Diretrizes Hermenêuticas para Lidar com Questões Teológicas

Diretrizes Hermenêuticas para Lidar com Questões Teológicas


Ekkehardt Müller é diretor associado do Instituto de Pesquisas Bíblicas da Associação Geral. Antes de se juntar ao instituto, o Pastor Mueller atuou como Pastor e Ministerial por mais de duas décadas. Atualmente, ele está muitíssimo envolvido em escrever artigos e lecionar classes ao redor do mundo. Ekkehardt adora jardinagem e pintura. Boa música é também um elemento importante no lar de  Ekkehardt, sendo sua esposa Geri uma professora de música. Quando seus filhos, Eike e Eno, estão em casa, o “quarteto” está completo.


Tradução: Hugo Martins

O artigo “Diretrizes Hermenêuticas para Lidar com Questões Teológicas” (Original em Inglês: “Hermeneutical Guidelines for Dealing with Theological Questions”), por Ekkehardt Mueller, foi publicado, inicialmente, pelo Adventist Biblical Research Institute.  Usado com permissão.


Quando as pessoas fazem questionamentos de natureza bíblica ou teológica, costumam querer um texto bíblico claro, um “Assim diz o Senhor”, para resolver ou entender a questão prontamente. Embora seja altamente louvável e seja a abordagem adventista confiar nas Escrituras para decidir questões teológicas, nem sempre é possível fornecer um texto bíblico claro que responda ao questionamento. Portanto, pode ser útil discutir brevemente como lidar com questões teológicas. Fazemos isso com uma visão elevada das Escrituras em mente. Isto é, assumimos que a Escritura é a revelação proposicional de Deus aos seres humanos.

Categorias de Questões

Ao pensar e trabalhar em questões bíblicas e/ou teológicas, logo percebemos que existem diferentes tipos ou categorias de questões.

Questões sobre Textos Bíblicos

Primeiro: há questões relacionadas à interpretação de textos bíblicos ou de passagens bíblicas mais amplas?

Por exemplo, alguém quer entender Lucas 23:43, um texto que contém as palavras de Jesus ao ladrão na cruz, ou a profecia de Daniel 11.

Nesses casos, estudamos meticulosamente o texto e empregamos passos exegéticos derivados das Escrituras.1 O ponto de partida é claramente um texto bíblico. A questão não é qual ou quais texto(s) bíblico(s) escolher, mas como um texto bíblico deve ser interpretado com base em um método hermenêutico que aceite o auto-testemunho das Escrituras.

Questões sobre Tópicos Bíblicos

Segundo: existem questões temáticas que tratam de como os tópicos bíblicos devem ser entendidos. Se, por exemplo, estudarmos temas bíblicos, como o sábado ou a ressurreição dos mortos nas Escrituras, procuraremos nas Escrituras os respectivos termos e vocabulário relacionado: “sábado”, “descanso”, “descanso completo”, e “descansar”. Investigaríamos os textos que encontramos em seus contextos, aplicando brevemente a esses textos os passos exegéticos mencionados acima, e tentaríamos formular uma teologia do respectivo tema.

Questões sobre Conceitos Bíblicos

Além dos temas bíblicos que se baseiam em termos bíblicos, há temas como trindade, antropologia ou escatologia que tratam de conceitos bíblico-teológicos que não podem se basear direta ou pelo menos não exclusivamente no vocabulário bíblico.

Ao lidar com esses e outros tópicos semelhantes, precisamos ir além de buscas de palavras e explicações, mas investigando, e, consequentemente, sintetizar vários temas e conceitos bíblicos. Quando estudamos, por exemplo, a Trindade, podemos observar como são usados ​​diferentes termos aplicados a Deus, investigar as afirmações de Jesus e dos apóstolos de que Jesus era divino, perguntar-nos como Jesus e o Espírito Santo se relacionam com Deus, o Pai nas Escrituras, considerar a noção de que Deus é um, etc. Não existe nenhum texto bíblico que diga: “Há um Deus em três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo.” Mas acreditamos que este conceito aparece claramente no Antigo e no Novo Testamento.

Questões não Mencionadas nas Escrituras

Finalmente, os cristãos nos séculos que se seguiram ao encerramento do cânone foram e ainda são confrontados com questões de natureza teológica e/ou ética que não são diretamente abordadas nas Escrituras. Alguns se referem a essas questões como o silêncio da Palavra de Deus. No entanto, não é um silêncio absoluto. E as crenças fundamentais adventistas, derivadas das Escrituras, não são previstas aqui.

Aqui estão alguns exemplos de questões não explicitadamente tratadas nas Escrituras: Deus pode morrer? O que aconteceu com a natureza divina de Jesus quando ele morreu na cruz? Jesus morreu a primeira ou a segunda morte? Como devemos nos relacionar com o aborto, a pesquisa com células-tronco embrionárias e a clonagem humana? Podem os cristãos de hoje ainda estar envolvidos em alguma forma de escravatura porque a Bíblia não proíbe claramente a escravatura? E quanto a ecologia e o cuidado com o planeta Terra? Temos carta-branca para beber álcool, fumar tabaco ou abusar de drogas? Não há proibição bíblica: “Não fumarás.”

Estas e outras perguntas semelhantes não podem ser respondidas se referindo apenas a um ou mais textos bíblicos. Talvez não exista nenhum texto bíblico que trate diretamente dessas questões. Não obstante, essas questões são importantes e algumas delas influenciam diretamente a nossa vida quotidiana. Eles não podem ser ignoradas.

Em outras palavras, algumas questões bíblicas/teológicas estão diretamente relacionadas com textos bíblicos ou material bíblico e podem ser respondidas por textos bíblicos simples, enquanto outras não.

Diferentes Abordagens para Questões que não Podem Ser Respondidas com Um ou mais Textos Bíblicos

Isto levanta a questão sobre como devemos proceder nos casos em que não podemos simplesmente nos referir a textos bíblicos bem definidos. Quais são as nossas opções? Aceitamos as Escrituras como a Palavra de Deus, evitando abordagens críticas, tais como sugestões de que as Escrituras estão culturalmente condicionadas, refletem um desenvolvimento evolutivo do pensamento religioso, ou são relativas nas suas declarações e na sua autoridade? Excluindo essas abordagens, parece que ainda temos cerca de quatro opções.

O que As Escrituras não Proíbem É Permitido

Uma abordagem seria: o que as Escrituras não proíbem é permitido. Tal abordagem significaria que, se as Escrituras não abordassem diretamente uma questão específica, os cristãos seriam livres para prosseguir na direção que quisessem. Alguns limitariam um pouco esta liberdade alegando que, sob a oração e a orientação do Espírito Santo, a igreja, e não o indivíduo, deveria tomar decisões sobre questões não abordadas diretamente nas Escrituras.

Tomemos, por exemplo, a estrutura da igreja. A Bíblia não nos diz precisamente como uma igreja mundial deve ser estruturada. Não temos textos que estabeleçam que deveríamos ter Associações, Uniões, Divisões e a Associação Geral, ou quanta autoridade um líder deveria ter em cada nível da administração da igreja. Seria melhor uma governança eclesiástica estilo episcopal, presbiteriana ou congregacional? Por outro lado, se o princípio “O que não é proibido é permitido” for verdadeiro, estaríamos livres para consumir entorpecentes e nos envolver em jogos de azar e pornografia?

Esta e a seguinte abordagem já foram discutidas no início da história da igreja. J. P. Lewis escreve:

Tertuliano estava preocupado se um cristão poderia usar uma coroa de louros. Enquanto a oposição argumentou que “tudo o que não é proibido é certamente permitido,” Tertuliano afirmou que “tudo o que não é claramente permitido é proibido.” Seria, contudo, exagerar a evidência supor que Tertuliano aplicasse consistentemente a sua afirmação a todas as questões de fé e prática da igreja.2

Lewis continua:

. . . Lutero considerou que “aquilo que a Escritura não recomendou nem proibiu tinha que ser considerado ‘livre’ e examinado com cuidado.” Lutero não tentou eliminar a elevação da hóstia ou o uso de vestimentas eucarísticas. Quando Karlstadt perguntou: “Onde Cristo nos ordenou que elevássemos a Hóstia e a exibíssemos ao povo?” A resposta de Lutero foi: “Onde ele proibiu?” Lutero declarou: “Quanto à Missa, onde Cristo proibiu a elevação? O Papa transgride quando o ordena, e os sectários quando o proíbem.”3

Lutero falou sobre “adiáfora,” coisas sobre as quais as Escrituras, e, por extensão, Deus são indiferentes.4 Esta abordagem também é chamada de “princípio normativo,” adotada, por exemplo, pelos anglicanos.5

O Que As Escrituras Não Permitem É Proibido

Uma segunda abordagem seria: o que as Escrituras não permitem explicitamente é proibido. Esta abordagem pode significar que, por exemplo, teremos de viver como o povo Amish e evitar a electricidade e todos os meios modernos de transporte e comunicação porque não são mencionados nas Escrituras. As Escrituras não abordam os avanços da ciência e da medicina que influenciam a nossa vida diária. Podemos fazer uma tomografia computadorizada ou uma ressonância magnética, um transplante de órgão ou óculos de leitura? Uma vez mais: e quanto à estrutura da Igreja Adventista e seus diversos departamentos? Devemos eliminar as Associações, Uniões, Divisões e a Associação Geral porque nenhuma destas entidades está listada, e, portanto, não é diretamente permitida nas Escrituras? O que fazemos como igreja com escolas e hospitais, editoras e indústrias de alimentos saudáveis? Devemos proibir órgãos nas igrejas, como fizeram os calvinistas no início, ou sistemas de alto-falantes?6 Nada disso está explicitamente mencionado nas Escrituras, e há muitos outros exemplos que podem ser citados. Alguém poderia argumentar que as Escrituras regulam a vida religiosa e não a vida secular. Contudo, tal distinção não é feita diretamente na Bíblia.

Como já mencionado, o assunto foi discutido nos primeiros séculos e surgiu novamente com Ulrich Zwingli e João Calvino. Para Zwingli “tudo deveria ser simples. As Escrituras devem sancionar explicitamente a ser feito no culto, embora haja uma área de ‘coisas indiferentes’, tais como a formulação das orações. O que não foi autorizado deve ser rejeitado.”7 E de acordo com Calvino:

“Nada é mais seguro do que banir toda a ousadia do bom senso humano e aderir apenas ao que as Escrituras ensinam.”8

Thomas Campbell, do Movimento de Restauração, declarou “Onde as Escrituras falam, nós falamos; onde as Escrituras estão em silêncio, nós estamos em silêncio.”9 Parece muito bom, e, certamente, muito sincero. No entanto, W. Woodrow mostra que Campbell não conseguiu seguir seu próprio princípio:

Infelizmente, Campbell usou muitas vezes a mesma lógica para excluir uma prática e incluir outra. . . . Campbell justificou muita coisa por não haver ordem nem exemplo sob a “lei da conveniência”: capelas; batistérios, tradução, publicação e distribuição das Escrituras, tempos de convocação; e arranjos específicos para o dia do Senhor, etc. . . Campbell falou favoravelmente da pena capital, concluindo que não há uma “palavra no Antigo ou no Novo Testamento que iniba” o seu uso. A instituição da escravidão não é em si imoral, uma vez que “não há um único versículo na Bíblia que a iniba.” Noutro lugar, Campbell admitiu: “Deus, não tendo prescrito nenhuma forma de governo político, sancionou igualmente todas as formas que a sociedade escolhe assumir.” Visto que os apóstolos não deram instruções específicas sobre a forma de cooperação da igreja, isto é “deixado à sabedoria e discrição de toda a comunidade.” Deve-se notar que o contexto em que o silêncio bíblico era proibitivo para Campbell geralmente envolvia algum aspecto da igreja: organização eclesiástica, adoração ou termos de comunhão. Visto que o Novo Testamento apresenta todas as características essenciais da igreja, os elementos extra-bíblicos careciam de autorização bíblica, violavam o padrão divinamente dado e impediam a causa da unidade cristã. O silêncio neste contexto era proibitivo. Contudo, visto que as Escrituras não especificavam nenhum procedimento exato para realizar o essencial, o silêncio nessas áreas implicava liberdade.10

Os restauracionistas podem ter falhado em perceber que nem todas as situações da igreja no NT eram iguais, e, portanto, em alguns casos, havia várias opções. Por exemplo, os cristãos judeus ainda adoravam no templo e na sinagoga, enquanto os cristãos gentios se reuniam em igrejas domésticas inspiradas na sinagoga, mas não se reuniam no templo. Os restauracionistas também podem ter falhado em distinguir entre narrativas bíblicas e prescrições bíblicas. Em outras palavras: eles podem não ter conseguido fazer uma distinção entre o que a Bíblia relata e o que a Bíblia prescreve. Em todo caso, Woodrow observa:

. . . isso não significa que qualquer palavra ou ato que não apareça especificamente nas Escrituras seja inarmônico ou antitético às Escrituras. . . . Embora a menção de uma prática no Novo Testamento contradiga (no sentido de ser diferente de) outra, isso não torna esta última prática errada ou pecaminosa. Seria ridículo que os cristãos comemorassem a Ceia do Senhor jejuando; entretanto, a instituição da Ceia não exclui o jejum como uma expressão válida de adoração simplesmente porque contradizem ou diferem.11

Esta segunda abordagem, eguida pelos Puritanos, também é chamada de abordagem “reguladora.”12

Escolhendo As Duas Abordagens Mencionadas Simultaneamente

Uma terceira abordagem seria escolher entre as duas abordagens mencionadas ou encontrar uma posição mediadora. Um membro da igreja pode argumentar que não há problema em assistir TV porque o que a Bíblia não proíbe é permitido; e a mesma pessoa pode argumentar que as Escrituras não permitem velas ou flores no santuário porque o que a Bíblia não permite é proibido.

Embora isto possa parecer estranho, tal abordagem aparece entre membros, pastores e administradores da igreja adventista. Contudo, ela também aparece ao longo da história da igreja, porque normalmente as pessoas que defendem esta última abordagem não foram capazes de aplicá-la de forma consistente. Isto é verdade tanto para os reformadores quanto para os restauracionistas.13

Karlstadt, colega de Lutero,posteriormente seu oponente em Wittenberg, expressou o princípio de não acrescentar nada às Escrituras. . . . Qualquer pessoa que acrescente ou subtraia a palavra de Deus é automaticamente excomungada. Não obstante, tem-se o direito à liberdade onde a Escritura não é explícita, mas o direito individual está subordinado às necessidades da comunidade. Karlstadt poderia expandir o que as Escrituras afirmam. Sua defesa do cuidado das viúvas inclui o cuidado dos viúvos.14

Princípios Bíblicos para Decidir Questões Teológicas

Uma quarta abordagem sugere que, na ausência de textos bíblicos claros que tratem diretamente do tema sob investigação, devemos procurar princípios bíblicos que lancem luz sobre a respectiva questão, avaliá-los em espírito de oração e determinar como esses princípios devem ser aplicados às questões éticas e teológicas. Os princípios bíblicos são encontrados em textos bíblicos. Para não fazer mau uso destes textos, eles devem ser primeiro exegetados, seguidos de uma análise teológica que procure o tópico e os temas teológicos dos textos. Desses temas teológicos podem ser derivados princípios bíblicos. Esta abordagem reitera que proibições e mandamentos bíblicos devem ser levados a sério. O mesmo se aplica quanto aos princípios bíblicos. A vontade de Deus nunca pode ser ignorada com segurança.15

Retornemos à questão da saúde. Esta abordagem examina o que as Escrituras têm a dizer sobre saúde e descobriria, por exemplo, que Deus nos confiou os nossos corpos e espera que sejamos bons administradores deles. Ouve as Escrituras chamando nossos corpos de templos do Espírito Santo (1Co 6:19) e nos desafia a glorificar a Deus em nossos corpos (1Co 6:20). À luz destes princípios bíblicos, os enormes riscos para a saúde associados ao tabagismo tornam difícil para um cristão justificar esta prática.

A Bíblia não contém uma proibição clara da escravidão; no entanto, ao olhar para os princípios bíblicos que enfatizam a dignidade, a liberdade e a igualdade básica humana, bem como ao estudar o tratamento dado por Paulo à escravatura em cartas como a de Filemon, muitos cristãos, incluindo os adventistas, perceberam que a escravatura tinha de ser abolida.

Avaliando As Abordagens

As quatro abordagens são abordagens básicas para lidar com questões teológicas e éticas não abordadas diretamente nas Escrituras. Pode haver mais do que os quatro — e há mais, se optarmos por abordagens críticas das Escrituras — mas nos concentramos nelas e as avaliamos brevemente, apontando seus pontos fortes e fracos.

Primeira Abordagem: O Que As Escrituras Não Proíbem É Permitido

Essa abordagem permite um pouco de liberdade e responsabilidade. No entanto, também pode haver abuso da liberdade. Parece ser muito simplista e pode não levar em consideração princípios bíblicos existentes enquanto faltam textos bíblicos diretos. A Bíblia tem mais a dizer sobre questões de estilo de vida e ética do que aparenta à primeira vista. Portanto, esta abordagem parece ser problemática.

Segunda Abordagem: O Que As Escrituras Não Permitem É Proibido

A segunda abordagem parece ter limites claros, sem muitas opções como a primeira abordagem, mas pode ser muito restritiva e tornar a vida hoje muito difícil. A questão também seria se tal abordagem é realmente a intenção das Escrituras. Indubitavelmente, a segunda abordagem carece da liberdade que a primeira propõe. Dificilmente pesquisa princípios bíblicos e corre o risco de ficar satisfeita com uma leitura superficial das Escrituras. Além disso, seguir tal abordagem complicaria ou mesmo dificultaria o cumprimento da Grande Comissão e a proclamação das Mensagens dos Três Anjos, se, por exemplo, os meios modernos de transporte e comunicação fossem excluídos.

As Escrituras nos dizem para não adicionar ou subtrair (Dt 4:1–2; Ap 22:18–19; etc.). Alguém poderia argumentar que isso significa que não estamos autorizados a fazer nada que não seja mencionado nas Escrituras. No entanto, a questão é se estes textos devem ou não ser interpretados desta forma. G. R. Osborne argumenta corretamente que eles devem ser entendidos no contexto de heresia. “Como em Deuteronômio, Cristo está alertando contra os falsos mestres que distorcem o significado das profecias, acrescentando-lhes seus próprios ensinamentos ou removendo o significado que Deus pretende.”16 G. K. Beale diz: “Tal ensino falso equivale a ‘acrescentar’ à lei de Deus. Também equivale a ‘retirar’ da lei de Deus. . .”17 Esses textos bíblicos não abordam a questão “O que as Escrituras não permitem explicitamente é proibido”, por exemplo, dirigir um carro é proibido porque não é especificamente permitido nas Escrituras. Ironicamente, enquanto ensinavam regulamentos adicionais, coisas não mencionadas explicitamente nas Escrituras, mas aplicadas para não ir além do que as Escrituras permitem, registrando-os na Mishná, no Talmude, em outros documentos, e, muito provavelmente, não os considerando como acréscimos às Escrituras, os líderes judeus na verdade acrescentaram suas tradições às Escrituras e foram criticados por Jesus por esta prática. Tanto a primeira abordagem quanto a segunda são bastante problemáticas.

Terceira Abordagem: Escolhendo As Duas Abordagens Mencionadas Simultaneamente

Escolher entre as duas abordagens acima parece bizarro. Praticamente inconcebível que a primeira e a segunda abordagens serem combinadas de forma significativa e compatíveis. Desafio qualquer lógica alternar entre tais abordagens que são opostas entre si.

Infelizmente, as pessoas são inconsistentes, e, muitas vezes, tomam decisões que não se baseiam em princípios claros. Por causa de pensamentos desleixados, podem tentar conciliar o inconciliável. Podem também dividir a vida em diferentes compartimentos, sendo alguns governados por uma abordagem, enquanto outros são governados pela abordagem oposta. Parece-nos que a terceira abordagem é pior que as duas anteriores. Consciente ou inconscientemente, o indivíduo se torna a norma para interpretar as Escrituras. Com esta abordagem existe o perigo de que a primeira ou a segunda posição sejam escolhidas subjetivamente, quer para chegar a resultados e conclusões pessoalmente desejados, quer para manter algum tipo de tradição.

Quarta Abordagem: Princípios Bíblicos para Decidir Questões Teológicas

Conforme salientado, a quarta abordagem para questões não mencionadas nas Escrituras é governada por princípios bíblicos.

Pode ser mais desafiadora do que as abordagens anteriores, forçando aqueles que a aplicam a estudar seriamente as Escrituras, orar e buscar a vontade de Deus. No entanto, longe de ser uma desvantagem, é benéfica. Promove um relacionamento maduro e crescente com Deus. Esta abordagem parece também permitir alguma latitude, especialmente quando se trata do conceito de mordomia cristã. Por padrão, esta parece ser a melhor abordagem possível entre as quatro.

W. C. Kaiser e M. Silva afirmam: “Somente o que é ensinado diretamente nas Escrituras é obrigatório para a consciência. Vincular as consciências dos crentes àquilo que não está diretamente ensinado nas Escrituras é se aproximar perigosamente do surgimento de uma nova forma de tradição. . .”18 Esta soa como a primeira abordagem. Mas eles continuam: “Assim, o que é diretamente condenado nas Escrituras, devemos condenar. E o que é condenado pela aplicação imediata de um princípio, devemos também condenar.19

Selecionando Uma Abordagem

Isto nos leva ao ponto em que temos que tomar uma decisão sobre as diversas abordagens que tratam de questões não mencionadas diretamente nas Escrituras. Tal decisão é ao mesmo tempo uma decisão sobre como fazer teologia. Obviamente, uma abordagem simplista não serve. O Senhor quer que lidemos com as questões, pensemos sobre elas, e, sob a orientação do Seu Espírito, encontremos respostas para perguntas não abordadas diretamente nas Escrituras que sejam fundamentadas na Bíblia, de forma sólida e consistente.

O que a Bíblia sugere? Como Jesus e os apóstolos lidaram com questões que não foram discutidas (ou não foram suficientemente discutidas) nas Escrituras?

Em Mateus 19, Jesus foi confrontado com a questão do divórcio. Antigo Testamento contém uma permissão de divórcio em caso de indecência (Dt 24:1–3). Mas Jesus sabia que esta era uma concessão feita a Israel devido à dureza de coração do povo (Mt 19:8). Portanto, ele não escolheu a abordagem “o que a Bíblia não proíbe explicitamente é permitido.” Em vez disso, ele recorreu ao princípio bíblico que encontrou no relato da criação, declarando que Deus fez um homem e uma mulher, uniu os dois em casamento e eles se tornaram uma só carne (Gn 1:27: 2:24). Desse fato Jesus deduziu: “Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe” (Mt 19:6).

Em Romanos 1, Paulo discutiu a pecaminosidade dos gentios, mencionando vários vícios, incluindo a atividade homossexual. Proibições claras de um estilo de vida homossexual são encontradas em Levítico 18 e 20. Mas Paulo não apenas aludiu a esses textos, mas forneceu o contexto da criação (Rm 1)/queda (Rm 5) como uma razão para a rejeição da atividade homossexual. Embora Paulo tenha textos bíblicos contrários ao estilo de vida homossexual, mesmo assim usou princípios bíblicos para apontar o problema.

Quando seus discípulos foram acusados ​​de violar o sábado porque estavam colhendo algumas espigas de grãos (supostamente colhendo, debulhando e joeirando), Jesus se opôs ao absurdo da afirmação referindo-se a 1 Samuel 21, a história de Davi recebendo o pão consagrado, e concluiu: “O sábado foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Marcos 2:27).

Evidentemente, a quarta abordagem deve ser favorecida. Novamente, esta é uma abordagem que trata de questões não mencionadas, ou apenas mencionadas marginalmente nas Escrituras. Não dispensa uma compreensão literal dos textos bíblicos (a menos que encontremos parábolas, metáforas, símbolos, etc.),20 mas envolve uma exegese sólida derivada da própria Escritura e a descoberta de temas bíblicos. Mas algumas questões ainda permanecem. Primeira: como podemos encontrar princípios bíblicos e aplicá-los às questões que enfrentamos? Resposta: Lendo as Escrituras ampla e regularmente. Pedimos ao Espírito Santo que nos guie aos princípios corretos. A comunidade de crentes também é importante porque geralmente a igreja como um todo pode nos indicar princípios bíblicos que são aplicáveis ​​à situações específicas.

Segunda: que critérios adicionais devem ser utilizados?

  1. Ao procurar princípios bíblicos, têm prioridade aqueles princípios que compartilham preocupações iguais ou semelhantes com a questão sob investigação. Por exemplo, quando se discute o aborto, os princípios relacionados com o valor da vida, do matar e da morte precisam de ser considerados.

  1. A solução para um caso específico deve estar em harmonia com outros ensinamentos bíblicos sobre o mesmo assunto, bem como com toda a mensagem bíblica.21 Embora reconheçamos diferentes ênfases teológicas em diversos livros bíblicos, ainda assim existe uma unidade abrangente. Consequentemente, não deve haver pontas soltas e declarações conflitantes quando fazemos teologia para determinar como questões difíceis não abordadas diretamente nas Escrituras devem ser resolvidas. A verdade bíblica é um sistema integrado e unido que não deve ser destruído.

  1. Algumas questões/princípios devem ser rastreados ao longo da Bíblia para ver se ocorreram ou não mudanças na prática. Se mudanças forem observadas, a direção da mudança poderá ser prosseguida, como feita, por exemplo, pelos cristãos no caso da abolição da escravatura.

  1. Cristãos não são ilhas. Lidar com estas questões pode exigir que consultemos outros membros da igreja e pessoas com experiência para ouvirmos as suas sugestões e conselhos.

Conclusão

Pessoas com uma visão elevada das Escrituras têm várias opções quando se trata de responder questões não abordadas ou apenas abordadas marginalmente nas Escrituras. Uma abordagem que utiliza princípios bíblicos para lidar com estas questões parece ser muito proveitosa e até exigida pelas próprias Escrituras. Os adventistas desejam manter sua fidelidade às Escrituras.


Notas

1 Cp. Richard M. Davidson, “Biblical Interpretation,” em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, Commentary Reference Series, vol. 12, e., Raoul Dederen (Hagerstown: Review and Herald, 2000), pp. 58–104; Gerhard Pfandl, The Authority and Interpretation of Scripture (Wahroonga, Australia: South Pacific Division of Seventh-day). Abordagem editada por G. W. Reid, Biblical Research Institute Studies, vol. 1 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 2006), pp. 111–134.

2 Jack Pearl Lewis, “Silence of Scripture in Reformation Thought,” Restoration Quarterly 48/2 (2006): 73.

3 Lewis, p. 82.

4 Cp. Lewis, pp. 83–84. Darrell Hamilton, “Silence of the Scriptures,” http://lavistachurchofchrist.org/LVarticles/SilenceOfTheScriptures.htm, acesso em 15/05/2012, parece permitir cautelosamente esta abordagem, mas não parece ser completamente claro, porque ele pode, até certo ponto, simpatizar com a segunda abordagem.

5 I. Howard Marshall, Beyond the Bible: Moving from Scripture to Theology (Grand Rapids: Baker, 2004), p. 40. “Os anglicanos. . . ‘defendem a autoridade das Escrituras na medida em que nenhuma prática diretamente condenada pela Bíblia deveria ser aprovada no culto público. . .’”

6 John Barber, “Luther and Calvin on Music and Worship,” Reformed Perspective Magazine, 8/26 (2006), nº23, p. 8.

7 Lewis, p. 75. No entanto, Zuínglio não compactou: “O conceito de Zuínglio de uma igreja estatal exigia a adesão de crianças, e ele defendeu o batismo infantil, embora tivesse concordado anteriormente que não havia mandamento ou exemplo bíblico. . . . Quando os anabatistas exigiram um texto para o batismo infantil, Zuínglio respondeu que também não havia um texto simples para a admissão de mulheres à Mesa do Senhor, mas que não via nada de errado com isso,” p 75.

8 João Calvino, Institutas 4.18.12.

9 Citado em W. E. Garrison e A .T. De Groot, The Disciples of Christ: A History (St. Louis: Bethany Press, 1958), p. 140. Ideias similares são propostas por escritores populares como Stan Cox, “The Silence of Scripture,” http://www.watchmanmag.com/0612/061210.htm: acessado em 15/05/2012, que se opõe aos instrumentos musicais no culto de adoração, sociedades missionárias, salas de comunhão, eventos sociais, pregadoras e muitas outras coisas; Mark Dunagan, “Silence of the Scriptures,” http://www.ch-of-christ.beaverton.or.us/Silence_of_the_Scriptures.htm; acessado em 15/05/2012; e Wayne Jackson, “The ‘Silence’ of the Scriptures: Permissive or Prohibitive?” http://www.christiancourier.com/articles/128-the-silence-of-the-scriptures-permissive-or-prohibitive, acessado em 15/05/2012.

10 Woody Woodrow, “The Silence of Scripture and the Restoration Movement,” Restoration Quarterly 28/1 (1985-1986), pp. 31–32.

11 Woodrow, p. 38.

12 Marshall, p. 40.

13 Woodrow, p. 33, mostra que o mesmo padrão aparece em outros restauracionistas, e.g., G. C. Brewer (1884–1956). Ele “também manteve a força do silêncio como proscritiva e permissiva. Por um lado, o silêncio significa proibição: ‘Permanecer em silêncio significa que deixaremos de praticar onde a Bíblia deixa de ensinar; que a nossa prática em matéria de religião é limitada pela palavra do Senhor, restringida pela revelação divina.’ No entanto, Brewer também acreditava que muitas organizações atuais sobre as quais as Escrituras nada diziam eram permitidas: ‘Podemos ter uma escola bíblica (escola dominical), uma escola de canto, uma faculdade cristã, um jornal religioso, um lar para órfãos, um lar para idosos, etc.” Ver Lewis, p. 78, sobre John Oecolampadius.

14 Lewis, p. 79. De maneira semelhante, Calvino “aprova ‘apenas aquelas constituições humanas fundadas na autoridade de Deus e derivadas das Escrituras, sendo, portanto, totalmente divinas.’ Mas Calvino faz uma distinção entre ‘todas as partes do culto divino, e tudo o que é necessário para a salvação’ e ‘disciplina e cerimônias externas’,” p. 85.

15 Algumas pessoas usam a história de Noé e a ordem de Deus para construir a arca com madeira de cipestre e concluíram que Noé não tinha permissão para usar outro tipo de madeira para a arca. Eu concordaria. Mas Noé não foi instruído a não fazer ferramentas e não foi instruído a fazê-las com madeira de cipestre. Se ele fizesse ferramentas de madeira de pinho, isso não seria uma violação da vontade divina, diriam muitas pessoas.

16 G. R. Osborne, Revelation, Baker Exegetical Commentary on the New Testament (Grand Rapids: Baker Academic, 2002), p. 795.

17 G. K. Beale, The Book of Revelation: A Commentary on the Greek Text (Grand Rapids: W.B. Eerdmans, 1999), p. 1151. Ver, também, D. L. Christensen, Deuteronômio 1–21,” Word Biblical Commentary, vol. 56A (Nashville, TN: Thomas Nelson Publishers, 2001), p. 80.

18 Walter C. Kaiser Jr. and Moisés Silva, An Introduction to Biblical Hermeneutics: The Search for Meaning (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1994), p. 204. Marshall, 9 anos, acredita que “é correto buscar uma maneira baseada em princípios de passar das Escrituras para sua compreensão e aplicação contemporâneas, e que a maneira de fazer isso é explorar como os princípios podem ser estabelecidos a partir das próprias Escrituras. . .” No entanto, ele parece ir muito além do sugerido aqui.

19 Valter e Silva, p. 205.

20 A linguagem não literal ou figurativa requer procedimentos adicionais para uma interpretação cuidadosa e precisa.

21 Kevin J. Vanhoozer, em Marshall, p. 93, escreve: “Eles devem aprender a ler textos específicos no contexto de toda a Escritura e em relação ao centro da Escritura, o evangelho de Jesus Cristo. Eles devem aprender não apenas a analisar os verbos ou a processar a informação, mas a emitir o mesmo tipo de juízos que aqueles incorporados no cânone em novos contextos e com conceitos diferentes. ‘Cânone é a chave. . .’”

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