A Função do Dom de Línguas e A Tradição Adventista

A Função do Dom de Línguas e A Tradição Adventista


Rodrigo F. Rodrigues é bacharel teologia pelo UNASP-EC (2009); Mestre em teologia bíblica pela PUC-Rio (2013). 2014–2019 atuou como professor de ensino religioso e como pastor distrital no campo da Associação Sul Paranaense. Atualmente, dedica-se integralmente aos estudos.


A TRADIÇÃO ADVENTISTA

Tradicionalmente, a interpretação adventista tem afirmado que: (1) o dom de línguas teria sido dado com a função de ser, em si mesmo, um instrumento de comunicação do evangelho; (2) a primeira vez que o dom de línguas teria acontecido explicitamente para possibilitar a transmissão do evangelho, na “modalidade conversação”, entre um pregador do evangelho e um ouvinte estrangeiro que não compreendia o vernáculo do pregador, alega-se que foi o evento de Pentecostes, narrado em Atos capítulo 2. Esse texto é tradicionalmente tomado como “a” prova bíblica para essas afirmações.1

Curiosamente, não há um único versículo do Novo Testamento que apoie tais afirmações, nem mesmo implicitamente! No relato do Novo Testamento, jamais houve pregação “em línguas”. Jamais houve conversação “em línguas”.

ATOS 2

O texto de Atos 2:11 informa ao leitor qual foi, precisamente, o real conteúdo que os estrangeiros ouviram da boca dos discípulos após receberem o dom: “as grandezas de Deus” (gr.: ta megaleia tou theou). Ou seja, assim como Cornélio em Atos 10, os discípulos engrandeceram a Deus empregando as línguas maternas dos diversos estrangeiros presentes.

Não é possível, textualmente, confundir o ato de “engrandecer” a Deus, com o ato de “proclamar” o evangelho. O Livro dos Salmos abundantemente nos informa que “engrandecer a Deus” significa falar diretamente a Deus (e não às pessoas), reconhecendo e descrevendo Seus atributos e Suas obras. Trata-se de “oração” (falar a Deus) e não de “conversação” (falar aos homens).

O próprio Livro de Atos deixa claro que o único dentre os discípulos que pregou/proferiu o sermão aos estrangeiros e aos habitantes de Jerusalém presentes no evento do Pentecostes foi Pedro (Atos 2:14–41)! Além disso, tão logo Pedro pronunciou seu único sermão a aos habitantes de Jerusalém e aos estrangeiros, a multidão não apenas demonstrou ter entendido (Atos 2:37), mas também, grande parte dela aceitou o apelo de Pedro. (Atos 2:38,41).

Por que bastou um único sermão? A razão é que, no primeiro século, o “mundo greco-romano” usava o grego como sua língua predominante. Consequentemente, independentemente de qual fosse a língua materna de um indivíduo nascido naquele “mundo”, dificilmente ele desconheceria o grego. Era a língua comum, a língua do comércio.2 Se Pedro sabia, inclusive, escrever em grego, é razoável supor que, assim como seus contemporâneos, soubesse falar o grego comum entendido pelos estrangeiros visitantes.

O fato dos discípulos engrandecerem a Deus (orarem) no meio da multidão, assim como a confusão feita por Eli ao ver Ana, mãe de Samuel, quando orava (“falava sozinha”) no templo (1 Samuel 1:13–14), os discípulos, igualmente, foram, equivocadamente, tachados de “embriagados” pelos espectadores (Atos 2:13–14). Caso os discípulos estivessem “conversando fluentemente” nas diversas línguas de seus interlocutores (em vez de “falando sozinhos”), é de se supor que não haveria nenhuma razão para causarem a impressão de embriaguez aos expectadores.

ATOS 10

Os eventos descritos em Atos 10 são os seguintes: (a) Pedro prega a Cornélio; (b) Cornélio fala em línguas assim como o fizeram os discípulos no dia de Pentecostes.

Em Atos 10:46 é empregada a mesma construção grega, adaptada, tal como em Atos 2:11, para dizer que Cornélio, ao receber o dom de língua, passou a “engrandecer Deus” (megalunóntôn tòn theón).

Fica mais do que evidente que, quem pregou, não falou em línguas; e, quem falou em línguas, não pregou. Comprova-se, desse modo, que a função do dom de línguas: (1) não era a de transmitir o conteúdo do evangelho; (2) tal dom não “funcionava” na “modalidade conversação”.

ATOS 19

Em Atos 19: (a) Paulo interpela e instrui algumas pessoas sobre o Espírito e as batiza; (b) as pessoas batizadas falam em línguas (e não Paulo, o pregador!).

Mais uma vez: o dom não foi usado como instrumento para comunicar o conteúdo do evangelho e, claramente, não foi empregado para “conversação” entre pessoas que não falassem a mesma língua.

1 CORÍNTIOS 14

O capítulo 14 de 1 Coríntios discorre sobre o dom de línguas em plena harmonia com os eventos mencionados do Livro de Atos. Paulo afirma que: “quem fala em língua não fala a homens, mas a Deus” (14:2).3 No decorrer desse capítulo, ele repete algumas vezes a expressão: “orar em línguas” (p.ex.: v.14), mas jamais disse: “aquele que prega em línguas”; muito menos: “aquele que dialoga em línguas”.

O ato de um ser humano, movido por um dom do Espírito, falar a outro ser humano (“conversação”), conforme 1Cor 14:3, é dom de “profecia”, e não dom de “línguas”.

Em 1º Cor 14:22, Paulo explica que a função do dom de línguas é ser “sinal” para os descrentes. Ele não poderia ter sido mais direto e, ao mesmo tempo, tão claro.

O SIGNIFICADO DE “SINAL” (gr. sêmeion).

O Evangelho de João fez um uso abundante da palavra sinal e, por isso, é um excelente exemplo de como um “sinal” foi empregado na relação com os indivíduos que ainda eram, em alguma medida, descrentes.

O milagre da transformação da “água em vinho”, por exemplo, foi, explicitamente, classificado como “sinal” e destinado a estimular a fé de quem ainda, em certa medida, não cria.

Textualmente é dito: “Assim deu Jesus início aos seus sinais […] e os seus discípulos creram nele” (João 2:11).

Da mesma forma, curas, multiplicação de pães, expulsão de demônios, purificação de leprosos etc. foram, textualmente, classificados como “sinais” e, regularmente, destinados a estimular a “credulidade” em Cristo e em seus ensinos.

Os sinais não se destinavam a incrédulos rebeldes (cf. João 12:39); não substituíam a pregação; nem jamais foram, em si mesmos, instrumentos de transmissão do conteúdo do evangelho; todavia, foram empregados como auxiliares do pregador e destinado às pessoas de fé claudicante.

IMPLICAÇÕES INTERPRETATIVAS

O uso de um “sinal” destinado à pessoa que ainda não era, propriamente, um crente em Cristo, foi, precisamente, a função do dom de línguas tal como consta no relato de Atos 2.

O “sinal” serviu para chamar a atenção para os discípulos e, na sequência, oportunizou a Pedro não somente a explicar aquilo que estava acontecendo, mas principalmente, possibilitou a ele que pregasse às pessoas atentas e instigadas pela sobrenaturalidade do dom de línguas.

De igual maneira, conforme o relato de Atos 10, o dom de línguas serviu de “sinal” para que a Igreja cresse em um ponto fundamental do Evangelho: após a cruz, não havia mais qualquer distinção entre judeus e gentios quanto à pertença ao “povo eleito”. Ambos poderiam receber o Espírito Santo sem qualquer discriminação étnica. O “sinal” foi decisivo para corrigir uma crença distorcida.

Em Atos 19, o “sinal” serviu para as próprias pessoas rebatizadas que, até então, jamais souberam da existência do Espírito, mas agora, pudessem experienciar, por si mesmas, o quanto o Espírito era uma dádiva divina real e efetiva. Aqueles rebatizados, evidentemente, passaram a crer em um artigo de fé no qual ainda não criam.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O emprego do dom de línguas com a função de mero “sinal” para os (relativamente) descrentes é um conceito sem grande complexidade e de fácil verificação, muito embora ainda seja contraditado e distorcido pela interpretação adventista tradicional.

O equívoco de que o dom de línguas tenha sido dado para, em si mesmo, ser um instrumento de pregação do evangelho a estrangeiros, e, empregado na “modalidade conversação”, predomina na literatura tradicional adventista, como já dito, comentários exegéticos, recente lição da Escola Sabatina sobre o Livro de Atos; em estudos bíblicos evangelísticos; bem como em artigos, monografias acadêmicas e diversas outras obras.4

É possível supor duas razões principais para uma leitura, evidentemente, incorreta, ainda exercer tanta influência na exposição adventista sobre o tema.

Uma primeira razão, subjacente e anterior a todas as demais posteriores, possivelmente deva-se ao fato de E.G.W. ter feito tal “leitura tradicional” diversas vezes, particularmente, em seu livro também intitulado: “Atos dos Apóstolos”.5 Para um exemplo brasileiro dessa realidade, menciona-se o artigo do professor Ozeas Caldas Moura.6 Nesse texto, muito embora o autor se proponha a apresentar o resultado de uma exata interpretação bíblica sobre o dom de línguas, não apenas se poia primariamente em citações da mencionada obra de E.G.W., mas ainda, em vez de identificar qual a real função do dom de línguas no texto bíblico “analisado”, a conclusão de seu texto quase que somente sintetiza e extrai os conceitos do texto de E.G.W. sobre tal assunto. A exegese bíblica (extrair aquilo que o texto bíblico quis dizer), não aconteceu. É possível notar a mesma dependência conceitual de E.G.W. perpassando a influente obra sobre o “dom de línguas” escrita Gerhard F. Hasel, particularmente, em sua “análise” de 1 Cor 14,7 ainda que ele não faça citações explícitas de textos dela.

Por óbvio, o problema não está em citar E.G.W., mas em ignorar o real significado do texto bíblico, substituí-lo por narrativas peculiares de E.G.W. e, ainda assim, entregar ao leitor um resultado de pretensa exegese bíblica.

Uma segunda possível razão, parece ser o fato de o pentecostalismo ter usado o tema do dom de línguas como uma de suas expressões distintivas (glossolalia). Os textos adventistas citados neste presente artigo, apenas a título de exemplo, bem como dezenas de outros não mencionados,8 em geral, buscam evidenciar que a glossolalia pentecostal não está amparada no ensino do Novo Testamento. Na perseguição desse objetivo, porém, uma série de imprecisões foram sendo praticadas e acabaram por se cristalizar. Dentre as imprecisões está o equívoco sobre qual era a função do dom de línguas no Novo Testamento, tal como foi exposto acima.

Este autor está convencido de ser exegeticamente possível demonstrar o contrário daquilo que a tradição pentecostal afirma sobre os significados dos vocábulos que, igualmente, significam “língua” no Novo Testamento (“glossa” versus “dialektos”), sem, todavia, precisar recorrer a nenhum tipo de equívoco ou estratagema que não reflita a honesta pesquisa bíblica.


Notas

[1] Vagner Kuhn, produziu um pertinente capítulo de livro, intitulado “O dom de línguas na missão: implicações para a Igreja Adventista” (obra organizada por: Reinaldo W. Siqueira e Alberto R. Timm. Pneumatologia: Pessoa e Obra do Espírito Santo. Engenheiro Coelho, SP.: Unaspress, 2017, pp.609-630). Nesse texto, o autor traz a informação de que desde 1930 até aproximadamente 2017, havia cerca de 70 artigos sobre o tema “dom de línguas” publicados no Brasil por escritores adventistas na Revista Adventista. Dentre esses, pode-se destacar, devido à quantidade de artigos, o professor Pedro Apolinário e o Pr. Arnaldo Christianini. Entre as publicações brasileiras mais ou menos recentes, mas que mantêm precisamente a mesma interpretação tradicional quanto à função do dom de línguas, vale mencionar o professor Ozeas Caldas Moura (“O dom de línguas”, Revista Adventista, set. 2007, p.16). Na esteira desses escritores, ainda que possua outro foco, destaca-se, também, uma parte da obra de Vanderlei Dorneles, Cristãos em Busca do Êxtase: para compreender a Nova Liturgia e o Papel da Música na Adoração contemporânea (Engenheiro Coelho, SP: Unaspress, 2003) particularmente, pp. 206-225. Em língua inglesa, apesar de haver uma pequena variação de interpretações ao tratar, particularmente de 1ºCor 14, houve uma grande influência exercida a favor da intepretação tradicional a partir da publicação da obra do eminente exegeta adventista Gerhard F. Hasel analisando academicamente o tema (Speaking in Tongues: Biblical Speaking in Tongues and Contemporary Glossolalia. Berrien Springs, MI: Adventist Theological Society Publications, 1991). Ainda segundo Vagner Khun (“O dom de línguas na missão”, pp. 614-615) “Devido à reputação acadêmica de Hasel e sua influência sobre os líderes da igreja, seu estudo acabou determinando, em muito, a maneira de se interpretar o dom de falar em línguas (glossolalia) na Igreja Adventista em geral”. A interpretação tradicional também se verifica em produções de cunho evangelísticos, em recente lição da Escola Sabatina etc.

[2] Cf. Justos L. Gonzalez. Uma História do Pensamento Cristão. Vol. 1. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2004, p. 40.

[3] Neste ponto, é válido ressaltar que dentre os princípios mais elementares da lógica, está a “não contradição”. Isso implica que uma coisa não pode ser e, ao mesmo tempo e no mesmo sentido, não ser. Ao lado disso, percebe-se que Paulo está em plena harmonia com todos os relatos do NT ao afirmar que quem fala em línguas não fala aos homens, mas a Deus. Ora, pregar o evangelho a alguém é, necessariamente, falar aos homens, e não a Deus. Logo, quem recebe o dom de línguas não prega o evangelho por meio de tal dom. Consequentemente, ensinar que o dom de línguas tem a função de possibilitar a um homem pregar a outro, além de erro exegético grosseiro, contradiz frontalmente o ensino de Paulo em 1Cor 14. Para manter esse ensino sem contradizer o texto bíblico, seria necessário, primeiro, reescrever algumas porções suas.

[4] Para uma ampla bibliografia sobre o assunto, recomenda-se as referências bibliográficas sobre o tema indicadas no texto já mencionado de Vagner Kuhn, O dom de línguas na missão, pp.609–630.

[5] Apenas como exemplo, segundo E. G. White, precisamente por causa do recebimento do dom de línguas, os apóstolos “podiam proclamar as verdades do evangelho em toda parte, falando com perfeição a língua daqueles por quem trabalhavam” (“Atos dos Apóstolos”. Ellen G. White Estate, Inc. 2007, p 21. versão eBook. Grifo acrescentado.). Sobre a função do dom de línguas recebido pelos batizados mencionados em Atos 19, ela diz que, por causa do dom de línguas, eles “estavam habilitados a trabalhar como missionários em Éfeso e circunvizinhanças, e também a sair para proclamar o evangelho na Ásia Menor”. (“Atos dos Apóstolos”. Ellen G. White Estate, Inc. 2007, p 157. versão eBook. Grifo acrescentado). Obviamente que a tarefa de fazer exegese do texto bíblico é do exegeta, e não de E.G.W. Esta escritora sempre enfatizou que a Bíblia é sua única intérprete, e não seus escritos. Desse modo, E.G.W. não pode ser responsabilizada pela imperícia e negligência de biblistas adventistas.

[6] Cf. Ozeas Caldas Moura, “O dom de línguas” Revista Adventista, set. 2007, p.16.

7 Cf. Gerhard F. Hasel, “Speaking in Tongues”.

8 Cf. Vagner Kuhn, O dom de línguas na missão, pp.609–630.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *