Desafio e Transformação: Segundo Templo e Judaísmo Rabínico
Lawrence H. Schiffman é Professor de Hebraico e de Estudos Judaicos na New York University e Diretor do Global Institute for Advanced Research in Jewish Studies. O Professor Schiffman é especialista em Manuscritos do Mar Morto e fez parte do grupo internacional de estudiosos que prepararam uma ampla publicação dos Manuscritos em 1991. Autor de diversos artigos e livros com destaque para “From Text to Tradition, A History of Judaism in Second Temple and Rabbinic Times”.
Tradução: Hugo Martins.
Tradução do artigo publicada com autorização expressa do autor. O original, em inglês, pode ser acessado no site oficial do autor .
Desafio e Transformação: Segundo Templo e Judaísmo Rabínico
Os anos de governo helenista, romano e bizantino na Judeia, e do governo sassânida na Babilônia, foram anos muito desafiadores para a continuidade do judaísmo, e, ao mesmo tempo, anos de grandes realizações que resultaram em sucessos perante esses desafios. Por volta do final da Antiguidade Tardia, o judaísmo tinha sobrevivido aos desafios de helenização, sectarismo, revolução violenta e, até mesmo, antissemitismo. Além disso, o desenvolvimento da religião israelita na tradição rabínica ocorreu, também, nesses anos. As muitas transições que ocorreram nesse período são aquelas que, efetivamente, tornaram possível a continuidade a longo prazo do judaísmo como uma religião exílica capaz de adentrar no período medieval com um novo consenso sobre como encarar o futuro e explicar o passado.
Um Deus ou Muitos? Judaísmo e Culturas Estrangeiras
Já no período bíblico, uma grande indagação questionava a própria natureza da religião Israelita. Deve o Deus de Israel ser adorado junto com outros deuses ou deve Ele ser exclusivamente venerado? Juntamente a esta indagação, estava a questão da centralização da adoração. Em uma tentativa de acabar com adoração sincretista e controlar o sacerdócio, a tradição deuteronomista, seguida por Ezequias e Josias, definiu a limitação da adoração sacrificial ao Templo de Jerusalém. Ademais, apenas os sacerdotes sadoquitas (descendentes de um dos sumo sacerdotes de salomão, Sadoque) podiam oferecer sacrifício. Desnecessário dizer que aqueles que criam o Deus de Israel ser um entre muitos deuses não viam razão de centralizar a adoração ou limitar a participação no sacerdócio legítimos.
Por detrás dessas questões políticas e religiosas está uma questão cultural mais ampla que preocupava os judeus no período do segundo templo: a saber, se a religião israelita deveria ser um estilo de vida completo sem permitir a influência de elementos externos ou se era para ser apenas uma parte da vida do indivíduo ou da nação.
No entanto, este não era uma questão simples. O problema nunca foi se deveria rejeitar ou não influência externa. A dúvida era, em vez disso, se assimilar alguns elementos não considerados nocivos ou permitir livremente a influência de elementos externos no estilo de vida dos judeus. Aquele que defendiam uma adoração exclusiva a Deus sentiam que a adoção de elementos externos se restrição não era nada mais do que apostasia e abandono do judaísmo. Outros, contra quem nossas fontes normalmente criticam, discordaram.
Os Samaritanos
Este complexo de problemas apareceu no começo do período do Segundo Templo. Os judeus que retornavam começaram a reconstruir o Templo; os samaritanos se ofereceram para ajudar, mas foram recusados.
Quando discutimos sobre os samaritanos, ficamos logo frustrados com o problema das fontes. Enquanto a Bíblia descreve as origens do samaritanismo, devemos lembrar que as Escrituras foram proferidas por grupos judaicos que eram fundamentalmente antissamaritanos. Portanto, é provável que exista algum preconceito nesses materiais. Segundo, todas tradições samaritanas aparecem em escritos que são muito tardios, e muitos deles foram claramente influenciados por fontes islâmicas. Por fim, o material na literatura rabínica e em Josefo também está sujeito à afirmações preconceituosas.
A partir dessas diversas fontes, podemos reconstruir o seguinte registro. Os samaritanos eram um povo misto composto de remanescentes dos israelitas do norte que não foram exilados em 722 A.E.C. e das diversas nações estrangeiras que os assírios trouxeram à região na tentativa de assegurar que aspirações nacionalistas não viessem mais à tona. Este grupo misto, os samaritanos, adotaram uma forma sincretista de judaísmo. Eles parecem ter mantido as antigas tradições do norte e combinado-as com as tradições das nações que se estabeleceram entre eles. Mais importante, no entanto, era o problema genealógico.
Nos tempos do primeiro templo era possível aos estrangeiros juntar-se ao povo judeu de modo informal mudando física e socialmente para a terra e aderindo às leis e à religião dos judeus. Durante o exílio, o judaísmo havia se transformado a partir de uma nacionalidade dependente da ligação com a terra e com a cultura a uma religião que dependia de um descendente. Pois de que outro modo poderia o judaísmo assegurar a sua continuidade estando privados de sua terra natal. Os judeus que retornaram da Babilônia não podiam aceitar a genealogia questionável dos samaritanos. Por outro lado, não havia ainda um sistema para conversão religiosa como desenvolvido, posteriormente, no período do Segundo Templo. Portanto, não havia nenhuma escolha a não ser rejeitar os samaritanos, mesmo eles tendo concordado em abandonar as suas práticas sincretistas.
Esta questão teve tonalidades políticas também. Os samaritanos tentaram, embora com sucesso limitado, influenciar as autoridades persas a impedir a construção do Templo e a limitar os poderes governo temporal e sacerdotal dos judeus. Esta separação entre samaritanos e judeus foi permanente, os samaritanos, desde então, continuaram como uma comunidade separada.
O problema samaritano foi, sem dúvidas, agravado por uma outra questão de longa data. Não há dúvidas que desde os primórdios da monarquia, havia uma divisão entre Norte e Sul. Foi esta divisão que levou, após a morte de Salomão, à divisão do reino.
O problema dos samaritanos no período do Segundo Templo pode ser visto, de algum modo, como uma continuação do cisma Norte-Sul do Primeiro Templo. Assim como seus antecessores do Norte, os samaritanos insistiram no direito de sacrificar fora de Jerusalém. Evidências parecem apontar para adoção por parte deles do aramaico em um estágio anterior aos seus homólogos judeus. Sob o domínio persa, os judeus haviam rejeitado os samaritanos devido à sua adoração sincretista e a presença entre eles de elementos não-israelitas. Claramente, os judeus escolheram seguir os passos daqueles que acreditavam que somente o Deus de Israel deve ser adorado, e que esta adoração deve ser feita apenas de acordo com as tradições antigas de Israel. A mesma questão ressurgiria no período helenístico.
O problema do helenismo, então, pode ser visto como um problema maior de abertura a culturas e influências estrangeiras, um conflito que foi crítico nos tempos bíblicos, e que continuou no período do Segundo Templo. Como o universo cultural e político do mundo mudou, o judaísmo que primeiramente se defrontara com a cultura canaanita, agora tem de lidar com o fenômeno do helenismo.
Principais Seitas da Era Greco-Romana e O Problema do Helenismo
De forma geral, havia cinco grupos na população judaica da Palestina durante o período helenístico. Muitos judeus na diáspora estavam profundamente helenizados. Havia um grupo pequeno que acreditava piamente que os judeus deviam aderir à cultura helenista. Eles acreditavam que formas culturais e educacionais gregas deveriam suplantar a herança bíblica para que os judeus pudessem adentrar no universo político grego. Judaísmo tornar-se-ia, então, um dos cultos helenísticos, e o Deus de Israel seria apenas uma das muitas manifestações de Zeus, o principal deus do panteão grego. Afinal, por toda a civilização helenista, as deidades locais eram identificadas com os deuses do panteão helênico. Contra esta helenização extrema que os macabeus se revoltaram. Com o passar do tempo, aqueles que defendiam tais visões, se na Terra de Israel ou na Diáspora, assimilaram, provavelmente, tanto o meio de vida grego que eles e seus descendentes eram considerados perdidos pelo povo judeu.
Um segundo grupo de algum tipo de judeus helenizados é o dos judeus falantes de grego. Sua lealdade era primariamente à tradição judaica, mas sua cultura foi muito influenciada pelo ambiente em que viviam. Alexandria, no Egito, era certamente um centro para este tipo de helenização, tipificada pela Septuaginta (tradução grega da Bíblia) e pelos escritos de Filo O Judeu (c. 20 A.E.C-40 E.C.), que tentaram sintetizar a revelação da Torah com o pensamento platônico. Este judaísmo moderadamente helenístico também encontrou lugar na Judeia, representado, por exemplo, por Josefo e pelos judeus de fala grega da Terra de Israel. Muitos dos livros gregos dentre os apócrifos e pseudoepígrafos são produtos desta abordagem. No meio deste grupo estavam, sem dúvidas, muitos aristocratas e membros do sacerdócio saduceu.
Falando dos saduceus, o problema das fontes é especialmente crítico pelas razões mencionadas anteriormente. Não obstante, informações importantes podem ser coletadas acerca dos saduceus, e, pelo visto, parecem ser confiáveis. Josefo menciona explicitamente os saduceus (junto com os fariseus e essênios) como existindo tão cedo quanto o tempo de Jônatas Macabeus (ca. 150 A.E.C.).
A característica mais repetida dos saduceus é o seu aspecto aristocrata. A maioria deles eram aparentemente sacerdotes ou aqueles que se casaram com famílias sumo-sacerdotais. Os saduceus têm seu nome derivado de Zadoque, o sumo sacerdote do Templo de Jerusalém na época de Salomão. Foi esta família de sumo-sacerdotes que serviu como chefe do sacerdócio durante o período do Primeiro e do Segundo Templo, as únicas interrupções foram quando adoração estrangeira foi trazida ao Templo quando os hasmoneus tomaram o controle. Ademais, de acordo com Josefo, os saduceus rejeitavam as “tradições dos pais” observadas como lei pelos fariseus. Essas tradições parecem ter sido uma precursora da Lei Oral. Pelas razões descritas anteriormente, é difícil avaliar as muitas diferenças, de fato, entre os saduceus e os fariseus mencionadas nas fontes tanaíticas. Os saduceus também diferiam de certo modo em questões teológicas com os fariseus, um assunto que abordaremos posteriormente.
Aliados próximos com os saduceus estavam os boetusianos. Este grupo parece ter adotado visões similares às dos saduceus. Estudiosos atribuem a origem dos boetusianos a Simeão ben Boethus, nomeado sumo sacerdote por Herodes em 24 A.E.C. para que tivesse status suficiente para se casar com a filha de Herodes, Mariane II. Há, certamente, algumas diferenças entre os saduceus e os boetusianos, mas é provável que os boetusianos fossem um subgrupo dos saduceus.
Está claro que muitos daqueles sacerdotes saduceus e boetusianos, e suas famílias, eram consideravelmente helenizados. Eles, portanto, representam o ponto focal de um grupo que aceitava muitos aspectos da cultura helenista, enquanto permanecendo leais à tradição judaica.
Pode-se dizer que um terceiro grupo rejeitava todos os aspectos da cultura helenista. Isto não quer dizer que eles não tenham adotado vocabulário grego em sua fala hebraica e aramaica, ou que as tradições intelectuais da oikiméne (mundo helenista) não lhes afetara de forma nenhuma. Em vez disso, este grupo para ter mantido consideravelmente a cultura do oriente médio. Referimo-nos, aqui, aos fariseus. O nome desta seita é derivado do [termo] hebraico perushim, “separados”. Esta designação se refere mais provavelmente à separação deles dos alimentos leviticamente impuros e das mesas dos ‘am ha’arets, o povo comum, que não eram cuidadosos em relação às leis de pureza levíticas ou aos dízimos.
Quanto aos fariseus, enfrentamos, também, o problema das fontes. Pouco pode ser dito com precisão sobre os fariseus no período pré 70 E.C. Três características principais parecem surgir das fontes diante de nós. Primeira, elas representavam primariamente as classes econômicas inferiores. Segunda, e, talvez, como consequência de seu status social, eles não foram realmente helenizados. Pare termos ideia, certos termos gregos ou abordagens intelectuais podem ter feito parte da vida deles. Todavia, eles viam como autoritativo apenas o que eles consideravam como as tradições antigas de Israel. Terceira, eles aceitavam as “tradições dos pais”. As leis de pureza, dízimo e sábado eram de interesse primordial para os fariseus.
A primeira referência ao termo “fariseu” remonta ao tempo de Jonatas Macabeu (c. 150 A.E.C). Muitos estudiosos têm tentado identificar os fariseus com os hassidim que aparecem como aliados de judas na revolta macabeia. Esta teoria, no entanto, não pode ser sustentada. Ademais, nosso conhecimento dos hassidim nesse período primitivo é muito limitado. É mais provável que eles não fossem, realmente, uma seita ou um partido, mas, em vez disso, uma associação livre de pietistas, tal como é denotado por este termo na literatura talmúdica.
Fontes rabínicas traçam a história dos fariseus remontando aos Homens da Grande Assembleia, dos quais se diz ter provido a liderança religiosa para Israel no período persa e no período helenístico. Alguns estudiosos modernos têm associado os soferim (“escribas”) com os Homens da Grande Assembleia. Os soferim seriam, então, os predecessores do movimento farisaico. Infelizmente, evidência histórica não permite quaisquer conclusões aqui. Tudo o que se pode dizer é que os fariseus não podem ter surgido repentinamente, desabrochado no período hasmoneu. Sua teologia e organização devem ter se formado algum tempo antes. Quanto tempo antes, e de que forma, não podemos dizer.
Um quarto grupo parece ter se esquivado muito mais radicalmente do que os fariseus. Enquanto o judaísmo farisaico parece ter sido helenizado ao menos em menor grau, a seita do Mar Morto não usava quaisquer termos gregos em seus escritos, e, apesar de algumas interpretações contrárias, não era de modo nenhum helenizada. Esta fora aparentemente fundada por volta da época da revolta macabeia. Do papel dos sacerdotes sadoquitas nos ensinamentos jurídicos da seita, assume-se que tais sacerdotes compuseram o núcleo da seita. A seita foi fundada por sacerdotes sadoquitas piedosos que foram expulsos dos serviços do Templo quando os macabeus usurparam para a sua família o direito de oficiar como sumos sacerdotes. Este grupo se reclusou no deserto onde viviam na costa do Mar Morto em Qumran, e em algumas comunidades circunvizinhas. Eles nos deixaram uma série de manuscritos, datando, principalmente, do segundo e do primeiro séculos A.E.C., que definem, claramente, a vida e as doutrinas dessa seita.
Dentre as características mais importantes da seita do Mar Morto, ou Qumran, está a rejeição por parte deles da validade das tradições extrabíblicas para a derivação da lei. Esse grupo derivou sua lei tão somente da exegese bíblica, uma atividade que ocupava a maior parte da vida diária da seita. Quanto a este respeito, eles partilhavam da interpretação dos saduceus. Além do mais, muitas regras e exegeses parecem representam a linha saduceia/sadoquita quanto a lei judaica.
Deve-se destacar que a seita do Mar Morto registou a sua legislação. Fontes talmúdicas tardias proibiam a escrita da Lei Oral e proclamavam tal entendimento no período do Segundo Templo. Não há como saber se os fariseus registraram suas tradições dos pais extrabíblicas. Podemos dizer, com certeza, que nenhum manuscrito farisaico claramente identificável do período do Segundo Templo chegou até nós, mas, também, nenhum manuscrito saduceu.
Muitos estudiosos têm identificado a seita dos Manuscritos do Mar Morto com os essênios descritos em Filo e em Josefo. Realmente, esta sugestão tem o mérito de resolver o problema do porquê Josefo não menciona tal seita importante como os qumranitas. Os essênios, no entanto, não podem ser identificados com Qumran, a não ser corrigindo Josefo à luz dos Manuscritos do Mar Morto. Tal processo é rotativo, para podermos dizer que a seita de Qumran pode ser os essênios. Josefo menciona os essênios como existindo já em 150 A.E.C., mas devemos lembrar, uma vez mais, quão tardiamente ele estava escrevendo. Nenhuma informação quanto à descoberta deste grupo é dada por Josefo, e nenhuma etimologia convincente do nome tem sido proposta. Ademais, Josefo poderia ter generalizado diversos grupos menores sob a bandeira dos essênios. É uma pena, também, não haver menção aos essênios na literatura talmúdica—pelo menos não pelo nome. A característica mais marcante dos essênios parece ter sido a comunidade do bem comum; alguns praticaram o celibato.
Em relação ao continuum helenístico, temos um problema quanto aos essênios. Se eles podem ser identificados com a seita do Mar Morto, a influência helenística parece, então, fora de cogitação. Se, contudo, eles são um grupo separado, e a descrição de Josefo estiver correta, a influência helenística pode esclarecer muito de suas divergências para com a abordagem farisaica. Além disso, Filo descreve a seita dos terapeutas, localizada no Lago Mareotis, no Egito, uma área, claramente, de um judaísmo fortemente helenizado, como tendo muitas afinidades com os essênios.
Temos omitido a discussão sobre diversas seitas minoritárias mencionadas na literatura rabínica. Dados sobre aquelas seitas são tão escassos, e não possível dizer se estamos lidando com um grupo organizado ou não.
Todos os grupos que temos discutido, somado todos eles, não passam de 10% da população judaica da Palestina da segunda comunidade. Quem eram os restantes. A maioria das pessoas pertenciam a uma classe chamada pela Bíblia e por rabinos tardios como ‘am ha’areṣ. (“povo da terra”). Esse grupo era primariamente rural e da classe econômica inferior. Sua fé era provavelmente uma versão simplificada dos ensinamentos da Bíblia, e sua observância era similar à dos fariseus, em exceção ao dízimo e as leis de pureza que eram amplamente desconsideradas. Apesar disso, podemos seguramente afirmar a ampla observância do sábado e abstinência dos alimentos proibidos. No que diz respeito à oração e ao status da sinagoga naquela época, evidência é escassa, e não se pode chegar em quaisquer conclusões definitivas.
O ‘am ha’areṣ foi provavelmente afetado pelo helenismo apenas em relação ao que podemos chamar de cultura da superfície, isto é, alguns termos de natureza técnica e de cultura material, como mostrado pelos achados em larga escala de porcelanas e cerâmicas gregas na Terra de Israel daquele período. Sabemos que após a Grande Revolta, 66-73 E.C., a maior parte deste grupo seguiram os fariseus no movimento rabínico. Pode-se, talvez, dizer que este fora apenas o fim de um longo processo. Esse grupo, considerando o helenismo e os helenistas como intrusos em seu antigo estilo de vida e cultura, tivera maior simpatia para com os fariseus em sua época. De fato, tamanha impressão é certamente dada por Josefo, mas pode ser o resultado dos desenvolvimentos pós-70 E.C. ou de seus próprios preconceitos.
Centralização do Culto
A centralização do culto sacrificial, isto é, a proibição de qualquer sacrifício exceto no Templo de Jerusalém, estava ligada à veneração exclusiva do Deus de Israel. Intencionando assegurar a adoração apropriada do Deus israelita, o autor de Deuteronômio, seguido por Ezequias e Josias, proibiram a adoração em outros lugares. Além disso, Josias tivera reduzido os sacerdotes de áreas remotas, cuja adoração era frequentemente sincretista, a um status secundário em Jerusalém. Ezequiel, em sua visão do Segundo Templo restaurado, pela mesma razão, esperava apenas sacerdotes sadoquitas a ministrar, com outros relegados a um status secundário. Essa parece ter se tornado a prática nos tempos do Segundo Templo.
Variadas exceções à centralização da adoração sacrificial podem ser observadas no período do Segundo Templo. Antes de investigá-las, devemos observar quão insignificante aquelas exceções são. Em geral, a partir da reforma de Josias em diante, os judeus não tentaram oferecer sacrifícios a não ser em Jerusalém. Por esta razão, os exilados na Babilônia não tentaram oferecer sacrifícios na Babilônia. Das exceções que mencionaremos, apenas os samaritanos podem, de fator, ser considerados uma seita. Não obstante, os outros exemplos fornecem o contexto para o entendimento da posição samaritana sobre a questão.
Três exceções devem ser mencionada. No período persa, uma guarnição judaica fora estabelecida em Yeb ou Elefantine (agora Aswan) no Nilo. Essa guarnição tinha um culto um tanto sincretista, incluindo não apenas o Deus de Israel, mas, também, alguns deuses locais. Seu templo no Egito incluía sacrifícios oferecidos ao Deus de Israel, que era o maioral do panteão deles. Esse culto foi, provavelmente, um remanescente da adoração sincretista dos bamot (“lugares altos”) dos tempos do Primeiro Templo.
Um segundo lugar cúltico egípcio para o Deus de Israel é o tão falado Templo de Onias em Leontópolis. Fundado nos meados do segundo século A.E.C., esse templo fora provavelmente edificado como o resultado da contenda mortal entre candidatos ao sumo sacerdócio em Jerusalém. Seus sacerdotes eram sadoquitas, e fora construído nos moldes do Templo de Jerusalém. Não há razão para duvidar de sua adoração exclusiva ao Deus de Israel, especialmente se as tradições talmúdicas forem aceitas.
Um terceiro exemplo é o templo samaritano no Monte Gerizim. De acordo com um relato de Josefo, cuja veracidade tem sido questionada por muitos estudiosas, esse templo também foi fundado como o resultado de contenda quanto ao sacerdócio. Manassés, um irmão do sumo sacerdote Jadua, casado com Nikaso, filha de Sambalate, governador de Samaria. Por cause de seu casamento, Manassés foi expulso de Jerusalém. Seu sogro construiu para ele no Monte Gerizim (nos dias modernos, Nablus, na Cisjordânia) com a permissão de Alexandre O Grande. Parece, pelo menos, que essa data pode ser aceita para a construção do templo samaritano. Confirmação adicional vem do papiro de Wadi el-Daliyeh que ajuda a construir uma cronologia dos governantes samaritanos.
Os detalhes exatos dados por Josefo em relação à motivação da fundação deste templo pode ser fictícia. Contudo, ocorreu, certamente, após o sucesso dos judeus em construir o Templo de Jerusalém. Afinal, a tentativa dos samaritanos de se juntar à construção do santuário de Jerusalém tivera sido recusada pelas autoridades judaicas. Essa rejeição deve ter resultado na fundação de um templo independente.
É impossível reconstruir o culto do templo samaritano, desde que os textos que temos são tempos muito tardios. Parece, entretanto, que apenas o Deus de Israel teria sido adorado ali, e que o sistema sacrificial teria sido muito mais de acordo com os códigos cúlticos bíblicos conforme encontrado na versão samaritana do Pentateuco.
O Cânone Bíblico
Uma importante área de divergência entre os judeus da Segunda Comunidade dis respeito ao cânone bíblico e ao texto. Por cânone, referimo-nos àqueles livros que são considerados autoritativos e sagrados.
Os fariseus aceitavam, provavelmente, como santificados e autoritativos, a Torah, os Profetas e uma parte dos Escritos. Somente em tempos mishnaíticos, no entanto, fora tomada a decisão final quanto aos Escritos. É dito pelos Pais da Igreja que os saduceus aceitavam apenas o Pentateuco, todavia não há nenhuma evidência para esta afirmação. Parece que os saduceus teriam compartilhado, ao menos, do cânone dos fariseus. É, também, possível que eles tenham aceitado ainda mais livros como autoritativos. O cânone dos judeus helenísticos de Alexandria, como evidenciado pela Bíblia Grega (e seguido na tradição católica) inclui os livros classificados como apócrifos. Aqueles livros adicionais foram escritos durante os períodos romano e helenístico, alguns em hebraico, e, a maioria em grego. Alguns dos livros apócrifos são representativos do ponto de vista dos judeus helenísticos de Alexandria. É, portanto, possível que os saduceus helenizados possam, também, ter sido atraídos por aqueles livros e os incluídos no cânone deles. Alguns dos livros apócrifos, por outro lado, foram escritos nos últimos dias do Segundo Templo, parecendo, então, haver pouca chance dos saduceus ter considerado aquelas obras como canônicas.
Os samaritanos consideravam como canônico apenas o Pentateuco. Alguns estudiosos têm argumentado que esse cânone limitado mostra que os samaritanos romperam com o judaísmo normativo antes dos Profetas ter sido canonizado. Esta pretensão, contudo, tem sido seriamente contestada.
Em Qumran, todos os livros bíblicos foram encontrados, exceto Ester. Há, também, diversos livros apócrifos e pseudoepígrafos. O problema é que não podemos ter certeza se a seita do Mar Morto tinha um conceito de cânone. Alguns argumentam que, em Qumran, o cânone estava aberto, com novos livros sendo acrescentados às vezes. Em nosso ponto de vista, havia um cânone em Qumran, incluindo todos os livros do nosso cânone, mas, talvez, incluindo, também, um ou dois livros adicionais.
O Calendário
Ainda, um outro aspecto de divergência entre as seitas, naquelas época, é o calendário. Na história das religiões, reforma ou variações no calendário têm desempenhado um papel em cismas religiosos. Mencionando alguns casos familiares, há a mudança cristã da ênfase do sábado para o domingo, a intercalação do mês no calendário muçulmano e as variações entre as igrejas ocidentais e orientais no cristianismo. Tal mudança, ou variação, aparece na Bíblia, e não surpreender-nos-á ver uma ver que uma disputa por calendário desempenha uma parte na segunda comunidade também.
Jeroboão, governante do Reino do Norte de Israel (928-907 A.E.C.), já tivera tentado usar uma mudança de calendário como parte de seus esforços para separar o povo do Reino do Norte de seus correligionários judeus. Com este fim, ele mudou a celebração de Sukkot do sétimo para o oitavo mês. Ainda que este ajustamento possa estar mais de acordo com as realidades agriculturais do norte, com seu clima um pouco mais frio do que no sul, não muda o fato que seu propósito era completar a mudança de lealdade do santuário em Jerusalém para o de Betel e de Dã para solidificar a sua estrutura política.
Nos tempos do Segundo Templo, o problema maior se remete se usar uma série de doze meses lunares ajustados periodicamente com uma intercalação de um décimo terceiro a fim de compor um ano (lunar-solar) ou usar um calendário fixado com meses de 30 e de 31 dias, em um total de 12, que comporiam um ano solar. Embora a tradição judaica assume que o primeiro era o antigo calendário israelita, e que o último era uma inovação, nada a ver com o anterior, alguns estudiosos têm defendido a interpretação menos comum que fora o mês lunar que foi a inovação. Em todo caso, o calendário dos fariseus deve ter sido o lunar-solar, enquanto a seita do Mar Morto e os livros pseudoepígrafos de Jubileus e Enoque, ambos encontrados na biblioteca de Qumran, seguiam os calendários solares. (Não podemos ter certeza quanto aos saduceus). É possível que esse calendário solar tivesse como intenção assegurar que os festivais não caíssem no sábado, pois isto geraria diversos problemas em relação a observância doméstica e do templo.
Uma disputa de calendário relacionada diz respeito à data do festival de Shavuot. A Bíblia ordena que os 49 dias sejam contados a partir do “dia após o sábado” (Lv 23:15). Os fariseus, de acordo com fontes tardias, usou “sábado” aqui, baseado no contexto, significando o primeiro dia da Páscoa (um dia de descanso, ou “sábado”); assim, o quinquagésimo dia após a Páscoa é a data de Shavuot. Os outros grupos usaram esta passagem se referindo ao sábado após o primeiro ou ao último dia de Páscoa. Que esses calendários variantes foram realmente colocados em prática por diferentes grupos é demonstrado pelo Comentário de Habacuque de Qumran, que conta como o sumo sacerdote de Jerusalém confrontou o líder da seita sobre o dia que os sectários observavam como o Dia da Expiação.
Urbanização
O caráter de diversos grupos foi também influenciado pelo grau de urbanização de cada grupo aceito, em uma época em que a migração para grandes cidades era um evento comum da realidade econômica. Nos tempos do Segundo Templo, nem todos ficaram contentes com a urbanização crescente e as mudanças introduzidas na estilo de vida agricultural. Muito tempo depois, o Talmude relembra que os sinais de urbanização foram roubos, imoralidade sexual e estelionatos. O ambiente rural foi considerado como propício para os estudos e o pietismo que se foram. Essa atitude parece ter se propagado nos períodos romano e helenísticos, na medida em que os costumes daquelas sociedades estrangeiras, com seu desdém pela sobriedade e moderação, tornavam-se cada vez mais familiares para os judeus da Terra de Israel. Infelizmente, os sacerdotes saduceus, com o tempo, parecem se ter entregues totalmente às seduções e atrações da cidade. Os fariseus, apesar do apoio generalizado que eles tinham entre os habitantes das cidades, devem se ter refreados dos exageros. Foi a seita do Mar Morto que tornou clara a sua oposição em seus escritos, atacando o establishment de Jerusalém por causa de fornicação, materialismo e impureza. Essa oposição ficou, sem dúvidas, manifestada no estilo de vida do grupo que estabeleceu seu centro em Qumran. Para termos ideia, a seita permitia o uso do vinho, conquanto possamos assumir que partilhavam da visão bíblica de que o vinho tem de bebido com moderação. Não obstante, a seita tinha fisicamente se realocado para um ambiente em que manter contato com os males do urbanismo se tornara impossível.
De particular importância é visão da seita do Mar Morto quanto a propriedade. Embora não rejeitando o conceito de propriedade privada, tão importante à sociedade almejada pela Bíblia Hebraica, a seita requeria que o uso de toda propriedade pertencente aos membros fosse comum. Em outras palavras, o uso de qualquer propriedade era compartilhado, embora a propriedade continuasse nas mãos do indivíduo. Certamente, uma abordagem como esta eliminaria a necessidade de acumular grandes quantidades de riqueza pessoal, frequentemente em detrimento daqueles menos favorecidos. Mais importante, constituía uma negação forte da atitude materialista tão prevalecente nas crescentes cidades helenizadas.
Já ressaltamos que não podemos determinar com precisão se os essênios e a seita dos Manuscritos do Mar Morto eram uma e a mesma. Os essênios, como descritos por Filo e Josefo, foram ainda mais longe do que os textos do Mar Morto. Eles negavam a propriedade privada e defendiam todo bem comum. De fato, ver-se-ia tal abordagem, posteriormente, na igreja emergente. Os essênios claramente abominavam o materialismo urbano, e muitos são descritos como tendo evitado cidades por causa da imoralidade de seus habitantes.
Sabemos por Josefo, e pelo Novo Testamento, que, no período em questão, haviam também pietistas quase herméticos que abandonaram a sociedade e se separaram de seus males, mas devemos enfatizar que este fenômeno é muito diferente desses grupos organizados.
Temos conjecturado a seita do Mar Morto em grande medida por seu caráter antiurbanista.
Sendo assim, apesar de sua organização sectária, e de seu sistema econômico particular, o assentamento em Qumran, e a sua ramificação em Ein Fashka, podem ser, de certa forma, considerados como uma cidadela, ou o que pode ser chamado em Israel hoje de cidade em desenvolvimento.
Deus, Homem, e História
Uma outra área em que diversas seitas discordavam diz respeito a teologia e o futuro do homem. A Bíblia fala de uma existência semelhante à do Hades no Sheol após a morte. Este tipo de conceito de vida após a morte não faz distinção entre corpo e alma, pois a localização do Sheol é abaixo do chão, e este é o lugar onde os judeus têm sempre enterrado os seus mortos. De fato, a Bíblia considera o indivíduo como um ser unitário, não fazendo nenhuma distinção entre o aspecto físico e espiritual.
Quando os judeus estavam envoltos no ambiente helenístico, os conceitos gregos de corpo e alma começaram a ter uma influência no judaísmo. Se pudermos confiar em Josefo, os saduceus, o mais helenizado grupo judeu, rejeitavam este conceito, e, por conseguinte, mantinham o conceito bíblico de vida após a morte. Enquanto é realmente difícil de acreditar que os saduceus helenizados tenham rejeitado este conceito helenístico, é possível. Afinal, os saduceus eram um grupo muito conservador em assuntos religiosos. Os fariseus, gradualmente aceitando a divisão grega de corpo e alma, modificaram seu conceito de vida após a morte. Eles chegaram a crer que o corpo cessa de funcionar após a morte, enquanto a alma intangível continuava a existir. Durante esta vida após a morte, as pessoas são recompensadas ou punidas. Eventualmente, os justos serão ressuscitados para vida eterna no fim dos dias. As interpretações dos essênios, como descritas por Josefo, são praticamente as mesmas dos Fariseus. A seita do Mar Morto não tinha problema com vida após a morte, poies eles acreditavam que eles estavam vivendo iminência de era futura. Eles ainda estariam vivos no alvorecer da era messiânica. Não obstante, eles parecem ter interpretado o ser humano no sentido bíblico antigo, não fazendo nenhuma distinção entre corpo e alma.
Interessante nesta conexão é a questão sobre destino e livre-arbítrio do homem. Josefo diz que os saduceus acreditavam na liberdade absoluta do indivíduo, com a providência não desempenhando nenhum papel nas questões humanas. Os essênios, de acordo com ele, acreditavam que tudo está “no controle do Céu.” Os fariseus são descritos como ocupando uma posição intermediária, acreditando que o livre-arbítrio do homem interage com a força da providência divina. Alguns estudiosos têm questionado esta esquematização, acreditando ser influenciada pelo conhecimento de Josefo da filosofia grega. Contudo, é importante destacar que os Manuscritos do Mar Morto negam o livre-arbítrio do homem, e aceitavam predestinação. Esses textos chegam ao ponto de culpar as pessoas por causa de suas transgressões, e, até mesmo, afirmam que é predestinado se alguém pertence aos “filhos da luz” ou aos “filhos da escuridão”. Aparentemente, junto com os constantes apelos da seita por arrependimento, tem-se a ideia de que apenas aqueles a quem a providência tem designado são capazes de arrependimento.
À luz de desenvolvimentos posteriores, o messianismo é de interesse primordial. À medida que a crença messiânica é sacramentada nas Escrituras Hebraicas é assunto de grande controvérsia. Por um lado, já no tempo de Isaías, há o conceito que eventualmente haverá um rei davídico futuro que terá qualidades excelentes e cujo reino instaurará um período de grande tranquilidade e paz. Ademais, os profetas predisseram um grande dia do Senhor em que todos os malfeitores receberão o que merecem. Esse dia do Senhor será acompanhado pela terra com tremores e eventos cataclísmicos. Os seguidores do caminho de Deus reinarão supremos em seu final. Finalmente, no período do Segundo Templo, como mostrado pelo Livro de Daniel, houve um conceito apocalíptico de que a libertação de Israel viria somente após uma sucessão de reinos divinamente apontados. Depois, então, a era messiânica alvoreceria.
Essas ideias representam um complexo de conceitos, e devemos assumir que no período do primeiro Templo houvera interpretações e conflitos diferentes em relação a eles. Quanto a Segunda Comunidade, felizmente, podemos ser mais específicos. Primeiro, temos diversas obras apocalípticas sectárias, tais como são encontradas nos apócrifos e pseudoepígrafos. Parece que para muitos daqueles escritores o que importava era a ideia da chegada da era messiânica e não necessariamente o Messias pessoal. Os grupos apocalípticos enfatizavam a guerra e a punição dos malfeitores que inauguraria o vindouro fim dos dias, enquanto os fariseus, podemos presumir, enfatizavam o reino utópico a ser estabelecido pelo Messias Davídico.
Uma outra posição foi tomada pela seita do Mar Morto e por alguns textos pseudoepígrafos. Eles acreditavam que a era vindoura, de fato, começaria com uma grande guerra e punição, além de ver a liderança do povo nas mãos de duas personagens messiânicas. Um messias sacerdotal precederia e reestabeleceria o culto sacrificial em Jerusalém. Conjuntamente, um messias davídico governaria sobre o reino temporal reestabelecido. A precedência dada ao messias sacerdotal, ou aarônico, foi, sem dúvidas, o resultado das origens sacerdotais e a dominância do grupo do Mar Morto que nós já temos discutido.
Muitos estudiosos têm interpretado que os saduceus não acreditavam de modo nenhum em messianismo. A conclusão deles é baseada na negação saduceia do destino, providência divina, imortalidade da alma e ressurreição. Por outro lado, os saduceus podem ter aderido mais proximamente às fontes do Primeiro Templo e esperado um desenvolvimento mais natural do eventos que levariam à restauração da antiga glória judaica.
De fato, a questão do messianismo vem realmente à tona na ascensão do cristianismo. O cristianismo primitivo parece ter combinado a visão apocalíptica das seitas com uma forte ênfase no Messias Davídico, aparentemente o sinete da abordagem farisaica. A partir desta combinação emergiu um conceito de que a era messiânica estava, de fato, iminente quando Jesus foi identificado com o Messias Davídico. Quando a sua missão falhou em trazer os resultados esperados preditos pelos profetas hebreus, o cristianismo nascente revisou aquelas profecias por meio de exegese, e, assim, foi capaz de preservar o conceito de messianidade de Jesus, apesar do desapontamento. O cristianismo foi mais além e viu o Messias como um ser divino, ou semidivino. Tão logo, o cristianismo aboliu a lei judaica e deu os primeiros passos que o separariam, definitivamente, do judaísmo. Quando este rompimento tornara-se completamente visível, os cristãos compreenderam o imenso abismo que os separavam do judaísmo e voltaram a sua missão aos gentios A visão cristã de que a lei judaica tivera sido abolida serviu para tornar o cristianismo gentio uma possibilidade realista.
Relacionamento entre As Seitas
Palestina era uma pequena região onde a maioria da população vivia uma vida rural simples. Em contrapartida, o judaísmo é religião comumente prática, necessitando cooperação e consenso a fim de cumprir obrigações religiosas. Por esta razão apenas, divisões sectárias podem se tornar fontes de tensão e exclusão dentro de uma comunidade. Acrescente a isso um santuário sacrificial central, cujo o controle vários grupos poderiam disputar, e aqui estão os ingredientes necessários para a extensão do sectarismo do campo intelectual e filosófico em conflito real.
Por outro lado, a herança nacional comum e um inimigo estrangeiro comum frequentemente estimulavam a cooperação e a superação de suas divisões internas. Ademais, a maioria das pessoas pertenciam à classe chamada pelo Talmude de ‘am ha ‘ares, o povo comum. Esta classe deve ter estado sem consciência das questões particulares que separavam as diversas seitas.
Relações entre as seitas no período greco-romano pendulavam de discordância cordial até conflito armado. Daremos alguns exemplos.
A revolta macabeia pode certamente ser vista com iniciando com uma guerra civil entre facções pró e antihelenísticas na Judeia. Esta guerra civil eventualmente resultou na usurpação do sumo-sacerdócio e dos poderes reais pelos macabeus e por seus descendentes hasmoneus. Provavelmente como reação a esta usurpação que os sacerdotes sadoquitas pietistas se moveram para o deserto para viver em Qumran.
Os fariseus eventualmente protestavam contra a usurpação do sacerdócio e do reino por parte dos hasmoneus, e isto resultou no assassinato de muitos fariseus pelo rei hasmoneu. Ao mesmo tempo, os governantes hasmoneus guerrearam contra os samaritanos e destruíram o templo samaritano no Monte Gerizim.
Havia muitas diferenças entre os fariseus e os saduceus no tocante aos serviços do Templo. Sabemos de contendas e rixas posteriores no Templo em relação àquelas práticas. Não há motivos para duvidar que tais conflitos não eclodiram em tempos mais antigos também.
Por outro lado, a Mishnah retrata diálogos cordiais entre fariseus e saduceus em relação à questão da lei judaica. Questões similares estão irenicamente registradas no documento MMT [Carta Haláquica ou Manifesto Sectário] de Qumran. Uma vez mais, não há motivos para duvidar que tais discussões aconteceram, especialmente em tempo quando tensão eram facilitadas por uma razão ou por outra. Relatórios talmúdicos, no entanto, descrevem os boetusianos como sabotando a proclamação rabínica da lua nova em uma tentativa de confundir o calendário farisaico que os boetusianos consideravam como ilegítimo. Devemos lembrar, todavia, que o desgosto rabínico pela casa sacerdotal de Boetus pode ter comprometido suas opiniões quanto aos boetusianos.
Relações entre judeus e os cristãos primitivos parecem ter sido amigáveis no começo. Muitos diálogos pacíficos relacionados a assuntos religiosos estão descritos nos relatos do Novo Testamento. Quando as divergências entre o cristianismo e o judaísmo se tornarem imensamente claras, judeus e cristãos se voltaram uns contra os outros. Isto já é evidente na oposição sacerdotal a Jesus. Por volta do ano 70 E.C., a comunidade cristã de Jerusalém veria seu destino nacional como separado dos judeus. As conotações messiânicas da revolta contra Roma (sobre a qual falaremos posteriormente) tornaram impossível aos cristãos participarem completamente na revolta.
Qual foi o impacto desse conflitos na vida diária? Primeiro, sabemos que alguns desses grupos, a saber, os fariseus e a seita do Mar Morto, tinham leis de pureza especiais que requeriam deles comer somente alimentos preparados de acordo com a regulação. Saduceus teriam observado leis similares em relação ao comer das ofertas do Templo. Esses grupos se abstinham do alimento dos ‘am ha’areṣ, que não eram cuidadosos em relação à pureza ou aos dízimos. As consequências sociais dessas diferenças são prontamente aparente. O que necessita ser enfatizado é que, à exceção do sacerdócio, poder-se-ia juntar-se a um outro grupo simplesmente adotando as regras da seita. Aqueles grupos não eram herméticos.
No tocante a casamento, começando nos anos primitivos da segunda comunidade, a concepção genealógica do povo judeu não lhes permitia casar com não judeus. Portanto, casar com samaritanos era proibido, e continua assim até hoje.
No caso do cristianismo, o assunto é mais complexo. Judeus e cristãos judeus provavelmente se casavam entre si nos primórdios do cristianismo. Uma vez que o cristianismo gentio se tornou a norma, judeus definiram os cristãos como não judeus e proibiram casar com eles. Além desta, não sabemos de nenhuma outra proibição quanto a casamento entre as seitas. Por outro lado, a tendência das pessoas a se casarem dentro de seu próprio grupo socioeconômico deve ter sido como nos dias de hoje. Realmente, famílias sacerdotais saduceias e aristocráticas tendiam a se casar entre si naquela época.
Alguns judeus, aqueles defendendo visões dos helenizadores extremos, desejando assimilação completa com o mundo greco-romano convencional, teriam ignorado proibições matrimoniais entres as seitas. Alguns poucos indivíduos se casariam com outras seitas também por razões puramente pessoais.
Havia, como já mencionamos, um certo grau de discordância acerca das datas festivas. Não podemos ter certeza sobre quais festas eram seguidas, exceto que os saduceus devem ter controlado a adoração no Templo por muito tempo naquela época. Fontes rabínicas e Josefo, no entanto, retratam os fariseus como estando no controle, pelo menos no tempo de Salomé Alexandra (76-67 A.E.C.). Este relata poder estar romantizado, pois é difícil ver os fariseus aceitando a dominação farisaica do Templo. Não é impossível, todavia, que a popularidade imensa dos fariseus lhes tenha dado considerável apreciação sobre os poucos populares oficiais saduceus do templo.
Apesar de relatos de tensões, não devemos perder de vista a amplitude desses conflitos. Nossas fontes tendem a esclarecer alianças e discordâncias. O fato é que havia afinidades consideráveis entre todo os grupos, pois eles compartilhavam muitas práticas e princípios religiosos e uma nacionalidade comum.
Governo Estrangeiro e Revolta
Nos últimos anos da segunda comunidade, quando o governo romano se tornava cada vez mais intolerante, diferentes grupos revolucionários começaram a surgir. Dominação estrangeira não era nenhuma novidade para os judeus. Nos tempos do Primeiro Templo, nunca cessara de haver discordâncias sobre como se relacionar com os impérios dominantes. Frequentemente, assumia-se que uma revolta contra o poder mesopotâmio seria apoiada pelo Egito, ou vice-versa.
Mais frequentes do que não, não passavam de vãs esperanças. Tal pretensão foi o que levou, em partes, a rebelião de Zedequias contra a Babilônia, que resultou na destruição da nação e do Templo em 586 A.E.C. De fato, consegue-se discernir, nesse tempo, partidos pró-Egito e pró-babilônia. O primeiro aconselhou rebelião, esperando apoio do aliado Egito. O último, incluindo o profeta Jeremias, aconselhou o rei a pagar tributos à Babilônia. Afinal, eles razoaram que enfrentar a dominação militar ou estrangeira era nada mais que um pequeno preço a pagar pela autogovernança interna e pela liberdade em busca de seu antigo estilo de vida.
Na revolta macabeia, as linhas foram traçadas mais claramente. A rebelião começara em uma guerra civil em relação o quanto a judeia estava sendo helenizada. Havia, no princípio, os helenizadores e os seus oponentes. Uma vez que Antíoco assumiu, proibiu certas práticas judaicas básicas e profanou o Templo, os judeus apoiaram em massa a família macabeia, pondo de lado os helenizadores extremos e os exércitos da Síria selêucida. Assim, a revolta se tornou principalmente do povo judeu contra seus dominadores greco-romano.
Com Roma, a situação era muito mais complexa. Josefo fala da tão citada Quarta Filosofia (juntamente aos fariseus, saduceus e essênios). Este grupo pare ter sido idêntico aos sicários (“homens da adaga”), que desempenharam um papel muito importante na revolta contra Roma. Esses eram principalmente galileus que, sob [o comando de] Judas O Gaulonita, começaram a atacar os romanos e 4 A.E.C. Esta facção deve ter continuado suas atividades e ficado sob a liderança da mesma família até a Grande Revolta (66-73 E.C.). Eles afirmavam, continuando com a velha crença macabeia, que Israel não tinha nenhum mestre além do próprio Deus e se recusavam firmemente a aceitar a dominação estrangeira. Josefo declara que esses homens concordavam em outros aspectos com a abordagem farisaica. Deve-se ressaltar que a revolta contra Roma estava efervescendo bem no começo do século, e grupos guerrilheiros, tais como os sicários estiveram em atividade por todo esse período. A Quarta Filosofia parece, então, ser um grupo semelhante ao fariseu, especialmente dedicado à revolta contra a dominação de Roma.
Um outro grupo envolvido na rebelião era os zelotes. Alguns tentam ver os zelotes como idênticos aos sicários, mas esta interpretação é inaceitável. Afinal, o próprio Josefo era um participante na revolta e nos fornece relatos bem detalhados dos grupos revolucionários e lhes diferencia especificamente um do outro.
Os zelotes foram um grupo que se solidificaram tardiamente na revolta. Sua liderança principal vinha das camadas inferiores do Templo de Jerusalém. Realmente, foram eles que suspenderam o sacrifício por duas vezes ao dia para a satisfação do imperador romano agir como uma declaração de guerra (66 E.C.). Como os sicários, seus métodos eram terroristas. Para ambos os grupos, táticas extremas, incluindo assassinato de judeus moderados a quem eles consideravam como simpatizantes dos romanos, podem, por fim, ter levado a população, ao menos em Jerusalém,
Simeon bar Giora e João de Giscala (Gush Halav no Golan) se destacam como indivíduos que levaram facções À revolta. Ambos esses homens parecem ter sido líderes carismáticos que encabeçavam exércitos privados. Simeão se aproximava mais do método dos sicários e João dos zelotes, embora esses líderes não possam ser identificados com aqueles dois grupos. Simeão parece ter incorporado ideais messiânicos para alguns de seus seguidores, como o posterior Simeão bar Kosiba (bar Kokhba), que levou à revolta contra Roma em 132-135 E.C. João, por outro lado, parece ter sido mais moderado e mais amigável com Simeão ben Gamaliel, o líder fariseu.
Eles são mencionados por Josefo uma única vez em relação à revolta. Um certo João O Essênio aparece como um comandante revolucionário. Mesmo não havendo nenhuma outra evidência direta da participação essênia na guerra, relatos que os romanos torturaram os essênios parecem indicar que os essênios tentaram a sorte na rebelião. Para se ter certeza, Filo descrevera os essênios como pacifistas, mas devemos salientar que eles viam essa guerra como a batalha escatológica, e, portanto, não tiveram nenhum problema em participar dela.
Já discutimos acima se os essênios devem ser identificados como a seita dos Manuscritos do Mar Morto. Diversas teorias quanto a participação pela seita de Qumran na revolta têm sido propostas. O Rolo de Guerra tem sido visto como uma descrição em termos escatológicos da revolta já em andamento. Sabemos que Qumran fora destruída durante a revolta em 68 E.C.
Quem se opôs a revolta? Os líderes aristocráticos, mais provavelmente sacerdotes saduceus de alta patente, e seus apoiadores, bem como os judeus extremamente helenizados, apoiavam o governo romano, do qual, sem dúvidas, eles obtiveram vantagens comerciais e financeiras. Além disso, fariseus moderados acreditavam que era melhor se submeter à dominação militar de Roma do que se arriscarem submeter sua liberdade religiosa e o Templo à fúria do Império. Rabino Yohanan ben Zakkai, que estabeleceu uma academia em Yavneh nos momentos finais da revolta, certamente, aderiu a esta visão. Foi por consequência da tolerância farisaica do governo romano que os descendentes do Rabã Gamaliel ganharam a confiança dos romanos com o autogoverno interno do povo judeu, usualmente cunhado patriarcado.
O que surge a partir desse quadro é um alinhamento que perpassa tendências sectárias. Parece que os sicários representam aqueles seguidores da ordem farisaica que apoiaram ativamente a revolta. Isto foi em detrimento da posição mais moderada, quase pacifista, de alguns membros da liderança farisaica. Considerando que os saduceus de alta patente preferiam uma coexistência pacífica com Roma, foram sacerdotes das patentes mais baixas até as mais altas, também da ordem saduceia, que formaram os zelotes e efetivaram a declaração formal de revolta.
Enquanto o grupo sectário em Qumran parece ter ficado de fora da guerra, mesmo, por fim, sendo encurralado e destruído por ela, alguns sectários essênios estiveram ativamente envolvidos. Enquanto alguns judeus viam a revolta como a culminação dos movimentos apocalípticos dos tempos do Segundo Templo, esta, certamente, não era a visão da maioria dos rebeldes ou dos seus apoiadores entre a população. Por fim, tanto rebeldes quanto moderados tinham adeptos urbanos e rurais, ricos e pobres. Com tudo o que temos dito, muito embora, é duvidoso se a revolta conseguiu ir tão longe, na medida em que não contava com o apoio da maioria da população judaica da judeia.
Nesta pesquisa superficial, na qual temos tratado apenas poucas questões, fica claro que o judaísmo na Terra de Israel durante o período helenístico foi variado e certamente não monolítico. Esta situação continuou até a destruição do templo em 70 E.C. O Talmude afirma que a razão da destruição foi pela falta de habilidade dos judeus de operar como um povo unificado. De fato, a tradição rabínica olhava desconfiadamente para o fenômeno do sectarismo como um todo. Sua visão era que o farisaísmo, a abordagem intelectual e religiosa que os rabinos herdaram, estava em continuidade direta com a tradição oral mosaica. Do ponto de vista do judaísmo rabínico, todos os outros eram sectários. Tivera Israel aderido apenas à tradição dos fariseus, não teria havido helenização, nem revolta e nenhuma destruição. Bem como o editor deuteronomista de Reis via os infortúnios dos israelitas nos tempos bíblicos como resultante do desvio dos ensinamentos do Senhor; pois foi este desvio, na forma da rejeição da tradição verdadeira, que levou, na visão talmúdica, à destruição em 70 E.C.
Devemos questionar aqui se esta avaliação é válida. Temos visto que os problemas levantados pelos movimentos sectários no período do Segundo Templo não eram, em todo caso, novos. Em vez disso, constituem uma série de problemas não resolvidos remanescentes dos tempos do Primeiro Templo. O que era novo era o local. Israel não estava cercada pelo paganismo semítico que defendiam esses pontos. Era, agora, primariamente, uma nação de judeus na Pérsia, e, então, no mundo helenístico ou greco-romano. Este novo ambiente, cultural e historicamente, deu novo ímpeto para alguns conflitos, e modificaram outros. Em geral, todavia, não provocou os cismas; Eles já estavam presentes nos tempos bíblicos.
Por conseguinte, o sectarismo do período do Segundo Templo é, realmente, uma continuação de divisões antigas. Assim sendo, podemos falar de uma tradição normativa em qualquer momento nos tempos pré-rabínicos? Eu penso que não. Apesar do ideal rabínico, parece que o povo judeu sempre teve espaço para diferenças e dentro dele. Tais diferenças podem ser religiosas, políticas ou socieconômicas.
Foram essas divisões benéficas ou prejudiciais à vida judaica? Não há dúvidas que, do ponto de vista político ou militar, eram uma desvantagem. Tivesse o povo judeu sido unificado, teria havido uma chance melhor de resistir por mais tempo contra Roma, embora não restam dúvidas de que os homens e recursos romanos teriam eventualmente saído vitoriosos.
Mas o judaísmo não significava ser simplesmente uma entidade política ou militar. Era e é um modo de se relacionar com Deus e com o homem, de trazer significado e propósito à existência humana, e de explicar o mundo ao redor de nós. A emergência do povo judeu no período helenístico era, de certa forma, análoga à sua emergência nos tempos modernos. O mundo no qual os judeus viviam mudara surpreendentemente. Este novo mundo intensificou os velhos conflitos. Ao mesmo tempo, o ambiente helenístico criou uma necessidade maior de responder as questões urgentes que o judaísmo levantava. De tal forma, esse era um período em que o judaísmo não estava certo em que direção tomar. O que o judaísmo e o povo judeu necessitavam era, ignorando as consequências dos velhos conflitos, ver como as várias abordagens funcionariam nesta nova era. Assim, as seitas estavam preparando terreno do qual emergiria uma resposta para qual caminho o judaísmo tomaria no período pós-70 E.C.
Foi a destruição em 70 E.C. que servia como momento para tomar uma decisão. Deve-se relembrar que a destruição do templo não era apenas uma tragédia religiosa. Quando Jerusalém e o Templo caíram, o país inteiro tivera sido devastado por anos de guerras e saques. A ordem socioeconômica, política e religiosa como um todo fora afetada. Finalmente, os conflitos que efervesciam nos tempos do Segundo Templo precisam ser resolvidos. Foi aqui que a história desempenhou o seu papel usual. Decidiu.
O apocalipticismo e a abordagem de tais grupos como os essênios e a seita dos Manuscritos do Mar Morto já tinham servido como o pano de fundo para o cristianismo emergente. Afinal, esses grupos viam o fim dos dias próximos. Suas energias e muitos de seus ideais, a partir de um ponto de vista histórico, encontramo seu caminho na igreja cristã que nascia, e que estas abordagens não deviam mais ser consideradas judaicas.. A base da vida judaica confrontaria esta abordagem novamente apenas com a premissa de falso—movimentos messiânicos, mas notavelmente Shabbatai Zevi, ou na forma da pregação conversibilista cristã.
O movimento saduceu estava tão arraigado na aristocracia sacerdotal e na adoração no Templo, que quando o Templo foi destruído, e a ordem social dizimada, o partido saduceu, sacerdotal, não tinha como perdurar. Porventura, a ênfase deles na primazia do Templo tornara suas convicções desconexas da nova situação. Talvez tenha sido a vitória religiosa dos fariseus, e o reconhecimento consequente de seus poderes políticos (que mencionaremos depois), que enfraqueceram ainda mais os saduceus. Há algumas referências a saduceus, nos tempos pós-70, na literatura talmúdica, mas, como dissemos, estas são muitas vezes o resultado de censuradores cristãos na Idade Média que mudaram os termos “cristão” ou “herético” para “saduceus.”
O Que Falar dos Fariseus? Parece que uma combinação de suas visões políticas e religiosas lhes tornara os únicos aptos a servir como continuadores da tradição judaica. Na frente política, eles sempre aconselharam cooperação com as autoridades existentes, e foi por meio deles, após a catástrofe de 70, que os romanos estabeleceram um sistema de governo autônomo judeu conhecido como o Patriarcado.
Na frente religiosa, de todas as seitas da Segunda Comunidade, os fariseus pareciam os mais aptos a conquistar a lealdade do povo comum: ‘am ha’arets. Mais importante, a abordagem farisaica para com a halakhah, a lei judaica, era flexível. Por permitir a mudança conforme o momento, ao menos em termos de aplicações práticas, eles construíram um sistema vívido, negando a visão paulina que a lei judaica é um fardo insuperável. Desse modo, o judaísmo nunca teve de enfrentar os problemas que poderiam ter ocorrido, se uma abordagem literalista para com a lei judaica tivesse sido a norma. No que diz respeito às questões teológicas, as crenças farisaicas já estavam alinhadas com a maioria dos judeus, pois em tempos de angústia, o povo judeu preferia acreditar em tais ideias como vida após a morte e a era messiânica. Se a vida neste mundo não fosse o que deveria ser, eles seriam recompensados na próxima vida pela sua obediência neste mundo. Foi assim que, após a destruição, a abordagem farisaica, como interpretada pelos rabinos da Mishnah e do Talmude, prepararam o terreno para o que chamamos de judaísmo normativo ou rabínico. Esta herança farisaica na Idade Média, quando o judaísmo encarou os desafios dos mundos cristão e islâmico, fora novamente capaz de prevalecer e florescer por meio do processo automodificação e adaptação orgânico, sutil e imperceptível. Judaísmo rabínico teve novamente de enfrentar valores alienígenas no mundo moderno. Ver-se-á, ainda, como a herança dos fariseus continuará, mas não há dúvidas de que continuará.
O Surgimento da Igreja Primitiva
Os primeiros anos da igreja cristã se deram durante este período de declínio e agitação. Naquela época, o que posteriormente seria chamada de “igreja” era, na realidade, uma seita judaica, e é neste contexto que é tratada aqui. As condições políticas e econômicas na judeia durante a carreira de Jesus, e no período da igreja emergente, tendiam a encorajar o surgimento de movimentos religiosos. Ademais, a multiplicidade de seitas e movimentos no Judaísmo do Segundo Templo deixou um rico legado que pode servir como a base para o movimento apocalíptico cristão. Esses dois fatores juntos constituíram a principais influências no surgimento deste novo grupo religioso, e no cisma que eventualmente se seguiria.
De fato, o cristianismo estava firmemente ancorado na herança do sectarismo do Segundo Templo. Diversas seitas, algumas das quais estão representadas no corpo dos materiais descobertos nas cavernas de Qumran, nos contam do apocalipticismo extremo de alguns grupos judeus naquela época. Esses grupos esperavam pela revelação imediata de um messias que lhes redimiria de seus infortúnios e tribulações. Conforme o tempo passava, e as condições políticas e econômicas pioravam, esses grupos se tornaram cada vez mais convencidos que esta libertação messiânica seria acompanhada por um cataclismo. Quando o cristianismo veio à tona no primeiro século E.C., seus adeptos viam a si mesmos como vivendo no período do cumprimento das visões escatológicas bíblicas. Identificaram Jesus como o messias davídico que lhes conduziria na destruição eventual de todo o mal.
Qualquer estudo da carreira de Jesus e do surgimento da igreja cristã deve considerar que a Palestina naquela época era o cenário de personagens proféticas e messiânicas ocasionais. Dentre esses claramente estava João Batista, que, de acordo com o Novo Testamento, era o mestre e a inspiração de Jesus. João pregou o arrependimento, bem como a necessidade do batismo (imersão) no Rio Jordão como uma experiência única designada a trazer o verdadeiro arrependimento (João foi morto c. 29 E.C. por ordem de Herodes Antipas, filho de Herodes, o Grande, que governou a Galileia e Pereia na Transjordânia,4 A.E.C.–39 E.C.). Declarações a respeito de Jesus encontradas em certos escritores modernos dizendo ele estudou entre os essênios ou os sectários do Mar Morto devem ser rejeitadas como puramente especulativas. Em vez disso, Jesus foi afetado, como foi o cristianismo primitivo, por uma variedade de ideias no ar dentre os diversos grupos sectários, que, por acaso, só alguns textos sobreviveram. Os materiais de Qumran, se compreendidos corretamente, fornecem este pano de fundo para o cristianismo, mostrando que foi fundamentado em um judaísmo como este, não como o dos fariseus, que a igreja foi edificada. Todavia, ao mesmo tempo, algumas tendências farisaicas tiveram um grande impacto na igreja, como as questões sectárias do Segundo Templo tiveram no judaísmo rabínico.
Os seguidores próximos de Jesus nos primórdios de sua carreira, e pouco depois, se reuniram em Jerusalém e formam, de acordo com Atos dos Apóstolos, um pequeno grupo que procurou viver como judeu e aceitar a messianidade de Jesus. Foi só mais tarde que a noção da divindade de Jesus surgiu, no final do processo redacional do Novo Testamento na segunda metade do primeiro século E.C. Este grupo surgiu a partir de um grupo de judeus procurando propagar a crença em Jesus como messias para um grupo apostólico buscando converter o mundo. Seguindo a liderança de Pedro, fora Paulo que convencera a igreja nascente a formalmente se abrir aos gentios convertidos e trouxe a noção de uma missão aos gentios, transformando o cristianismo no processo.
A separação entre judaísmo e cristianismo não surgiu simples ou rapidamente. Foi um processo complexo, que levou cerca de cem anos, começando na crucificação, e que tem diferentes causas e efeitos, dependendo se é olhado do ponto de vista do judaísmo ou do cristianismo. Além disso, a questão do status jurídico como visto através dos olhos dos romanos também tinha algo a ver com este problema.
Do ponto de vista do cristianismo, o cisma não é difícil de traçar. No mais antigos textos evangélicos que relatam Jesus debatendo questões da lei judaica com os fariseus, nenhuma hostilidade é observada. Diz-se que a crucifixão foi encabeçada pelos romanos com o apoio de alguns sacerdotes (aparentemente helenizados). Quando traçamos a história das tradições do Novo Testamento, elas vão desde disputas com fariseus, e sacerdotes chefes, as polêmicas com os judeus e o judaísmo, da noção de alguns judeus como inimigos de Jesus à demonização do povo judeu como um todo. Em algum momento, no primeiro século, os redatores do Novo Testamento decidiram claramente que eles não faziam mais parte do povo judeu. Consequentemente, eles descreveram Jesus como discutindo com todos os judeus, não somente alguns, como seria normal em uma discussão judaica interna. Uma vez que os cristãos passaram a ver os judeus como o “outro”, em pouco tempo se criou a ideia de que os judeus eram todos responsáveis pela rejeição de Jesus, e, portanto, pela falha de sua missão messiânica se cumprida.
Do ponto de vista do judaísmo, a questão é mais complexa. Por esse tempo, o judaísmo tanaítico já era a forma dominante de judaísmo, pois os fariseus já tiveram emergido da revolta como a principal influência dentro da comunidade judaica. Após a destruição, os tanaítas reconheceram imediatamente a necessidade de padronizar e unificar o judaísmo. Um dos primeiros passos foi padronizar as Dezoito Bênçãos que, junto ao Shemah, constituía o núcleo de orações diárias. Ao mesmo tempo, eles expandiram uma antiga bênção para incluir os minim, judeus com crenças incorretas, que, nesse período, dizia respeito aos primeiros cristãos judeus. Além disso, os tanaítas promulgaram leis destinadas a separar os cristãos judeus da comunidade, proibindo comércio e outras inter-relações com eles.
Desse momento em diante, é possível traçar o crescimento do processo de separação a partir do fim do primeiro século E.C. até o período da Revolta de Bar Kokhba (132–135 E.C.), o qual os tanaítas proibira os escritos dos cristãos primitivos, declarando que mesmo eles possuindo rolos da Torah, ou textos com nomes divinos, tais textos não têm santidade nenhuma. Esta foi claramente uma polêmica contra os evangelhos que deviam circular de alguma forma, ainda que pré-redacional, naquele tempo.
No tempo de Paulo, c. 60 E.C., a decisão de abrir [as portas de] o cristianismo aos gentios entrou em vigor, e os tanaítas se viram gradualmente encarando uma igreja cuja os membros não eram judeus do ponto de vista da halakhah. Para os Rabinos, esses não eram judeus com visões incorretas sobre o messias. Eles eram gentios que afirmavam ser o verdadeiro Israel. No período de Bar Kokhba, este processo estava encerrado. O cristianismo gentio cresceu exponencialmente, e, agora, era, virtualmente, a forma única de cristianismo que os rabinos se deparavam. O cristianismo judeu decaiu. Então, os rabinos denominaram os cristãos de noṣerim (“nazarenos”), e lhes consideraram como um grupo religioso separado e alienado.
O terceiro ponto de vista, o dos romanos, também pode ser traçado. Os romanos, em um primeiro momento, consideraram os cristãos parte do povo judeu. Como o cristianismo se espalhou e tomou uma identidade claramente diferente, fato aceito tanto por judeus quanto por cristãos, o Império Romano modificou sua visão. O imperador Nerva (96-98 E.C.) isentou os cristãos (provavelmente incluindo os cristãos judeus) de pagar o fiscus judaicus, o imposto de capitação judaico decretado como uma punição após a revolta de 66-73 E.C. Claramente, os romanos, agora, consideravam os cristãos como um grupo separado. O caminho estava pavimentado para a legitimação do cristianismo como uma religião lícita. O declínio dos antigos cultos pagãos, junto ao enorme sucesso do cristianismo, acabariam por levar à aceitação da nova fé como a religião oficial do Império Romano em 324 E.C.
As Relações Judaico-cristãs nos Primeiros Séculos
Como judeus e cristãos se relacionaram uma vez que a ruptura final tinha acontecido? Várias formas de evidência para essa pergunta existe, das quais todas apontam para uma deterioração das relações e um aumento da hostilidade. Os primeiros dias do cisma foram marcados por questionamentos e debates. Isso fica claro a partir dos relatos tanto na literatura rabínica quanto nos escritos dos pais da igreja. Judeus e cristãos discutiam questões tais como a interpretação da Bíblia Hebraica e a autoridade de suas respectivas tradições. Mesmo nesta literatura, contudo, pode-se tração o aumento das tensões que, por fim prevaleceriam entre os dois grupos. Em algum momento, provavelmente relacionado com a cristianização do império no quarto século, os cristãos começaram a se aproximar de seus vizinhos judeus com um grau muito maior de antagonismo, especialmente na Palestina Bizantina. Ataques físicos contra os judeus e as suas casas de adoração não eram desconhecidos neste período. Considerando que, em tempos anteriores, havia coexistência e harmonia, no quinto século, legislação antissemita foi visível nos códigos bizantinos. Os judeus foram proibidos de construir sinagogas e estudar a Lei oral. Os judeus foram acusados de ser matadores de cristãos, e o antijudaísmo era a norma na pregação cristã.
Por volta do fim do período talmúdico, o cristianismo adotou as posições clássicas do antissemitismo que caracterizaram sua relação com os judeus na Idade Média. Os judeus foram capazes de resistir apenas por se confortarem na crença de que eles estavam corretos e de que o seu sofrimento acabaria com a redenção messiânica.
Do Templo a Sinagoga
O aspecto mais importante da transição dos períodos pré e pós-destruição foi a mudança do centro de adoração do Templo para a sinagoga. Esta mudança deve ser plenamente entendida para se compreender a essência do judaísmo rabínico. Na época do Templo, o Templo de Jerusalém era compreendido como um lugar onde a presença divina sempre poderia ser alcançada. Em outras palavras, era o local da habitação de Deus em Israel, em cumprimento à declaração bíblica “Eu habitarei no meio de vós” (Êx 25:8). Fora o desparecimento súbito deste canal de comunicação com Deus a pior das tragédias.
A questão da descontinuidade do sacrifício de animais em si é mais complexa. Com toda certeza, o sacrifício de animais era tido nos anos que antecederam a revolta e a destruição como a mais alta forma de adoração. Ainda que não fosse a única forma. Diversas evidências, incluindo a dos Manuscritos do Mar Morto, demonstram que o papel da oração estava crescendo constantemente nos tempos do Segundo Templo. Nos últimos anos do Templo, a oração encontrara tão profundamento seu lugar nos serviços do Templo que lha fora designado um lugar especial, um proseuche (um termo grego para sala de oração), no Templo de Jerusalém.
Não há nenhuma evidência para a sinagoga como uma instituição na Palestina antes do primeiro século E.C. Menções de uma sinagoga em inscrições dos tempos helenísticos na diáspora não se referem a uma área de oração (proseuche em grego), mas, em vez disso, a uma organização de comunhão judaica que administrava os interesses locais dos judeus em suas comunidades na diáspora. A sinagoga, como entendemos hoje, um lugar de oração, pode primeiramente ser observada na Palestina no primeiro século E. C. (Massada, Heródio e Gamala), e, provavelmente, em algum momento mais cedo na diáspora.
Onde os judeus oravam antes do surgimento das edificações de sinagogas? Não temos certeza. Tem sido teorizado que a sinagoga teve origem no exílio babilônico, quando os judeus tiveram que se adaptar à falta de um Templo e o sacrifício de animais. Ainda não há absolutamente nenhuma evidência, literária ou arqueológica, para esta teoria. Por outro lado, a história pós-bíblica de oração começa no início do período Helenístico, e talvez mesmo antes. Deve ter havido locais de orações, talvez em praças, mas isto é pura especulação.
Claramente, no entanto, o desenvolvimento concomitante da sinagoga como instituição, junto à ascendência progressiva da oração sobre o sacrifício como uma forma de adoração, preparou o judaísmo para a nova situação que a destruição do Templo traria. Quando o Templo deixou de existir, sua substituição já tinha sido criada. Desse momento em diante, as orações diárias servem no lugar do sacrifício, e a sinagoga, o “Templo em miniatura”, substitui o santuário central de Jerusalém.
O judeu anseia pela reconstrução do Templo e pela restauração de seu sistema de adoração. Contudo, o povo judeu está equipado com sistema de adoração portável que o acompanha em suas jornadas, e que preserva a proximidade com Deus que uma vez tivera sido simbolizada e materializada no Templo de Jerusalém.
A Redação da Mishnah
Estudiosos têm debatido por muito tempo, a natureza exata e a história do processo que levou à redação, organização e seleção da Mishnah, o documento mais importante a surgir e representar a tradição tanáitica. A Mishnah foi o único texto importante redigido no período tanaítico em si, embora outros textos editados posteriormente no período amoraíta (200–500 E.C.) dependeram grandemente dos materiais tanaíticos. A Mishnah se tornou o documento constituinte que norteou o judaísmo talmúdico, por sua vez, a base para o desenvolvimento da tradição Judaica na idade média e nos tempos modernos. A redação da Mishnah pelo Rabino Judá o Príncipe (c. 200 CE.) representou o fim de um processo, embora o grau de contribuição do Rabino Judá não deva ser minimizado.
A maioria dos estudiosos modernos concorda que a Mishnah se originou em declarações distintas, algumas ligadas a autoridades nomeadamente específicas. Apenas uma pequena parte do material mishnaítico é atribuída ao período anterior à conquista romana da Judeia em 63 A.E.C. Entre esse período e o que antecedeu à Grande Revolta de 66–73 E.C., são atribuídos materiais relacionados a Hillel e Shammai, e as Escolas de Hillel e Shammai, as escolas dos tanaítas atribuídas aos estudantes desses dois proeminentes sábios.
Com a destruição do Templo e a mudança da atividade dos tanaítas para centros em Yavneh, Usha, Bet Shearim e Séforis, as mudanças profundas ocorreram na maneira pela qual material tanaítico era transmitido. Iniciou-se um processo de reunir visões divergentes em questões em disputa e moldar as declarações para que refletissem a divergência de opinião. Além disso, formulações mnemônicas se tornavam cada vez mais comuns, pois estudantes e mestres deviam estar familiarizados com um grande corpo crescente da tradição oral.
É difícil determinar em que momento na história do material mishnaítico o processo de redação começou. Por redação, entende-se a reunião de diversos materiais em blocos de material, montada a partir de diferentes fontes por um compilador. Em algum momento após a destruição, o ato de organizar os materiais por assunto se tornou primordial. Isto abriu as portas para o desenvolvimento de “ensaio” em larga escala sobre tópicos da lei. Tradição posterior e muitos estudiosos modernos atribuem a classificação temática básica em ordens (sedarim) e tratados (massekhtot) ao Rabino Akiva que se destacou na academia de Yavneh c. 80–132 E.C. Se ele próprio é o responsável por esta ideia, é impossível determinar com precisão. Contudo, o grande número de tratados altamente desenvolvidos que continua a ser incorporado, ou os que já constituem, os tratados mishnaíticos do período entre a Grande Revolta (66–73 E. C.), e a Rebelião de Bar Kokhba (132–135 E.C.), provam que este empreendimento, ao menos no âmbito de tratados individuais, estava em voga em seus dias. Foi deixado para aqueles que seguiam Rabbi Akiva na academia em Usha a trazer muitos tratados a um estado bem desenvolvido.
Após a Revolta de Bar Kokhba, o processo continuou com vigor renovado. Tentativas foram feitas para reunir tradições, como normalmente acontece após uma tragédia de grande proporção. Assim, muitos mais tratados começaram a caminhar para uma conclusão, enquanto conceitos haláquicos desenvolvidos ao longo dos anos serviram como a base para novas abordagem organizacionais e redacionais. Por essa época, o Rabino Judá, o Príncipe, começou a sua obra de redação final, o mais provável é que ele herdara muitos tratados quase completos e um sistema básico de classificação por ordens. Ele completou a compilação dos tratados individuais e os colocou nas ordens apropriadas.
Rabino Judá o Príncipe, conhecido normalmente como “Rabino” na Mishnah, o Rabino por excelência, não intencionava criar um código autoritativo de lei. Tivesse intencionado, teríamos de julgar sua obra como fracassada. Afinal, os amoraítas, os mestres do Talmude (Gemara), retiraram e modificaram muitas de suas regras. Ele forneceu ordens variantes em muitos assuntos, explicando que seu propósito era manter opções abertas para cortes posteriores de grande autoridade e sabedoria. Ele pretendia criar um currículo para o estudo da lei judaica. No entanto, ele buscou ressaltar ordens que ele preferia provendo informação sobre status majoritário e minoritário ou regras, e por indicar a autoridade menor ou maior de depositários e conselheiros individuais (transmissores de tradição) cujas declarações ele incluiu. Ele próprio colocou materiais em seu texto anonimamente, os depositários os quais ele conhecia bem, a fim de indicar a ordem que pensava que deve ser seguida. Esses pontos de vista, em geral, ele reproduziu anonimamente, ou com a opinião dos sábios,” onde havia alguém que discordasse.
O material foi organizado em seis ordens: Zera‘im (leis agrícolas), Mo‘ed (Momentos Sagrados, Festas), Nashim (Mulheres, Leis Matrimoniais), Neziqin (Dano e Direito Civil), Qodashim (Sacrifícios), e Tohorot (Rituais de Purificação). Cada ordem era composta de um certo número de tratados. Hoje, esses tratados estão dispostos aproximadamente na ordem de tamanho dentro de cada ordem, pelo menos nos textos da Mishnah. A mesma ordem foi usado mais tarde para o Tosefta, e para os talmudes Babilônico e Palestiniano. Dentro das seis ordens há um total de sessenta e três tratados.
A Mishnah reflete a variedade completa das leis da Torah, e que está firmemente ancorada em uma realidade centrada no Templo, na qual sacerdotes, sacrifícios e pureza estão em pé de igualdade com sábados e festas, leis civis, casamento e família. Isto não significa que a Mishnah foi criada nos dias do Templo. Em vez disso, foi editada em uma atmosfera na qual a restauração dessa realidade centrada no Templo ainda era uma esperança vigente, e na qual o conceito de santidade ainda fluía dessa realidade, mesmo em sua ausência.
A lei oral era acreditada pelos tanaítas como tendo sido revelada por Deus no Sinai para a Moisés, junto com a lei escrita. Isto deve ter demandado que a lei oral fosse transmitida oralmente, e, de fato, foi até o período tanaítico. Ao mesmo tempo, existe evidência que os tanaítas individualmente guardavam livros de anotações nos quais eles listavam certas tradições orais. Houve um debate durante o período medieval sobe quando a Mishnah teria sido escrita. Alguns acreditavam que Rabbi Judá o Príncipe registrara sua Mishnah em escrita, enquanto outros acreditavam que a Mishnah foi escrita na Babilônia apenas no fim do período talmúdico, pois a ameaça da invasão islâmica se tornara real e temia-se que as tradições orais fossem perdidas. O problema é melhor resolvido compreendendo que o conceito de lei oral requeria que a publicação da Mishnah, seu ensinamento, e sua exegese fossem todos transmitidos de forma oral. Por esta razão, o estudo formal em círculos amoraítas fora baseado na tradição oral. A transição formal para o uso de uma Mishnah escrita como um objeto de ensino, estudo e exegese ocorrera apena no fim do período amoraíta ou mais tarde. Rabbi Judá o Príncipe, no entanto, promulgou sua Mishnah em forma oral. Para os Rabinos, o que Deus tinha dado por via oral tinha de ser transmitido por via oral, e assim foi com a Mishnah, o sumário consumado da lei oral.
Da Interpretação Amoraíta aos Textos Talmúdicos
Os Talmudes (Gemarot) são textos complicados, originalmente construídos por via oral como parte das sessões de estudo dos amoraítas. Estas sessões de estudo foram organizadas em torno do currículo formal fornecido pelos tratados mishnaíticos. Na Palestina e na Babilônia, diferentes tratados mishnaíticos foram selecionados para estudo detalhado, e diferentes ênfases existiam mesmo dentro das diversas escolas babilônicas e palestinianas. Os tratados mishnaíticos serviram como a base para essas discussões. Apenas ocasionalmente os amoraítas baseavam suas discussões em uma baraita’ (tradição tanáitica fora da Mishnah), ou em uma Mishnah que foi citada por acaso. Para a maior parte, a Mishnah dá suporte aos talmudes com a sua estrutura organizacional.
A Mishnah era estudada oralmente nos tempos amoraítas. Um memorizador (conhecido nos tempos amoraítas como um tanaíta, um mestre da Mishnah e de baraitot) era instruído a recitar em voz alta o texto a ser estudado. A discussão e análise daquela seção da Mishnah, então, seguia adiante. Comparava-se e se contrastava, então, como outras tradições tanaíticas, incluindo Mishnah e baraita’. Isto, por sua vez, levava as várias digressões, comentários e anotações dos diversos amoraítas aos textos tanaíticos sob discussão. Algumas digressões eram bastante extensas, e, por vezes, incluíam as análises agádicas dos materiais bíblicos relacionados (ou mesmo não relacionados). Neste sentido, o registro que temos parece preservar discussões reais que normalmente iam além do tópico específico em questão.
Tipicamente, a discussão amoraíta de uma Mishnah começou com a citação de uma contradição de uma outra Mishnah, ou uma baraita’, e, então, procedera-se para resolver tal contradição. De fato, em sua origem, a principal atividade do “Talmude” era a resolução de contradições em materiais tanaíticos. A resolução de uma contradição entre a Mishnah e um baraita’, serve, muitas vezes, como ponto de partida para uma discussão mais ampla sobre os detalhes da lei no tópico específico.
Um outro aspecto importante da análise amoraíta é investigar a fonte escriturística (texto prova) por uma regra particular. A Mishnah, praticamente desprovida de textos provas bíblicos, tivera separado a lei de suas origens bíblicas. Os amoraítas e os redatores posteriores dos midrashim haláquicos (os tão falados midrashim tanaíticos) buscaram reintegrar lei e Escritura, demonstrar que as leis orais e escritas constituem uma revelação unificada de Deus. Se o processo tivesse parado aí, a estrutura dos talmudes teria sido muito mais simples. Contudo, o processo descrito aqui, continuou, ao longo de gerações, até mesmo por séculos. Isto levou ao desenvolvimento gradual do que chamamos de sugyot, discussões talmúdicas, melhores ensaios, sobre temas específicos. Conforme gerações passavam, suas discussões para círculos de estudiosos posteriores eram aumentadas com comentários e glosas de estudiosos posteriores. Este processo continuou tanto na Babilônia quanto na Palestina no século quinto. Neste ponto, o desenvolvimento do Talmude Palestiniano ficou virtualmente comprometido pela onda de antissemitismo e pelas condições difíceis que os judeus do Império Bizantino enfrentavam.
Na Babilônia, no entanto, o desenvolvimento do texto do Talmude foi submetido a um processo adicional. Foi nesse momento que as discussões anônimas do Talmude, as setam, que organizaram e correlacionaram todo o material anterior, foram interligadas no texto. Desse modo, chegou-se a uma compreensão mais prolixa e fácil do Talmude. Isto, de fato, foi um dos diversos fatores que levaram a uma maior popularidade e autoridade do Talmude Babilônico. Os redatores do Talmude Babilônico que inseriram esses elos e glosas anônimos também adicionaram algumas das digressões mais extensas e forneceram as introduções fornulárias que nos permitem identificar Mishnah, baraita’, e as declarações individuais dos amoraítas. Essencialmente, pode-se dizer que até o fim do quinto século, a imensa maioria das declarações preservadas nos Talmudes estão com atribuições, rabinos cujos os nomes a declaração é citada. Daí em diante, a maior parte do material é anônima e serve para preencher as lacunas e fazer do todo uma criação sensível e unificada. Na Babilônia, a atividade continuou nas mãos de redatores anônimos. Então, os toques finais, incluindo as regras haláquicas ocasionais (“a lei está de acordo com . . .) e algumas explanações filológicas foram adicionadas pelos savoraim, intérpretes cuja obra continuou até o sétimo século e adiante.
Apesar de sabermos que alguns indivíduos guardavam notas escritas, a atividade formal dos amoraítas, bem como a de seus predecessores tanaítas, foram conduzidas oralmente. Há pouca informação sobre a escrita dos textos dos dois Talmudes. Na verdade, as especificidades desse mistério não podem nem mesmo estarem sujeitas a uma especulação razoável. Pode-se dizer que somente após a conquista islâmica (634 E.C.) que manuscritos do Talmude Palestiniano e Babilônico foram primeiramente mencionados, e a disseminação desses manuscritos continuaram durante a Idade Média até a invenção da imprensa.
A Hegemonia do Talmude Babilônico
Central à história subsequente do judaísmo está o processo por meio do qual o Talmude Babilônico ganhou hegemonia e autoridade como a fonte preponderante das regras legais judaicas e a principal objeto de estudo para estudiosos judeus Há dois aspectos quanto a este processo, em primeiro lugar, a substituição da tradição bíblica como autoridade central no judaísmo, e, segundo, a ascensão da tradição da Diáspora, babilônica, sobre a da tradição Palestina.
A substituição da Bíblia foi um processo de longo prazo Foi o medo de um tal desenvolvimento que levou os tanaítas praticar de um sistema de ensino oral voltado a realçar a autoridade maior da palavra escrita. Os rabinos chegaram até mesmo a escrever a lei oral. Contudo, conforme a tradição oral se tornava muito extensiva e complexa, e como indivíduos guardavam textos escritos, esta distinção não mais se fazia. Mais importante, em constante expansão, o desenvolvimento da natureza da Lei oral atraiu as melhores mentes, deixando a Torah escrita para servir como um objeto de instrução elementar, de exegese midráshica, de estudo gramatical técnico realizado por um grupo seleto. No período amoraíta, os rabinos afirmavam abertamente a superioridade da Lei Oral, foi natural, então, que Mishnah se tornasse o ensinamento central a ser estudado. Quando os comentários amoraítas na forma de talmudes se tornaram disponíveis, foi este material que se tornou a nova Escritura do judaísmo, e a autoridade da Bíblia era agora definida em termos de como era interpretada na tradição rabínica. A Escritura tivera sido substituída pelo Talmude.
O segundo processo, por meio do qual a tradição babilônica mantinha ascensão, é um pouco mais complicado. A diáspora helenística anterior também tivera provido uma abordagem concorrente ao judaísmo para os tanaítas que estavam instalados na Terra de Israel. Contudo, ao judaísmo helenístico faltou a vitalidade necessária, e falhou em sobreviver à ascensão do cristianismo e à cristianização do mundo greco-romano. O novo judaísmo babilônico alcançou esta vitalidade precisamente porque estava tão fortemente ligado ao palestiniano, e era quase idêntico a ele. Diferenças entre os dois diziam respeito às regras haláquicas mais detalhadas, ou certas ideias proeminentes na sociedade babilônia em que a tradição judaica se encontrava.
Não obstante, esperar-se-ia que a primazia da Terra de Israel tivesse garantido o primeiro lugar de seu Talmude. Entretanto, dois fatores militaram contra este desenvolvimento: primeiro, a natureza do Talmude Palestiniano em si, e, segundo, a história política dos judeus debaixo do califado islâmico no sétimo e no oitavo séculos.
As condições políticas e o antissemitismo resultante na Palestina Bizantina levaram a fim precoce do processo amoraíta em criar o Talmude Palestiniano. Não apenas os amoraítas não completaram a sua tarefa, mas, também, o Talmude da Terra de Israel foi apressadamente compilado. A obra dos estudiosos anônimos que compilaram as tradições no Talmude Babilônico não tem paralelo nenhum na Palestina, nem por causa das condições históricas dificultosas, nem por causa dos redatores finais terem visto o seu papel de outra forma. Em todo caso, o Talmude Palestiniano continha um texto mais dificultoso do que o Babilônico.
Do ponto de vista da tradição judaica posterior, houve um outro fator que levou o Talmude Babilônico a ganhar dominância. Há uma regra judaica medieval geral que a lei segue a autoridade posterior. O Talmude Babilônico foi editado após o Palestiniano. Muitos judeus acreditavam, incorretamente pensamos nós, que os editores do Talmude Babilônico devem ter tido a sua disposição a obra dos amoraítas palestinianos e que eles tiveram conscientemente selecionado ou rejeitado suas visões. Portanto, muitos concluíram, baseados neste princípio, que o Talmude Babilônico tem uma autoridade maior do que o Palestiniano.
Pode simplesmente ser, entretanto, que este argumento haláquico é um meio post facto de explicar o que as forças da história criaram a sua própria maneira, a saber, o predomínio das autoridades rabínicas do Talmude Babilônico. Os judeus do Oriente Médio ficaram sob o controle dos muçulmanos após a conquista árabe de 638 E.C. Os rabinos da babilônia se encontravam vivendo às sombras dos governantes do califado de Bagdá que inicialmente governaram virtualmente o mundo islâmico inteiro, incluindo a maioria do mundo judeu, e, que, posteriormente, sustentavam considerável influência mesmo após a fragmentação territorial do mundo islâmico. Os rabinos babilônicos rapidamente se tornaram, na forma de gaonitas, “eminências”, os rabinos chefes de facto do mundo judeu. Eles detinham a autoridade do estado para ajudar a fazer cumprir a lei Rabínica e propagar os ensinamentos do Talmude Babilônico. Neste esforço, eles foram grandemente beneficiados pela oportunidade de estar inseridos no sistema postal islâmico e no aparato administrativo que tornara possível a influência em larga escala dos gaonitas babilônicos. O resultado, junto com os fatores já abordados, foi hegemonia inquestionável do Talmude Babilônico. Doravante, este seria o “Talmude” por excelência, e a base para todo o desenvolvimento posterior da lei e do pensamento talmúdico.