Impureza Cerimonial e Sua Aplicação Contemporânea

Impureza Cerimonial e Sua Aplicação Contemporânea


Elias Brasil de Souza é especialista em Antigo Testamento e hoje é diretor do Bibical Research Institute [Instituto de Pesquisas Bíblicas] da Associação Geral. O Pastor Elias também já foi diretor da Faculdade Adventista de Teologia no IAENE.

 

 


Tradução: Hugo Martins

O artigo “Impureza Cerimonial e Sua Aplicação Contemporânea” (Original em Inglês: “Ceremonial Uncleanness and Contemporary Application ”), por Ekkehardt Mueller, fora publicado, inicialmente, pelo Adventist Biblical Research Institute.  Usado com permissão.


Introdução

Deus deu leis para ao Seu povo para expressar e exemplificar em suas vidas o compromisso de um relacionamento com Ele. Em vista disso, não deve ser surpreendente que a interpretação e a aplicação das leis bíblicas são muitas vezes temas de discussão entre os crentes. E para tornar as coisas ainda mais difíceis, a Bíblia contém uma variedade de leis—algumas das quais podem exigir um estudo cuidadoso e reflexão profunda a fim de ser devidamente compreendidas e aplicadas. A primeira menção explícita de leis na Bíblia ocorre em Gênesis 26:5. O SENHOR, ali, declarou: “Abraão obedeceu à minha palavra e guardou os meus mandados, os meus preceitos, os meus estatutos e as minhas leis” (Gn 26:5). A variedade de termos usados aqui indica a diversidade de leis contidas nas Escrituras. Remetendo-se às leis do Antigo Testamento, a partir da perspectiva da cruz, pode-se categorizar—embora de forma muito simplificada—as leis reveladas no Antigo Testamento como leis morais, as leis civis e as leis cerimoniais. Os Dez Mandamentos representam uma expressão fundamental da lei moral, que, por definição, transmite instruções que continuaram vigentes aos crentes ao longo da história humana. Leis morais transcendem as particularidades de um determinado povo, cultura ou fase na história da salvação porque elas estão fundamentadas na ordem da criação e refletem o caráter de Deus.1 Leis civis foram destinadas a ajudar Israel a funcionar como nação dentre outras nações e foram vigentes aos Israelitas, enquanto o sistema civil permanecia em vigor. As leis cerimoniais, por sua vez, lidavam com sacrifícios, impurezas e outros aspectos cerimoniais que diziam respeito ao sistema de adoração do tabernáculo/templo dado a Israel como uma prefiguração da obra de Cristo na cruz e no santuário celestial.2

Este breve estudo não examina as complexidades de interpretação dos diversos tipos de leis do Antigo Testamento. Em contrapartida, ele aborda apenas alguns aspectos das leis cerimoniais que estão relacionadas às impurezas contraídas ou por meio de contato com um cadáver, ou por meio de emissão involuntária de fluídos corporais. Perguntas feitas ao BRI (Biblical Research Institute [Instituto de Pesquisas Bíblicas]) e nossas interações pessoais com membros da igreja ao redor do mundo mostram que este tópico é um tema de interesse comum em algumas áreas do mundo. É verdade, todavia, que muitas pessoas podem considerar esta questão irrelevante. Entretanto, alguns textos do Pentateuco que lidam com certos tipos de impureza constituem, aparentemente, um desafio aos membros sinceros da igreja que se dispõem a aplicar o texto bíblico à vida contemporânea de forma correta.

Trataremos, brevemente, de duas questões primordiais que têm sido levantadas. Uma relaciona-se com as mulheres que, durante o seu período menstrual, são consideradas impuras para participar na plataforma durante o serviço de adoração ou é-lhes, até mesmo, negada a participação na Ceia do Senhor por alguns. Tal condição, afirma-se, torna a mulher impura para determinadas atividades da igreja.

A outra questão relaciona-se com o costume de trazer um caixão na igreja para um velório. Em países fortemente influenciados pelo catolicismo romano, esta prática parece comum e é considerada [conveniente] pela maioria dos membros da igreja. No entanto, algumas vozes dissidentes têm questionado este costume baseando-se em algumas passagens bíblicas sobre a impureza, especialmente em relação à injunção bíblica contra trazer impureza ao santuário/templo (e.g., Lv 5:2; 15:11; Nm 5:1–4; 19:13; Is 52:11–15). As passagens que lidam com contaminação adquirida por tocar em um cadáver mostram que essa impureza era a mais grave e o indivíduo contaminado que negligenciava a submeter-se aos devidos rituais de purificação seria “cortado” da congregação de Israel (Nm 19:11–12). Assim, à primeira vista, aqueles que fazem objeções em trazer um cadáver em um caixão à igreja para um velório parecem fazer isso com o apoio de alguns versos bíblicos.

Ademais, o fato de que devemos considerar as leis alimentares registradas em Levítico 11, e em Deuteronômio 14, como ainda vigentes para os cristãos nos dias de hoje levanta, também, a questão do porquê as leis sobre as carnes puras/impuras devem ser obedecidas enquanto as leis sobre as impurezas corporais são devem ser desconsideradas. A exposição a seguir oferece algumas considerações que podem nos ajudar a compreender e a explicar estas questões a partir de uma perspectiva bíblica.

Considerações

Consideração 1

Devemos ter em mente que a Bíblia deve ser estudada com uma hermenêutica apropriada—isto é, uma hermenêutica que emerge da própria Bíblia. Então, a fim de lidar com passagens difíceis, os seguintes princípios importantes devem estar em mente: Primeiro: a Bíblia é a sua própria intérprete. Segundo: passagens difíceis ou obscuras devem ser compreendidas à luz das passagens que possuem clareza. Terceiro, à medida que lemos a Bíblia, devemos levar em consideração a história da salvação e o fato de que Deus fala de formas diferentes a pessoas diferentes. Evidentemente, Deus não muda o modo o qual Ele nos salva: pela fé na Sua provisão para a nossa salvação.3 Uma hermenêutica biblicamente fundamentada ajudar-nos-á a compreender que Deus comunicara as verdades eternas do evangelho ao antigo Israel por meio da tipologia do sistema do santuário, enquanto, após a cruz, Deus nos fala mediante sua realidade cumprida pelo que Cristo operou no Calvário e em Seu ministério contínuo por nós no santuário celestial.

Consideração 2

O sistema cerimonial hebreu provê o quadro mais abrangente por definir impurezas corporais e, consequentemente, excluindo aqueles que são afetados por elas a partir do sistema do tabernáculo. Entretanto, as leis cerimoniais do sistema levítico foram cumpridas por Cristo na cruz (cp. Hb 9:11–28). Tais leis cerimoniais não estão mais vigentes a nós porque elas se tornaram obsoletas pelo sacrifício de Cristo. É importante destacar que a morada terrena da presença de Deus no tabernáculo requeria que Israel cumprisse certos protocolos cerimoniais a fim de honrar e de respeitar a presença de Deus entre eles. Tendo dito isto, voltar-nos-emos, agora, para algumas outras considerações que tornarão as coisas ainda mais claras.

Consideração 3

Tem sido demonstrado que o sistema levítico lida com dois tipos de impureza. Um tipo consiste em impureza “adquirida”. Estas impurezas podem ser removidas por uma ação cerimonial ou, simplesmente, pela passagem do tempo. O outro tipo de impureza é compreendido como “permanente”—isto é, jamais pode ser removido porque tais impurezas estão fundamentadas na ordem da criação. Esta distinção é crucial para a questão em consideração e suas implicações serão expostas a seguir.4

Consideração 4

As impurezas derivadas de emissões corporais e de cadáveres pertencem, claramente, à categoria de impurezas adquiridas. Conforme o texto bíblico mostra, as impurezas de emissões corporais eram removidas pela passagem do tempo (cp. Lv 15:1–33; 12:1–8) ou por meio de algum ritual de purificação. Mesmo a impureza adquirida pelo contato com um cadáver poderia ser removida por meio de um ritual envolvendo as cinzas de uma novilha vermelha (Nm 19). Parece, claro, então, que essas impurezas eram cerimoniais por natureza. Sendo o caso, elas foram anuladas pelo sacrifício de Cristo na cruz. De fato, o sistema cerimonial como um todo, realizado em conexão com o tabernáculo, encontrava o seu cumprimento em Cristo e não está mais vigente aos filhos de Deus (Ef 2:15; Cl 2:13–14).5

Consideração 5

Os animais impuros mencionados em Levítico 11, conforme destacado anteriormente, pertencem a uma categoria diferente de impureza. Esta última tem sido denominada, apropriadamente, de impureza “permanente”. Uma impureza permanente está fundamentada na ordem da criação.6 Consequentemente, animais impuros continuam eternamente impuros e são, portanto, impróprios para o consumo humano. Eles são impuros em razão da forma como eles foram criados. É importante destacar que não há rituais de purificação que foram prescritos para purificar um animal impuro. Tem sido demonstrado que a terminologia, e a estrutura conceitual de Levítico 11, vem desde a criação, conforme indicado por uma série de paralelos conceituais e verbais conjuntamente ao relato de Gênesis da criação.7 Portanto, podemos concluir que este tipo de impureza não é cerimonial, mas está fundamentada na ordem da criação. De fato, a distinção entre animais puros e impuros já estava vigente no tempo de Noé (Gn 7:2–3). E isto, obviamente, fora muito antes da criação do sistema cerimonial hebraico centrado no tabernáculo. Ademais, a legislação de alimentos impuros não fora revogada no Novo Testamento. De fato, Atos 15 confirma a validade das leis alimentares através por meio da proibição de comer sangue.8 A visão dada a Pedro em Atos 10 não indica, de modo algum, a revogação das leis alimentares. Em vez disso, o propósito da visão era ensinar a Pedro que a associação com os gentios não o tornaria impuro (ver At 10:28; 11:12).9

Consideração 6

Não devemos confundir o edifício da igreja com o tabernáculo, ou o templo, por esse motivo, do sistema de adoração israelita. O tabernáculo era o lugar da presença de Deus por meio da Shekinah, a glória de Deus. Ali, Deus manifestava Sua presença de um modo especial e, devido a esse fato, diversos procedimentos cerimoniais deviam ser seguidas com a finalidade de manter a pureza do tabernáculo.10 O edifício da igreja, no entanto, não deve ser inserido na mesma categoria. A Shekinah de Deus não está mais restrita a uma edificação, mas se manifesta entre os crentes por meio do Espírito Santo (Jo 1:14; Ef 2:21).11 A igreja não funciona como o tabernáculo, como um local de sacrifícios e outras ofertas. O edifício da igreja é o lugar onde o povo de Deus se reúne para adorá-lo e aprender com Ele. Instalações e edificações eclesiásticas não são, portanto, lugares sagrados no mesmo sentido que o tabernáculo/templo era. Se fossem, as pessoas com deficiências físicas, por exemplo, não poderiam servir ou adorar na igreja (ver, por exemplo, Lv 21:16-24).

Conclusão

À luz das considerações acima, podemos, agora, abordar os questionamentos mencionados no início deste breve ensaio. O primeiro estava relacionado com a alegada inadequação de mulheres durante o seu período menstrual para auxiliar na plataforma e durante a Ceia do Senhor. O segundo era a objeção a velórios nas instalações da igreja, baseando-se no conceito de contaminação por causa de cadáveres. Embora, superficialmente, ambos os questionamentos intencionam levar a Bíblia com seriedade, mas falham em compreender que Cristo tem cumprido o sistema cerimonial. Eles, também, não compreendem, adequadamente, que as edificações da igreja não funcionam como o tabernáculo que era o local de sacrifícios e de outros rituais na antiga aliança.

A presença de um caixão na igreja não contamina o edifício da igreja, por duas razões principais. Primeira: a igreja local não funciona como o tabernáculo funcionava. Segunda: impurezas adquiridas foram eliminadas por Cristo porque o sistema cerimonial hebraico encontrou seu cumprimento na cruz.12 Por conseguinte, a questão de trazer um caixão às instalações da igreja deve ser avaliada por outras perspectivas. Se fossem proibidas pelas Escrituras, não deveríamos seguir tais práticas. Mas, como vimos, apesar de Jesus ter tocado num morto, Ele não tornara-se cerimonialmente impuro. Portanto, nas culturas onde os caixões são trazidos à igreja para o velório, não há nenhuma razão bíblica para não fazer isso. Na verdade, a recusa em ter um velório na igreja pode ofender os membros da família da pessoa falecida. Por outro lado, um velório na igreja pode ser uma oportunidade para alcançar pessoas que de outra forma nunca assistiriam a um culto na igreja. Em tal ocasião, o pastor, ou ancião, pode apresentar uma mensagem de esperança e de consolação sobre a bendita esperança lembrando que a morte, um dia, não mais existirá. A questão principal não deve ser se caixões devem ou não ser trazidos à igreja, mas, em vez disso, como utilizar a ocasião para melhor confortar os entes queridos com a bendita esperança de que Jesus, em breve, voltará. Nesta discussão, é instrutivo aprender que quando Ellen G. White morreu, seu corpo fora trazido à igreja de Battle Creek para o velório. Embora isto não torne tal procedimento normativo, verifica-se que, ao menos para aquela geração de adventistas do sétimo dia, isto não fora um problema.

Em suma, a partir de uma perspectiva hermenêutica equilibrada e teologicamente fundamentada, não deve haver qualquer restrição contra a mulher estar ativa nos cultos da igreja durante o período menstrual, nem contra pastores ou anciãos realizarem velórios nas instalações da igreja. Impurezas adquiridas decorrentes dessas situações ou dessas condições não mais se aplicam por causa da cruz do Calvário. As leis alimentares, no entanto, continuam vigentes. A razão é que a impureza dos animais impróprios para o consumo humano não está baseada no sistema cerimonial, mas, em vez disso, na criação.


Notas

[1] Mario Veloso, “The Law of God,” em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, e. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2001), pp. 457–492.

[2] Ver Richard Averbeck, “Law,” em Cracking Old Testament Codes: A Guide to Interpreting Literary Genres of the Old Testament, ee. Sandy D. Brent e Ronald L. Giese (Nashville, TN: Broadman and Holman, 1995), pp. 113–138; Richard M. Davidson, “Biblical Interpretation,” em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, e. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2001), pp. 85–86.

[3] Ver Richard M. Davidson, “Biblical Interpretation,” em Handbook of Seventh-day Adventist Theology, e. Raoul Dederen (Hagerstown, MD: Review and Herald, 2001), pp. 58–104.

[4] A obra de referência sobre este tema é de Jiří Moskala, The Laws of Clean and Unclean Animals in Leviticus 11: Their Nature, Theology, & Rationale, Adventist Theological Society Dissertation Series 4 (Berrien Springs, MI: Adventist Theological Society), 1998.

[5] Neste ponto, devemos, brevemente, observar que a proibição de relações sexuais com uma mulher durante a menstruação parece ser moral em vez de cerimonial por natureza (Lv. 20:18; cp. 18:19, 29). Como tem sido observado, Levítico 18 e 20 colocam esta proibição entre as leis morais (cp. Ez 18:5-6; 22:10). Tem sido, apropriadamente, sugerido que a justificativa para a proibição encontra-se em Levítico 20:18 que descreve uma mulher em período menstrual como dawah (“enferma” ou em um estado de desconforto; ver, também, Lv 12:2). Isso parece indicar que “a lei protege a mulher de atos indesejados por parte de seu marido durante o seu período de enfermidade” (Roy Gane, Leviticus, Numbers, The NIV Application Commentary [Grand Rapids, MI: Zondervan, 2004], p. 325).

[6] Gerhard F. Hasel, “The Distinction Between Clean and Unclean Animals in Lev 11: Is It Still Relevant?,” em Journal of the Adventist Theological Society 2 (1991): pp. 91–125; Jiří Moskala, “Are the Laws Regarding Clean and Unclean Animals Still Relevant?,” em Interpreting Scripture: Bible Questions and Answers, e. Gerhard Pfandl, vol. 2 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 2010), pp. 157–161. Ver, também, Hasel, pp. 91–121, especialm. pp. 93–96 e Jiří Moskala, “The Validity of the Levitical Food Laws of Clean and Unclean Animals: A Case Study of Biblical Hermeneutics” em Journal of the Adventist Theological Society, vol. 22/2 (2011): pp. 3–31.

[7] Ver Jiří Moskala, The Laws of Clean and Unclean Animals in Leviticus 11: Their Nature, Theology, & Rationale, pp. 228–233; idem., “The Validity of the Levitical Food Laws”, especialm. pp. 8–18.

[8] Moskala, “Are the Laws Regarding Clean and Unclean Animals,” p. 159.

[9] Clinton Wahlen, “Peter’s Vision and Conflicting Definitions of Purity,” New Testament Studies, vol. 51 (2005): pp. 503–518. Ver, também, Clinton Wahlen, “Mark 7:19. Did Jesus Make All Foods Clean?” em Interpreting Scripture: Bible Questions and Answers, e. Gerhard Pfandl, vol. 2 (Silver Spring, MD: Biblical Research Institute, 2010), pp. 301–304; Colin House, “Defilement by Association: Some Insights from the Usage of Koinóς/Koinóω in Acts 10 and 11,” Andrews University Seminary Studies 21, no. 2 (1983): pp. 143–153.

[10] Ver Roy E. Gane, Cult and Character: Purification Offerings, Day of Atonement, and Theodicy (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2005), pp. 144–161.

[11] Russell P. Shedd, “Worship in the New Testament Church,” em The Church in the Bible and the World: An International Study, e. D. A. Carson (Grand Rapids, MI: Baker Book House, 1987), pp. 132–133.

[12] Jesus obviamente não tinha dificuldade em tocar um corpo morto ou em uma mulher sofrendo de uma hemorragia, embora isso pudesse torná-lo imundo de acordo com a lei cerimonial (cp. Mat 9:20–26; Marcos 5:22-42; Lucas 8:40–56). Este é um outro indicador de que, com Jesus Cristo, essas leis não são mais aplicáveis e tiveram um fim.

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