O Testemunho de Jesus
Gerhard Pfandl serviu como Pastor na Áustria e na Associação Californiana. De 1977 a 1989 foi Professor de Religião no Seminário Bogenhofen na Áustria. Antes de juntar-se ao quadro do Biblical Research Institute em 1999, serviu por sete anos como Secretário de Campo na Divisão Pacífico Sul em Sidney na Austrália. Pfandl publicou mais de 120 artigos acadêmicos e populares em Alemão e Inglês e é o autor de diversas Lições da Escola Sabatina e de livros como The Time of the End in the Book of Daniel e Daniel: The Seer of Babylon.
Tradução: Hugo Martins
O artigo “O Testemunho de Jesus” (Original em inglês: The Testimony of Jesus), por Gerhard Pfandl, fora publicado, inicialmente, em outubro de 2016 na revista Ministry,® International Journal for Pastors, www.MinistryMagazine.org. Usado com permissão.
Comentaristas têm, por séculos, discutido a expressão joanina o testemunho de Jesus. Trata-se do testemunho geral da igreja cristã concernente a Jesus ou é o testemunho que o próprio Jesus deu enquanto estava, aqui, na Terra e, posteriormente, por meio dos profetas da igreja cristã? A expressão testemunho de Jesus (marturian Iēsou) ocorre seis vezes no livro de Apocalipse (1:2, 9; 12:17; 19:10 [duas vezes]; e 20:4). Duas explicações concernentes ao seu significado têm sido destacadas pelos comentaristas.
A primeira visão trata marturia Iēsou como um genitivo objetivo e interpreta isto como o testemunho do homem a Cristo.[1] Por conseguinte, a guerra mencionada em Apocalipse 12:17 se refere às “perseguições contra todos os indivíduos da igreja que guardam os mandamentos de Deus e testemunham a Jesus.”[2] A segunda visão entende marturia Iēsou como um genitivo subjetivo e compreende o testemunho de Jesus como a própria revelação de Jesus—Seu próprio testemunho.[3]
Um estudo do termo marturia na literatura joanina, onde ocorre 21 vezes, indica que esta palavra tem sido usada 14 vezes em um construção genitiva que é, claramente, subjetiva (Jo 1:19; 3:11, 32, 33; 5:31; etc.). A ideia objetiva de “testemunho sobre” ou “testemunho a” nos escritos de João é, consistentemente, expressada pela preposição peri (sobre, a respeito de) com o verbo martureo (testemunhar, testificar). Ele nunca usa o substantivo marturia (testemunhar, testificar) como uma construção genitiva, objetiva, por si. Por exemplo, João 1:7: “para que testificasse a respeito da luz” (martureo + peri); João 5:31: “Se eu testifico a respeito de mim mesmo” (martureo + peri); 1 João 5:9: “o testemunho de Deus, que ele dá acerca do seu Filho” (martureo + peri).[4]
O Uso de Marturia em Apocalipse
“. . . o qual [João] atestou a palavra de Deus e o testemunho de Jesus Cristo, quanto a tudo o que viu”(Ap 1:2).
A introdução ao livro de Apocalipse coloca a fonte, isto é, Deus e o conteúdo do livro—a revelação de Jesus Cristo. É-nos dito, no verso 2, que João atestou à “Palavra de Deus” e o “testemunho de Jesus.”
A “Palavra de Deus” é comumente compreendida como se referindo ao que Deus diz; e o “testemunho de Jesus,” em paralelo com a “Palavra de Deus,” deve, portanto, significar o testemunho que Jesus deu de Si mesmo. Como Jesus Testifica de Si Mesmo? Enquanto aqui na Terra, Ele testificou, em pessoa, ao povo na Judeia. Após Sua ascensão, Ele falou por meio de Seus profetas.
“Eu, João, irmão vosso e companheiro na tribulação, no reino e na perseverança, em Jesus, achei-me na ilha chamada Patmos, por causa da palavra de Deus e do testemunho de Jesus. Achei-me em espírito, no dia do Senhor . . .” (Ap 1:9–10).
Antes de falar sobre a sua primeira visão, João introduz a si mesmo e afirma sua credenciais. Ele menciona que ele é: João, “irmão vosso;” onde ele está: em Patmos; o porquê ele está ali: por causa da “palavra de Deus” e do “testemunho de Jesus;” e quando ele recebeu a visão: “no dia do Senhor.”
O paralelismo entre a “palavra de Deus” e o “testemunho de Jesus” é, nova e claramente, discernível. A “palavra de Deus no tempo de João se referia ao Antigo Testamento, e o “testemunho de Jesus” ao que Jesus disse nos Evangelhos e por meio de Seus profetas (tais como Pedro e Paulo). Portanto, ambos os genitivos pode ser considerados como genitivos subjetivos. Eles descrevem o conteúdo da pregação de João pelo qual ele foi banido.
“Irou-se o dragão contra a mulher e foi pelejar com os restantes da sua descendência, os que guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus” (Ap 12:17).
Os “restantes da sua descendência” incluem os membros fiéis da igreja de Deus no tempo do fim. O dragão que tentou destruir a mulher (a verdadeira igreja de Deus) durante o período de 1260 anos (vv. 6, 14) direciona, agora, sua fúria contra o restante de seus crentes fiéis. Este remanescente de Deus é identificado por duas características específicas: eles “guardam os mandamentos” de Deus e têm o “testemunho de Jesus.”
Quaisquer mandamentos que possamos incluir no primeiro momento, devemos, certamente, incluir os Dez Mandamentos. Portanto, o primeiro sinal identificador da igreja remanescente é sua lealdade aos mandamentos de Deus—todos os Seus mandamentos, incluindo o quarto, o mandamento do sábado. Deus, em Apocalipse 12:17, essencialmente, diz: no tempo do fim Eu terei uma igreja visível—a igreja remanescente—que será reconhecida pelo fato que eles guardam os mandamentos como eu tenho dado a eles desde o início, incluindo o mandamento do sábado.
Encontramos o segundo sinal identificador explicado em Apocalipse 19:10: “Prostrei-me ante os seus pés para adorá-lo. Ele, porém, me disse: Vê, ‘não faças isso; sou conservo teu e dos teus irmãos que mantêm o testemunho de Jesus; adora a Deus.’ Pois o testemunho de Jesus é o espírito da profecia.”
“Pois o testemunho de Jesus é o espírito de profecia.” Entretanto, o que é o “espírito de profecia?” Esta frase ocorre uma única vez na Bíblia, neste texto. O [texto] paralelo mais próximo a ele, encontramos em 1 Coríntios 12:8–10. Ali, Paulo se refere ao Espírito Santo, que, dentre outras charismata, dá o dom de profecia; e a pessoa que o recebe este dom é chamada de profeta (1 Co 12:28; Ef 4:11). Assim como aqueles que têm o dom de profecia em 1 Coríntios 12:20 são chamados de profetas no verso 28, aqueles, então, que têm o Espírito de profecia em Apocalipse 19:10 são chamados de profetas em Ap 22:8–9.
Encontramos a mesma situação em ambas as passagens. João cai aos pés do anjo para adorá-lo. As palavras da resposta do anjo são quase idênticas, ainda que a diferença seja significante. Em Apocalipse 19:10, os irmãos são identificados pela frase “[aqueles] que mantêm o testemunho de Jesus.” Em Apocalipse 22:9, os irmãos são chamados simplesmente de “profetas.” Se o princípio protestante de interpretar a Escritura com a Escritura significa alguma coisa, esta comparação deve levar a conclusão que o “espírito da profecia” em Apocalipse 19:10 existe não como a possessão de todos os membros da igreja em geral, mas apenas daqueles que tenham sido chamados por Deus para serem profetas.
Outros têm, também, o mesmo ponto de vista. O estudioso luterano Hermann Strathmann, por exemplo, diz:
“De acordo com o [verso] paralelo 22:9, os irmãos referidos ali não são os crentes em geral, mas os profetas. Aqui, também, eles são caracterizados como tal. Este é o ponto do verso 10c. Se eles têm o marturia Iesou, eles têm o espírito da profecia, i.e., eles são profetas, como o anjo, que se mantêm, simplesmente, em serviço do marturia Iesou.”[5]
Similarmente, James Moffat explica:
“‘Pois o testemunho de Jesus é o espírito da profecia.’ Este comentário marginal em prosa define, especificamente, os irmãos que têm o testemunho de Jesus como possuidores de inspiração profética. O testemunho de Jesus é praticamente equivalente a Jesus testemunhando.”[6]
O Testemunho dos Targumim
Os leitores judeus nos dias de João sabiam o que significava a expressão “espírito da profecia”. Eles teriam entendido a expressão como uma referência ao Espírito Santo que concede o dom profético ao homem. O judaísmo rabínico igualava as expressões veterotestamentárias Espírito Santo, Espírito de Deus ou Espírito de Yahweh com o Espírito da profecia como pode ser visto na ocorrência frequente deste termo nos Targumim (tradução escritas do AT em aramaico):
Gênesis 41:38:
Antigo Testamento Hebraico
“Disse Faraó aos seus oficiais: ‘Acharíamos, porventura, homem como este, em quem há o Espírito de Deus?’”
Targum Aramaico
“Disse Faraó aos seus oficiais: ‘Acharíamos, porventura, homem como este, em quem há o Espírito de da profecia do Senhor?’”
Números 27:18:
Antigo Testamento Hebraico
“Disse o SENHOR a Moisés: ‘Toma Josué, filho de Num, homem em quem há o Espírito.’”
Targum Aramaico
“Disse o SENHOR a Moisés: ‘Toma Josué, filho de Num, homem em quem há o Espírito da profecia diante do Senhor.’”[7]
Comentando sobre esta expressão nos Targumim, J. P. Schäfer diz:
“Uma análise dos versos onde o TO [Targum Onkelos] usa o termo ‘Espírito da profecia’ mostra que em quase todos os casos há uma relação direta com a profecia no contexto bíblico. A tradução ‘Espírito da profecia’, embora não no sentido mais estritamente literal, é quase sempre disposta pelo TM [Texto Massorético] (Gn 41:38—José tinha o ‘Espírito da profecia’ porque ele era capaz de interpretar o sonho do Faraó; Nm 11:25—O Espírito que repousou sobre os setenta anciãos, de acordo com o TM, fez-lhes ‘profetizar’; Nm 24:2—Balaão profetizou a respeito de Israel). Em outras palavras, o termo ‘Espírito da profecia’ descreve uma situação claramente delineada, a saber, o Espírito Santo enviado de Deus que concede o dom profético ao homem.”[8]
F. F. Bruce, estudioso inglês do Novo Testamento, chega a mesma conclusão e diz:
“A expressão ‘Espírito da profecia’ é corrente no judaísmo pós-bíblico: é usado, por exemplo, em uma circunlocução targúmica para o Espírito de Yahweh que repousa sobre este ou aquele profeta. Por conseguinte, o Targum de Jônatas emprega as palavras iniciais de Isaías 61:1 como ‘O Espírito da profecia vindo do Senhor Deus está sobre mim.’ A ideia expressa em Apocalipse 19:10 não é dissimilar a já citada de 1 Pedro 1:11 onde o ‘Espírito de Cristo’ é dito ter dado testemunho avançado por meio dos profetas do Antigo Testamento. Ali, também, Jesus é o tema do testemunho dado pelo Espírito profético; os profetas não sabiam quem seria a pessoa ou quando seria, mas, por fim, o segredo é revelado: a pessoa é Jesus, o tempo é agora. Em Apocalipse 19:10, entretanto, é por meio dos profetas cristãos que o Espírito da profecia testemunha. O que os profetas da era pré-cristã predisseram é proclamado como um fato cumprido pelos profetas da nova era, dentre os quais João ocupa uma lugar proeminente.”[9]
Sumário de Apocalipse 12:17
Retornando agora para Apocalipse 12:17, podemos dizer que “os restantes da sua descendência . . . guardam os mandamentos de Deus e têm o testemunho de Jesus,” que é o Espírito da profecia ou o dom profético. Esta interpretação é substantivada por um estudo do termo grego echo, que significa “ter”. Esta palavra indica possessão. Eles tem um dom de Deus—o dom profético. Se o testemunho de Jesus fosse nosso testemunho sobre Jesus, João teria escrito algo assim: “eles guardam os mandamentos de Deus e testificam sobre Jesus” ou “eles testemunham a Jesus”. Mas o termo grego echo nunca é usado no sentido de “dar um testemunho”.[10]
Em suma, podemos dizer que igreja remanescente visível de Deus, de acordo com a profecia existe após o período de 1260 (i.e., após 1798), tem duas características identificadoras específicas:
- Ela guarda os mandamentos de Deus, incluindo o mandamento do sábado, do modo como Deus os tem dado.
- Ela tem o testemunho de Jesus, que é o Espírito da profecia ou o dom profético em seu meio.
A Igreja Adventista do Sétimo Dia
A Igreja Adventista do Sétimo Dia, desde o seu começo em 1863, tem sempre afirmado esses sinais identificadores para si. Como adventistas, proclamamos os Dez Mandamentos, incluindo o sábado; e cremos que, como igreja, temos o testemunho de Jesus, isto é, que Deus manifestou a Si mesmo na vida e obra de Ellen G. White. Logo, a Igreja Adventista do Sétimo Dia é uma igreja profeticamente predita, não apenas uma igreja entre muitas. Deus chamou esta igreja à existência para um propósito muito específico: proclamar as três mensagens angélicas.
Nossos pioneiros estavam bastante convictos de que a Igreja Adventista do Sétimo Dia tinha se tornado a igreja remanescente de Apocalipse 12:17. G. I. Butler, presidente da Conferência Geral de 1871 a 1888, escreveu em um artigo intitulado “Visões e Sonhos”:
“Não há, então, algum povo cujas características se encaixem nesses últimos dias? Acreditamos nós que elas realmente se encaixam nos adventistas do sétimo dia. Eles têm por todo o canto proclamado ser a igreja ‘remanescente’ pelos últimos 25 anos. . . .
“Eles guardam os mandamentos de Deus? Todo aquele que conhece alguma coisa sobre este povo pode dizer que esta é a parte mais importante de sua fé. . . .
“Em relação ao Espírito da profecia, é um fato memorável que, desde sua existência como um povo, os adventistas do sétimo dia afiram que ele tem estado em exercício ativo entre eles.”[11]
E acreditamos, ainda, que a Igreja Adventista do Sétimo Dia existe como o igreja remanescente visível e que o Espírito da profecia tem se tornado um dos seus sinais identificadores:
“Este dom é um sinal identificador da igreja remanescente e manifestou-se no ministério de Ellen G. White—a mensageira do Senhor. Seus escritos são uma fonte contínua e autoritativa da verdade, que provê para a igreja conforto, orientação, instrução e correção. Eles tornam, também, evidente que a Bíblia é o padrão pelo qual todo ensinamento e experiência devem ser testados.”[12]
Como adventistas do sétimo dia, somos membros da igreja remanescente de Deus. Entretanto, esta identificação com a igreja remanescente não nos faz ter um status exclusivo com Deus. Salvação não é garantida por meio de membresia em qualquer igreja, mesmo a igreja remanescente. Somos salvos como indivíduos, não como uma igreja. Mas fazer parte da igreja remanescente de Deus significa que temos acesso as mensagens especiais de Deus por meio de Ellen White e que participamos na proclamação da mensagem do tempo do fim de ao mundo—as três mensagens angélicas.
Notas
[1] M. E. Osterhaven, “Testimony,” The Zondervan Pictorial Encyclopedia of the Bible (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1975), 5:682; ver, também, Petros Vassiliades, “The Translation of Marturia Iesou in Revelation,” Bible Translator 36 (1985): pp. 129–134.
[2] Ray F. Robbins, The Revelation of Jesus Christ (Nashville, TN: Broadman Press, 1975), p. 154.
[3] James Moffat, “The Revelation of St. John the Divine,” The Expositor’s Greek Testament, ed. W. R. Nicoll (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1956), 5:465.
[4] Ver G. Pfandl, “The Remnant Church and the Spirit of Prophecy,” Symposium on Revelation II, Daniel & Revelation Committee Series, ed. Frank B. Holbrook (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 1992), 7:305–306.
[5] Hermann Strathmann, “Martyrs,” Theological Dictionary of the New Testament, trad. G. W. Bromiley, vol. 4 (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1971), p. 501.
[6] Moffat, “The Revelation of St. John the Divine,” p. 465.
[7] John W. Etheridge, The Targums of Onkelos and Jonathan Ben Uzziel on the Pentateuch (London,1862), 1:131, 556; 2:442. Outras ocorrências são Gênesis 45:27; Êxodo 35:21, 31; Números 11:17, 25, 26, 28, 29; 24:2; Juízes 3:10; 1 Samuel 10:6; 19:10, 23; 2 Samuel 23:2; 1 Reis 22:24; 2 Crônicas 15:1; 18:22, 23; 20:14; Samo 51:13; Isaías 11:2. Ver Strack-Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament (München, 1965), 2:129.
[8] J. P. Schäfer, “Die Termini ‘Heiliger Geist’ und ‘Geist der Prophetie’ in den Targumim und das Verhältnis der Targumim Zueinander,” Vetus Testamentum 20 (1970): p. 310 (tradução minha).
[9] F. F. Bruce, The Time Is Fulfilled (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1978), pp. 105–106.
[10] Pfandl, “The Remnant Church,” pp. 312–313.
[11] G. I. Butler, “Visions and Prophecy,” Review and Herald, 2 de junho de 1874, p. 193.
[12] Seventh-day Adventists Believe (Silver Spring, MD: Ministerial Association, General Conference of Seventh-day Adventists, 2005), p. 247.