autor, e a eleição eventual dos justos que receberão um conhecimento sete vezes maior sobre a criação de Deus. Finalmente, na oitava semana, haveria em série de juízos. Sem dúvidas, para esse autor, o exílio ainda não tinha terminado.

Uma passagem enóquica posterior vem do Apocalipse Animal. Este foi, provavelmente, composto por volta do fim da revolta macabeia.  O texto traça a história de Israel, usando um simbolismo complexo o qual Israel é descrito como um rebanho de ovelhas, Deus o Senhor das Ovelhas e as nações como criaturas esfomeadas. Seguindo-se a construção do Templo, o texto retrata um período de apostasia (89:54).  O Senhor das ovelhas então abandonara o aprisco (o estado) e a torre (Templo) e o deixara serem atacados por outros animais (89:56). Aqui os babilônios são descritos como leões. Agora o Senhor designa setenta pastores comissionados a infligir uma destruição limitada sobre Israel (89:68). O texto alude, então, à destruição, que se segue pelo período persa, ptolomaico e, finalmente, a era selêucida.  Aparentemente, o texto compreende Israel como tendo sido exilado para locais específicos, não simplesmente disperso. O texto prossegue com o relato do retorno dos exilados e a construção do Segundo Templo (1 Enoque 89:72:73):[3]

E eis que três daquelas ovelhas retornaram, vieram e começaram a reconstruir tudo o que tinha sido destruído daquela casa; mas os javalis as impediram para que não conseguissem. E elas começaram a construir, como antes, e edificaram aquela torre que fora chamada de torre de vigia; e começaram novamente a colocar uma mesa diante da torre, mas todo pão sobre ela era imundo e impuro.

Esse texto claramente considera os sacrifícios do período do Segundo Templo como sendo impuros e inapropriados. Mais além, segue-se essa passagem onde há uma descrição da continuação do sacrifício de um imenso número de ovelhas, indicando que o retorno foi apenas limitado e não assegurou a segurança futura do povo de Israel (vv. 74-77).  Esse prognóstico parece continuar por um longo período de tempo (90:1). O texto descreve, também, alguns eventos que parecem se referir à revolta dos macabeus, mas somente após o juízo dos pastores por Deus (90:18, 22-33, 25) haverá uma nova era gloriosa.

Esse texto, certamente, não via o retorno do período persa como um evento importante, ao contrário do exílio anterior. Em vez disso, via o exílio babilônico como o início de um longo processo que atravessou o período do Segundo Templo. Os autores viam o exílio como uma condição contínua que viria ao fim apenas com o juízo final. Essencialmente, para ele, para esse autor, o período de desolação continuaria até o tempo do fim.

Também, de certa importância, para os nossos propósitos, é Jub. 1:7-18. Esse texto foi, sem dúvidas, escrito ou durante a revolta macabeia ou um pouco antes da revolta.  Como 1 Enoque, servia como um dos textos-base que a seita de Qumran herdou de grupos predecessores que influenciaram seu modo de pensar e as leis haláquicas. O texto está apresentando, aqui, um relato ex eventu da história judaica.  É nos dito sobre como o povo se desviará e como Deus enviará profetas os quais serão ignorados. Então o texto volta-se para o exílio (1:13-14):[4]

Eu esconderei a minha face deles. Eu os entregarei ao controle de nações que os levarão em cativeiros, que saquearão os seus bens e os devorarão. Eu os tirarei da terra e os dissiparei entre as nações. Eles se esquecerão de toda a minha lei, de todos os meus mandamentos e de todos os meus vereditos. Eles errarão no que diz respeito ao início do mês, do sábado, do festival, do jubileu e do decreto.

Esse registro não fornece qualquer indício de que se estamos nos referindo ao exílio do norte de Israel ou da Judeia. Encontraremos o motivo n o esconder da face, como uma indicação que por causa das suas transgressões, Deus permitirá ao seu povo estarem sujeitos a castigos terríveis por meio de outros povos.

O texto, também, sugere que após terem se desviado, o povo arrepender-se-á enquanto vivendo entre as nações (1:15b-18):

Então eu os reunirei dentre todas as nações e eles me buscarão e me acharão quando eles me buscarem com todo o seu entendimento e com todo o seu coração. Eu, certamente, darei a eles abundante paz. Eu os transformarei em uma planta saudável com todo o meu entendimento e com toda a minha alma. Eles serão em uma bênção, não uma maldição; serão a cabeça, não a cauda. Eu construirei o meu Templo entre eles e habitarei com eles; serei o seu Deus e eles serão o meu povo justo e verdadeiro. Eu não os abandonarei, nem apartar-me-ei deles, pois Eu sou o Senhor seu Deus.

Essa passagem está intrinsicamente ligada ao livro de Deuteronômio. Basicamente, o texto tem afirmado que a profecia do livro de Deuteronômio, que os judeus retornarão à sua terra, de fato, cumprir-se-á. Naturalmente, esta profecia não se faz clara sobre qual exílio ela discute e, apesar da exegese rabínica que se seguiu, trata, tão somente, de um único exílio. Parece que, ao mencionar o Templo, o texto afirma um retorno à terra de Israel.  Encontraremos o uso dessas passagens deuteronomísticas nos textos sectários prímevos do Mar Morto, especialmente no Manuscrito do Templo e no MMT [Miqṣat Ma‘ase Ha-Torah]. Mas devemos, também, notar que o imaginário do Israel restaurado com uma planta é comum no Manual da Disciplina e aparece em outras partes do manuscrito.

Aqui, novamente, não encontramos qualquer menção explícita ao retorno e ao Segundo Templo. A noção de retorno é postergada, efetivamente, para o tempo do fim.  O exílio terminará tão somente no eschaton.

[1] Cp. Knibb e J.G. Campbell, “Essene-Qumran Origins in the Exile: A Scriptural Basis,” JJS 46 (1995) pp. 143-56, especialm. p. 148.

[2] J.C. VanderKam, “Exile in Jewish Apocalyptic Literature,” J. M. Scott, Exile, Old Testament, Jewish and Christian Conceptions (JSJSup 56; Leiden: Brill, 1997) pp. 95-96.

[3] VanderKam, “Exile in Jewish Apocalytic Literature,” pp. 96-100.

[4] VanderKam, “Exile in Jewish Apocalytic Literature,” pp. 103-104. Cp. o estudo detalhado de Betsy Halpern-Amaru, “Exile and Return in Jubilees,” em Scott, Exile, pp. 127-144.

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