ELLEN WHITE E A CRÍTICA TEXTUAL:
Um Breve Ensaio Sobre o Uso de Marcos 16:9-20
Por Elton Queiros
Elton Queiros tem formação na área de informática; é bacharel em teologia pelo UNASP-EC e possui pós-graduação em teologia bíblica pela mesma instituição. Atualmente está cursando um mestrado em teologia bíblica na PUC-RJ e outra graduação em filosofia no CEUCLAR (Centro Universitário Claretiano).
Introdução
Lembro-me como se fosse hoje. Nos corredores da faculdade ouvi de um amigo da graduação em teologia e que estava alguns anos à minha frente cursando a disciplina de Crítica Textual do Novo Testamento a informação de que aquele notável episódio de Jesus perdoando a mulher adúltera em João 8 não fora escrito pelo apóstolo. Minha primeira reação diante daquela novidade foi de espanto, naturalmente. Demorou algum tempo até que entendesse as razões daquele comentário.
Hoje, anos depois dessa experiência, não é de se admirar que alguns também reajam da mesma maneira em face das novidades de que determinadas passagens da Bíblia cristã não foram originalmente escritas por profetas e apóstolos a quem nós confiamos muito de nossa vida espiritual. É natural que diante disso possam surgir dúvidas a respeito da integridade e pureza da Bíblia como também de sua inspiração.
Esse temor ainda se torna mais evidente quando admitimos que os escritos de Ellen White são tão inspirados quanto a Bíblia e que, por isso, o uso que ela faz das passagens bíblicas supostamente duvidosas do ponto de vista crítico-textual sanciona a canonicidade e “inspiracionabilidade” de tais textos. É de se perguntar se esse raciocínio está, de fato, correto, pois ele envolve uma compreensão a respeito da crítica textual e da inspiração bíblica. Eis a razão desse breve ensaio.
Compreendendo um Pouco de Crítica Textual
A crítica textual pode ser entendida como uma ciência, pois, como qualquer outra, ela também possui estruturas, linguagens e métodos próprios. Ela se propõe a estudar “a transmissão de um determinado texto por meio de manuscritos existentes do mesmo” (FRANCISCO, 2008, p. 620) a fim de restaurar o texto original de um documento que por ventura tenha sido alterado no processo de cópia e recópia. Em outros termos, sua finalidade é “assegurar que as palavras que hoje lemos correspondam de forma mais plena possível àquelas que os profetas e os evangelistas escreveram tantos séculos atrás” (PAROSCHI, 2012, p. xiii).
Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, essa ciência já deu grandes contribuições para aqueles que mantêm a fé na Palavra de Deus. É graças a ela que podemos estar convictos de que, há vários séculos, o texto bíblico que hoje temos em mãos não sofreu alterações significativas (ARCHER Jr., 2008; BRUCE, 2010.). No entanto, sua contribuição não se restringe apenas à questão da integridade do texto, mas também diz respeito à sua compreensão. É graças a ela que podemos responder alguns judeus que acusam os cristãos de terem manipulado Isaias 7:14 à sua conveniência introduzindo a palavra “virgem” no lugar de “jovem”. É graças a ela que podemos explicar o que aconteceu em 1 João 5:6-8, texto que alguns insistem usar para contrariar a doutrina bíblica da trindade. Ou seja, a crítica textual é uma ferramenta que está para auxiliar muito mais aqueles que têm compromisso com as doutrinas bíblicas tradicionais do que o contrário.
Mas se a crítica textual ratifica a fé na Bíblia ao mostrar que seu texto não sofreu alterações significativas no decorrer dos séculos e que ela é uma literatura digna de confiança, então é de se perguntar por que alguns insistem em dizer, por exemplo, que o final do evangelho de Marcos, 16:9-20, não foi escrito pelo próprio Marcos. São três as razões, pelo menos. Primeiro, ao se estudar os melhores manuscritos gregos disponíveis, e entenda melhor como mais antigo, percebe-se que esses versos não estão presentes nesse evangelho. Eles estão presentes somente em manuscritos posteriores, isto é, os menos antigos, e por essa razão de qualidade inferior. Esse fato quase que inevitavelmente nos leva à conclusão de que eles foram inseridos ao texto de Marcos em algum momento depois da composição de sua obra.
Segundo, outra razão que sustenta a afirmação de que Marcos não foi o autor desses versos é aquilo que diz respeito ao que está escrito neles. Quando comparado com o texto do restante do evangelho, notam-se significativas diferenças. O estilo e o vocabulário não são semelhantes. Palavras e construções frasais não usadas no restante do evangelho são utilizadas nessa seção. Além disso, até mesmo a mensagem de que os que creem poderão pegar “em serpentes; e, se alguma coisa mortífera beberem, não lhes fará mal” (16:18) parece não encontrar respaldo em qualquer outro pronunciamento de Jesus. Dessa forma, insistir na afirmação de que essa passagem é canônica porque Ellen White faz uso dela certamente não é a melhor explicação a ser adotada. Ou seja, alguma outra coisa necessita ser revista.
Ellen White e a Realidade da Crítica Textual
Antes, porém, de tentar responder por que Ellen White usou o texto não canônico de Marcos 16:9-20, é válido constatar uma realidade – Ellen White tinha plena consciência de que sua Bíblia, a King James Version, não só esteve sujeita às alterações escribais no decorrer dos séculos, como também reconheceu que, de fato, o texto bíblico havia sido intencional ou acidentalmente alterado. É o que se percebe ao ler Mensagens Escolhidas, p. 16. Vejamos o que ela diz:
Alguns nos olham seriamente e dizem: “Não acha que deve ter havido algum erro nos copistas ou da parte dos tradutores?” Tudo isso é provável, e a mente que for tão estreita que hesite e tropece nessa possibilidade ou probabilidade, estaria igualmente pronta a tropeçar nos mistérios da Palavra Inspirada, porque sua mente fraca não pode ver através dos desígnios de Deus. Sim, com a mesma facilidade tropeçariam em fatos simples que a mente comum aceita e em que discerne o Divino, e para quem as declarações de Deus são simples e belas, cheias de essência e riqueza. Mesmo todos os erros não causarão dificuldade a uma alma, nem farão tropeçar os pés de alguém que não fabrique dificuldades da mais simples verdade revelada (Grifos acrescentados).
À luz dessa declaração, é visível que Ellen White admitia a realidade das contribuições da crítica textual, ainda que ela não tivesse conhecimento técnico dessa ciência. Nesse trecho ela responde à pergunta acerca dos “erros de copistas” alegando que isso não só era uma “possibilidade”, mas também uma “probabilidade”. Além do mais, é no mínimo interessante notar que, para ela, aqueles que negam essa realidade são os que estão prontos “a tropeçar nos mistérios da Palavra Inspirada”. Ou seja, aqueles que melhor compreendem os mistérios da inspiração não são os que negam as contribuições da crítica textual, mas os que as admitem.
Ainda segundo ela, esses erros não causam dificuldade alguma a “uma alma” porque todo esse processo de inserção posterior de erros na Bíblia faz parte “dos desígnios de Deus”. Certamente Deus permitiu que houvesse inserções aos textos canônicos por algum propósito. Desse modo, portanto, não podemos negar que Marcos 16:9-20 tenha sido inserido posteriormente ao texto bíblico só porque Ellen White faz uso dele uma vez que ela mesma implicitamente admite que isso possa ter sido uma interpolação escribal. Logo, a explicação para esse fato deve tomar outro caminho.
Ellen White e o Texto de Marcos 16:9-20
Responder ao ponto por que Ellen White fez uso de Marcos 16:9-20, um texto bíblico não canônico, isto é, um texto inserido posteriormente ao cânon bíblico, não é uma tarefa objetiva pelo simples fato dela não estar mais entre nós para nos dar uma resposta definitiva. Nesse caso, as explicações podem estar sujeitas a subjetivismo. Entretanto, uma reflexão e um estudo um pouco mais meticulosos podem sugerir respostas biblicamente satisfatórias.
São dois os casos destacados em que Ellen White faz uso dessa passagem. O primeiro deles está em Primeiros Escritos, pp. 22-23. Depois de seus críticos lhe acusarem de ser como o “mau servo” (Lc 12:45) por alegar que Jesus voltaria somente depois do tempo de angustia, a jovem White duvidou do poder de Deus ao lhe capacitar com o dom profético. Em resposta, Deus lhe concedeu uma visão na qual ela via “um cartão” contendo cinquenta versos bíblicos, inclusive Marcos 16:18. Nas palavras dela:
Tudo isso pesava sobremodo em meu espírito, e na confusão eu era algumas vezes tentada a duvidar de minha própria experiência. Quando certa manhã em orações de família, o poder de Deus começou a descer sobre mim, depressa veio a minha mente o pensamento de que era mesmerismo[1], e resisti a ele. Imediatamente fui tomada de mudez e por alguns momentos perdi a noção de tudo ao meu redor. Vi então o meu pecado em duvidar do poder de Deus, e que por assim proceder fiquei muda, e que minha língua seria libertada antes de decorridas vinte e quatro horas. Um cartão foi colocado diante de mim no qual estavam escritos em letras de ouro o capítulo e verso de cinqüenta [sic] textos das Escrituras. Ao voltar da visão, solicitei por acenos a lousa, e nela escrevi que estava muda, também o que eu tinha visto e que eu desejava a Bíblia grande. Tomei a Bíblia e prontamente identifiquei todos os textos que eu tinha visto no cartão. (grifos acrescentados).
O segundo uso marcante que Ellen White faz da passagem de Marcos 16:9-20 está no livro O Desejado de Todas as Nações, p. 823. Depois de comentar a instrução de Jesus presente na Grande Comissão mostrando que a ordem divina consistia em ensinar, primeiro, as pessoas de nossas cercanias (família, vizinhos, etc.), ela ressalta que não devemos perder o foco do “ide”, isto é, a evangelização em locais mais distantes. Nesse contexto de pregação, alguns “sinais” seguiriam aqueles que se propuserem a cumprir a ordem de Cristo. Como ela mesma diz:
Quando o Salvador disse: “Ide, ensinai todas as nações”, disse também: “Estes sinais seguirão aos que crerem: Em Meu nome expulsarão os demônios; falarão novas línguas; pegarão nas serpentes; e, se beberem alguma coisa mortífera, não lhes fará dano algum; e porão as mãos sobre os enfermos, e os curarão.” Mar. 16:17 e 18. A promessa é tão vasta como a comissão. Não que todos os dons sejam comunicados a cada crente. O Espírito reparte “particularmente a cada um como quer”. I Cor. 12:11. Mas os dons do Espírito são prometidos a todo crente segundo sua necessidade para a obra do Senhor. A promessa é, hoje, exatamente tão categórica e digna de confiança, como nos dias dos apóstolos. “Estes sinais seguirão aos que creram.” Mar. 16:17. Este é o privilégio dos filhos de Deus, e a fé deve lançar mão de tudo quanto é possível possuir como apoio. (grifos acrescentados).
Ellen White e a Inspiração de Marcos 16:9-20
Antes de qualquer explicação sobre o porquê de Ellen White ter usado uma passagem que, segundo os críticos textuais, é reconhecidamente não canônica, pois foi posteriormente acrescentada ao evangelho de Marcos, é necessário discutir sucintamente a respeito da inspiração bíblica. Somente uma correta compreensão acerca do modo como a inspiração ocorre no processo de composição de um texto poderá lançar luz à questão da utilização que é feita desses versos no Espírito de Profecia.
Admitindo-se que Ellen White foi tão inspirada por Deus como qualquer outro escritor bíblico o foi e que o texto de Marcos 16:9-20 realmente é uma adição tardia ao texto bíblico, nos deparamos com uma realidade bastante semelhante a que ocorreu nos idos do apostolo Paulo quando esteve a pregar para um público grego-ateniense em sua segunda viagem missionária (At 17:16-34). Em seu discurso, Paulo também precisou recorrer a autores não bíblicos para atingir seus propósitos, assim como Ellen White recorreu ao escritor do final de Marcos (16:9-20).
A fim de alcançar com a mensagem cristã monoteísta sua audiência grega altamente secularizada, o apostolo fez menção a dois antigos filósofos gregos. O primeiro deles foi Epimenides de Creta, que viveu no século VI a.C. A referência a ele está no verso 28 – “pois nele vivemos, e nos movemos, e existimos, como alguns dos vossos poetas têm dito”; o segundo, Arato (c. 270 a.C.), também é citado no mesmo versículo – “porque dele também somos geração”. O texto de Epimenides pode ser encontrado na obra Vida e Doutrina dos Filósofos Ilustres, autoria de Diógenes Laércio; já o texto de Arato está em seu famoso poema Phaenomena.
O uso que Paulo fez desses dois escritores não bíblicos nos ajuda compreender um pouco como se dá o processo de inspiração do texto. Embora admitamos que possa haver inspiração mesmo fora da Bíblia, o fato é que não precisamos necessariamente argumentar que um texto é originalmente inspirado só porque o escritor bíblico, alguém inspirado por Deus, o utilizou em seu discurso ou em seu próprio texto. Em outras palavras, a inspiração não está obrigatoriamente no escritor não bíblico, isto é, fora do cânon, como Marcos 16:9-20, mas no uso que o escritor bíblico faz dele. Dessa forma, não é preciso apelar para a inspiração do final de Marcos para se entender o uso que Ellen White faz desses versos, pois a inspiração de Marcos 16:9-20 ocorre apenas no momento em que o Espírito de Profecia, texto inspirado por Deus, faz uso do dele. Como acabamos de ver em Paulo, essa é uma posição com nítido respaldo bíblico.
Ellen White e o Uso de Marcos 16:9-20
Agora que se percebe um pouco como pode ocorrer o processo de inspiração sobre o agente humano – (1) um texto bíblico não canônico não precisa ser necessariamente inspirado e (2) a inspiração ocorre no momento em que o autor inspirado faz uso desse texto não inspirado – podemos avançar nossa reflexão para a questão da utilização que Ellen White faz do texto de Marcos 16:9-20, destacando o uso em Primeiros Escritos e em O Desejado de Todas as Nações como referidos há pouco.
Para se entender o primeiro caso, é necessário que olhemos para o próprio texto em si juntamente com seu contexto, pois ambos, o texto e o contexto, lançam luz sobre o propósito do uso de Marcos 16:9-20 nessa visão. Conforme lemos, o contexto gira em torno do fato de Ellen White ter duvidado de Deus ao pensar que seu poder pudesse ser “mesmerismo”, como ela mesma diz. Assim, parece claro que a visão tinha como intenção primária fortalecer a fé da jovem White na atuação de Deus em sua vida capacitando-lhe para o ministério profético.
Dessa forma, não deveríamos nos surpreender com a presença de Marcos 16:9-20 nessa referida visão por duas razões, pelo menos. Primeiro, a finalidade de na visão terem sido lhe mostrados cinquenta textos bíblicos era fortalece-lhe a fé no poder de Deus. Isso explica porque todos esses cinquenta textos possuem alguma relação com as coisas pertinentes ao ministério profético, desde as dificuldades enfrentadas, a atuação do Espírito Santo como também os milagres por Ele realizados, o conteúdo centrado em Cristo a ser pregado e até as recompensas futuras a recebermos.
Segundo, o final do evangelho sempre esteve presente na Bíblia de Ellen White, a King James Version, desde sua primeira publicação sob os auspícios do rei Tiago no século XVII. Dessa forma, uma vez que a visão não objetivava apresentar quais passagens de sua Bíblia eram canônicas ou não, mas fortalecer-lhe a confiança em Deus, então naturalmente deveríamos esperar que algum verso de Marcos 16:9-20 pudesse aparecer na visão, como de fato ocorreu, posto que o anjo lhe mostrou textos de seu conhecimento, presentes em sua Bíblia, e não textos bíblicos que lhe eram desconhecidos.
Isso nos deveria fazer entender que não devemos procurar compreender essa visão exigindo-lhe aquilo que não é seu intento, pois seu propósito nunca foi o de mostrar a realidade das constatações da crítica textual. Em outros termos, só deveríamos nos preocupar com a aparição do texto do final de Marcos se a pretensão da visão fosse realmente mostrar quais textos eram canônicos ou não, o que definitivamente não é o caso. Além disso, quem raciocina pensando que a adição a Marcos não deveria aparecer nessa visão por não ser canônica, esquece-se que Deus tinha um propósito em permitir que tais textos fossem inseridos no cânon bíblico, como a própria Ellen White o diz.
No que diz respeito ao segundo uso que Ellen White faz de Marcos 16:9-20, presente em O Desejado de Todas as Nações, precisamos entender, primeiro, que esse uso não tem relação direta com alguma visão que ela tenha recebido, como aconteceu em Primeiros Escritos. O uso feito dessa passagem nesse livro é uma citação direta do discurso de Cristo no qual nos é dito que Jesus “disse também” as palavras presentes em Marcos 16:17-18. Aqui a explicação girará em torno da compreensão do que ela quis dizer com a expressão Jesus “disse também”.
Numa tentativa de compreender essa afirmação, Jesus “disse também” o que está registrado em Marcos 16:17-18, mais uma vez, e quiçá de maneira providencial, nos deparamos com um paralelo bíblico e novamente relacionado ao apostolo Paulo. Conforme lemos em Atos 20:35, o apóstolo nos diz que “é mister socorrer os necessitados e recordar as palavras do próprio Senhor Jesus: Mais bem-aventurado é dar que receber”. À luz dessa declaração, Paulo atribui a Jesus o seguinte discurso – “mais bem-aventurado é dar do que receber”. Entretanto, por mais que os evangelhos sejam vasculhados, não encontramos tal expressão na boca de Cristo. E não se deve esquecer que os evangelhos são as obras que registram vários discursos de Jesus. Ou seja, Paulo teve acesso a palavras proferidas por Cristo, provavelmente por meio das tradições orais, mas que não foram registradas nos evangelhos. Isso está em harmonia com Lucas 1:1-4 e João 21:25.
Entendido dessa maneira, chegamos à conclusão de que as palavras registradas em Marcos 16:17-18 podem realmente ter sido proferidas por Jesus, apesar de não terem sido registradas no conteúdo canônico do evangelho, e que Ellen White estaria fazendo um uso semelhante ao que o apóstolo Paulo fez em Atos. Noutros temos, o texto de Marcos 16:9-20, e aqui especificamente os versos 17-18, embora não canônicos, isto é, não presentes no evangelho original de Marcos, seria um registro de algum discurso de Jesus não registrado no conteúdo canônico do evangelho. Todavia, a questão importante aqui é entender que isso não contradiz a constatação da crítica textual de que o final do evangelho não foi escrito pelo evangelista, pois o propósito primário dessa ciência não é determinar a autenticidade verbal por detrás de um texto, mas apenas constatar se tal texto foi realmente escrito pelo escritor bíblico ou não.
Respostas a Possíveis Objeções
Depois desta breve reflexão, algumas objeções acerca da validade da crítica textual no que diz respeito ao uso que Ellen White faz do texto do evangelho de Marcos 16:9-20 ainda podem ser suscitadas, primeiramente porque, segundo João 10:35, Jesus nos disse que “a Escritura não pode falhar” e, segundo, porque de acordo com o próprio Espírito de Profecia, Mensagens Escolhidas, v.1, p. 23, lemos que:
Quando os homens se atrevem a criticar a Palavra de Deus, atrevem-se a pisar em terreno santo, sagrado, e melhor lhes seria temer e tremer e esconder sua sabedoria como loucura. Deus não designou homem algum para proferir juízos sobre Sua Palavra, escolhendo umas coisas como inspiradas e desacreditando outras como não inspiradas. Os testemunhos têm sido tratados da mesma maneira; mas Deus não está nisto. (grifos acrescentados).
Com respeito à primeira objeção concernente às palavras de Jesus registradas em João 10:35 nas quais nos é dito que a “Escritura não pode falhar”, uma simples compreensão dessa afirmação dentro de seu devido contexto é suficiente para se compreender o que o Senhor quis realmente dizer com tal discurso. No verso 33 do mesmo capítulo lemos que os judeus intentaram apedrejar a Cristo porque, segundo pensavam, Ele cometera blasfêmia por se fazer como Deus. Em resposta, Jesus argumentou que a mesma Escritura usada pelos seus acusadores para alegarem blasfêmia afirmava que os israelitas eram deuses (Sl 82:6) e que ao Ele asseverar ser Deus não estava contrariando a revelação posto que ela não pode falhar (Jo 10:35). Ou seja, a Escritura não se contradiz (“não pode falhar”) afirmando que os israelitas eram deuses e ao mesmo tempo servindo de subsídio para acusar Cristo de blasfêmia por se dizer Deus. Lido em seu contexto, essa passagem em nada afeta as constatações da crítica textual uma vez que o propósito dessa ciência é justamente estabelecer o que de fato é Escritura mediante a eliminação de possíveis interferências escribais.
Em relação à segunda objeção, a afirmação de Ellen White presente em Mensagens Escolhidas, v. 1, p. 23, novamente, uma correta compreensão de sua fala dentro do contexto lança luz à questão além de que a palavra “crítica” pode estar sendo mal compreendida. No parágrafo anterior, ela nos diz que:
Tanto no Tabernáculo [de Battle Creek] como no colégio tem sido ensinado o assunto da inspiração, e homens finitos se têm arrogado dizer que certas coisas nas Escrituras foram inspiradas e outras não. Foi-me mostrado que o Senhor não inspirou os artigos acerca da inspiração publicados na Review, nem aprovou o endosso deles perante nossa mocidade no colégio.
Em face desse discurso, é visível que sua resposta está sendo direcionada para pessoas que insistiam em dizer que certas partes das Escrituras eram inspiradas enquanto outras não. Ou seja, para tais pessoas, havia graus de inspiração na Bíblia, o que significava que ela não era total e integralmente inspirada. Assim, pra que essa objeção faça sentido e seja coerente, deveríamos esperar que a crítica textual também afirmasse o mesmo que os autores dos artigos da Review and Harold, isto é, de que há porções na Bíblia menos inspiradas ou não inspiradas, pois somente desse modo seria correto direcionar a posição de Ellen White às constatações dessa ciência. No entanto, o que em primeiro lugar procura um crítico textual não é afirmar o que na Bíblia é inspirado ou não, e sim mostrar o que não foi composto pelo escritor bíblico original e inspirado. Em outros termos, a crítica textual não visa afirmar o que é inspirado. Ela apenas afirma o que é bíblico, e por implicação necessariamente inspirado, e o que não é bíblico, e por implicação não inspirado. O que esses escritores da Review fizeram foi simplesmente dizer que não é inspirado aquilo que, de fato, é bíblico, algo bastante diferente do que se propõe a crítica textual.
Além de uma questão de contexto e de uma correta compreensão de crítica textual, de inspiração e de Bíblia (Bíblia é só aquilo escrito por alguém inspirado por Deus), essa objeção também peca no que diz respeito à correta compreensão da palavra crítica. “Crítica” possui pelo menos dois significados. Um deles quer dizer “julgamento ou apreciação desfavorável, censura; condenação” (FERREIRA, 1999). À luz do contexto, certamente é esse significado que Ellen White quis dar a essa palavra ao utilizá-la. Entretanto, o segundo significado quer dizer “Juízo crítico; discernimento, avaliação criteriosa” (FERREIRA, 1999), e esse é o uso em “crítica textual”. Assim, alguém que faz crítica textual está, primariamente, com critérios, refletindo sobre o texto bíblico e não, necessariamente, censurando ou condenando à sua confiabilidade histórica e inspiracional, o que contrariaria a afirmação do Espírito de Profecia. Portanto, é possível fazer “crítica”, crítica textual, sem “criticar” a veracidade bíblica.
Conclusão
Mesmo depois dessa sucinta explicação sobre crítica textual, sobre inspiração bíblica e sobre o uso que Ellen White faz de textos bíblicos não canônicos, textos que a crítica textual afirma não terem sido escritos por escritores originalmente bíblicos e, por consequência, não inspirados, talvez ainda possa haver receios por parte de alguns leitores quanto à validade argumentativa desse breve ensaio. Assim, é melhor que a própria Ellen White, alguém inspirada por Deus, fale a respeito:
Vi que Deus havia de maneira especial guardado a Bíblia, ainda quando dela existiam poucos exemplares; e homens doutos nalguns casos mudaram as palavras, achando que a estavam tornando mais compreensível quando, na realidade, estavam mistificando aquilo que era claro, fazendo-a apoiar suas estabelecidas opiniões, que eram determinadas pela tradição. Vi, porém, que a Palavra de Deus, como um todo, é uma cadeia perfeita, prendendo-se uma parte à outra, e explicando-se mutuamente. Os verdadeiros pesquisadores da verdade não devem errar; pois não somente é a Palavra de Deus clara e simples ao explanar o caminho da vida, mas o Espírito Santo é dado como guia na compreensão do caminho da vida ali revelado (Primeiros Escritos, p. 220-221).
Deus sempre cuidou da integridade de Sua palavra, ainda que ela tenha sido “alterada” ou “manipulada” no decorrer dos séculos em seu processo de divulgação mediante a cópia e recópia dos manuscritos bíblicos. Mas então qual era o propósito divino em permitir que Sua palavra sofresse interferência escribal? Para responder ao ponto essa questão, certamente teremos que aguardar a eternidade. Mas podemos especular que se não percebêssemos as interferências escribais, correríamos o risco de não compreender corretamente o que é inspiração, uma união divino-humano. Poderíamos raciocinar que a Bíblia não está sujeita às limitações humanas e que para compreendê-la não precisaríamos entender essa realidade. Deus é soberano. Ele sabe o que faz. A nós cabe apenas estudar a Bíblia do modo como Ele permitiu que ela chegasse a nossas mãos e não evitar a realidade daquilo que Ele não evitou.
REFERÊNCIAS
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ARCHER Jr., G. Merece Confiança o Antigo Testamento? São Paulo: Vida Nova, 2008.
BRUCE, F. F. Merece Confiança o Novo Testamento? São Paulo: Vida Nova, 2010.
FERREIRA, A. B. H. Dicionário Aurélio Eletrônico Século XXI. v. 3.0. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1999.
FISCHER, A. A. O Texto do Antigo Testamento: edição reformulada da Introdução à Bíblia Hebraica de Ernst Würthwein. Barueri, SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.
FRANCISCO, E. F. Manual da Bíblia Hebraica: introdução ao Texto Massorético: guia introdutório para a Bíblia Hebraica Stuttgartensia. 3 ed. ver. ampl. São Paulo: Vida Nova, 2008.
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